sábado, 30 de agosto de 2014

XXII Domingo do Tempo Comum - ano A - 31 de agosto

       1 – E vós que dizeis que Eu sou? Pergunta essencial que Jesus nos faz sobre o testemunho que estamos dispostos a dar, identificando-nos com Ele e permitindo que Ele transpareça em nós, através de nós, diante de todas as pessoas que encontramos.
       Pedro, como víamos, responde também por nós. Tu és o Messias, o Filho de Deus. Isto é, não és um dos profetas, és o Messias de Deus, és único para mim. Seguir-Te-ei por onde fores.
       Tu és Pedro, pedra, sobre ti edificarei a minha Igreja. Recordava o nosso Bispo, D. António Couto, que aquela pedra, que é Pedro, é frágil, esburacada, alcofa, berço, para nele e através dele, e também em nós e através de nós, Cristo possa agir no mundo.
       A profissão de fé de Pedro é reveladora. Mas a consciência do que acaba de dizer parece não ter ainda a consistência do seguimento, a luz da fé que brotará com toda a força na Ressurreição de Jesus Cristo.
       O Mestre vai prevenindo os seus discípulos para que não se deixam iludir por facilidades. Ele é o Messias, o Enviado de Deus, mas não dispensa ninguém de trabalhar, de fazer o seu próprio caminho. Ele é Guia, mas não nos substitui os pés, a vontade. Teremos que viver a nossa vida, enfrentando os dias bons e os dias nebulosos. Ele estará sempre connosco. Sempre de mão estendida para não nos deixar afundar. Esta confiança que nos vem da fé ajuda-nos a encarar as intempéries que advirão pelo caminho.
       O Filho do Homem, que é também o Filho de Deus, vai sofrer. Vai passar as passas do Algarve, vai ser entregue às autoridades e será morto. No entanto, não há que se deixar afugentar pela morte, pois a ressurreição, três dias depois, trará a vitória do amor, da entrega, a vitória de Deus sobre o mal, a injustiça, o sofrimento.
       2 – Quando nos dão uma má notícia deixamos de ter disponibilidade para boas notícias. Os discípulos já não ouvem Jesus a falar de ressurreição e logo Pedro O contesta, dizendo: «Deus Te livre de tal, Senhor! Isso não há de acontecer!».
       Jesus volta-Se para Pedro e diz-lhe: «Vai-te daqui, Satanás. Tu és para mim uma ocasião de escândalo, pois não tens em vista as coisas de Deus, mas dos homens». E logo para todos os discípulos, que hoje somos nós: «Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me. Pois quem quiser salvar a sua vida há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa, há de encontrá-la. Na verdade, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? Que poderá dar o homem em troca da sua vida? O Filho do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus Anjos, e então dará a cada um segundo as suas obras».
       Aí estão as linhas de orientação para sermos verdadeiramente discípulos, seguidores de Jesus. Seguir atrás do Mestre. Quando queremos ir à frente, ou sem Jesus Cristo e o Seu Evangelho de amor e de perdão, corremos o risco de perder a vida em vão. É preciso sermos aquela pedra frágil cuja força nos vem do alto, de Jesus Cristo, pelo Espírito Santo. Precisamos de não impedir que Deus trabalhe em nós e através de nós. Podemos ter o mundo inteiro nas mãos, mas se nos faltar a caridade, faltar-nos-á a própria vida, como dom partilhável. Precisamos de GASTAR a vida a favor dos outros, a exemplo de Jesus que dá a vida pela humanidade inteira.
       3 – Há tantos caminhos quantas as pessoas. Resposta do então Cardeal Joseph Ratzinger, em Sal da Terra (1996), quando lhe perguntaram quantos caminhos havia para Jesus Cristo, lembrando que a própria Igreja é definida como caminho de Cristo. Ou Jesus, como único caminho que nos conduz ao Pai.
       Dito isto, facilmente se conclui que cada um é chamado a fazer o seu próprio caminho. Mas não estamos sós. A reprimenda dada a Pedro surge neste contexto. Se queremos passar à frente de Jesus ou prosseguir sem Ele, estaremos sob o domínio de Satanás, diabolizando a nossa ligação com os outros. Há que avançar seguindo Jesus, procurando orientar-nos pelas suas pegadas.
       No campo ou na cidade, os pais levam a criança pela mão. Ou, vão à frente (na vida), dando o exemplo pela palavra e pela postura. A criança larga a mão dos pais e pode perder-se se avança demasiado ou se se atrasa e deixa de os ver. Seguimos por um trilho, por entre giestas, arvoredo, e procuramos que os nossos pés pisem onde outros pisaram, ainda que as nossas pegadas sejam nossas. Será mais seguro, pois sabemos que aqueles que nos precederam trilharam caminhos que nos dão segurança, sem nos iludirmos no arvoredo, com o perigo de tropeçarmos numa pedra, ou cairmos em algum buraco, ou irmos diretos a uma ribanceira. Ainda que possamos retomar a caminhada.
       Cai neve que cobre por completo o chão que pisamos. Se alguém já passou, nós vamos prosseguindo sabendo onde podemos pisar com segurança. Deslocámo-nos por um caminho que desconhecemos. Nada melhor que uma bússola ou o GPS. Isto mesmo diz Jesus a Pedro. Afasta-te de Mim. Passa para trás. Eu Sou o alfa e o ómega, o Teu Norte. Vem por Mim e serás salvo. A minha Palavra é bússola para o teu peregrinar, o meu Evangelho é o melhor GPS para saberes para onde vais. Chega mais depressa não quem corre mais mas quem sabe para onde ir. Quem se mete em atalhos pode muito bem meter-se numa carga de trabalhos. Seguir no encalço de Jesus dá-nos a confiança para prosseguirmos com alegria, criatividade, segurança, sabendo que encontraremos dificuldades, mas sabendo também que o nosso olhar não se despegará do de Jesus.
       Por outro lado, o testemunho dos santos, ou de pessoas luminosas que vamos encontrando nas nossas comunidades, cuja vivência de compromisso com os irmãos, nos leva, ainda hoje, a descobri mais facilmente as pegadas de Jesus. Voltando ao exemplo anterior, seguindo um trilho, se outros forem decalcando as pegadas que encontram, tornam-se mais visíveis para nós.

       4 – São Paulo admoesta, ao jeito de Jesus, para que não nos conformemos com o tempo presente, com este mundo, com os nossos interesses, mas em tudo procuremos "o que é bom, o que Lhe é agradável, o que é perfeito", discernindo segundo a vontade de Deus.
       Se nos preocuparmos apenas connosco e com o nosso umbigo, conformar-nos-emos com o mundo, deixando-nos transformar por ele. Mas, seguindo Jesus, deveremos gastar a nossa vida para transformar o mundo, oferecendo-nos a nós "mesmos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus, como culto espiritual", sob o domínio da misericórdia de Deus. Vivamos à sombra das Suas asas (Salmo)!
       Esta é a nossa vocação: fazer com que o nosso caminho, seguindo a vontade de Deus, nos aproxime do caminho que é Jesus Cristo. Se nos faltarem as forças, não temamos pois a nossa vida está unida a Deus, cuja mão nos serve de amparo (Salmo).
       Jeremias sente, como Pedro, como Paulo, e como nós, o chamamento de Deus ao qual não pode virar costas, ou fazer de conta. O profeta reconhece as dificuldades do caminhos, mas sabe que não lhe cabe desistir: "Em todo o tempo sou objeto de escárnio, toda a gente se ri de mim; porque sempre que falo é para gritar e proclamar: «Violência e ruína!». E a palavra do Senhor tornou-se para mim ocasião permanente de insultos e zombarias. Então eu disse: «Não voltarei a falar n’Ele, não falarei mais em seu nome». Mas havia no meu coração um fogo ardente, comprimido dentro dos meus ossos. Procurava contê-lo, mas não podia".
       Por vezes pode ser mais fácil deixar andar, ao sabor do vento. Mas se Ele verdadeiramente nos seduziu, a Sua voz há de ressoar dentro de nós até ao Infinito. Mas também a Sua Mão nos guiará.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Jer 20, 7-9; Sal 62 (63); 2 Rom 12, 1-2; Mt 16, 21-27.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

APONTAMENTOS na Voz de Lamego: CONTRA TUDO

       O meu bisavô era contrabandista. O meu avô contra-mestre. O meu pai, contrabaixo. Seguindo a tradição também eu teria que ser contra. Sou contra tudo. O que disserem e fizeram eu sou contra.
       Pequeno episódio contada por um amigo paroquiano e que se referia a um colega cuja opinião, em todas as matérias, era contra, mesmo antes de explicarem, mesmo que posteriormente até participasse com gosto em tais propostas.
       Há pessoas assim, cujo ponto de partida é ser (do) contra. Um pouco como algumas crianças: dizemos sim e elas dizem não, nós dizemos não e elas dizem sim. Como adultos devemos ser como as crianças na sua espontaneidade, mas não infantis. “Ser contra tudo”, por princípio, só por que vem do outro, parece-me um absurdo que nos encerra na estupidez. “Só os estúpidos e os sábios não mudam”, diz um ditado oriental. Sábios talvez ainda não sejamos, não queiramos morrer burros. Estamos cá, neste mundo, para aprender alguma coisa. E contribuirmos para um mundo melhor. De contrário seremos apenas parasitas. Também como cristãos.
       Jesus era inclusivo. Para Ele não importa a origem ou a condição da pessoa, homem ou mulher, judeu ou pagão, samaritano ou grego, pobre ou rico. Importante mesmo é que cada pessoa descubra a sua dignidade de filho de Deus e aja como irmão de todos. Jesus vem para nos redimir, para nos reintroduzir na comunhão de Deus, construindo a fraternidade baseada nos laços fortes do amor e da compaixão.
       A determinada altura, os discípulos proíbem alguns homens que faziam o bem em nome de Jesus, pois não faziam parte do grupo. Jesus diz-lhes claramente que não é importante o grupo a que pertencem mas o bem que fazem.
       Preconceituosamente, muitas vezes para lermos um livro, valorizarmos um projeto, acolhermos uma ideia, perguntamos de quem vem. Queria ler um outro autor, por ser conhecido e muitas vezes referido como possível candidato a Prémio Nobel. A obra escolhida será interessante, mas para mim foi intragável avançar além das 10 a 20 páginas.
       A atitude do cristão, mas também de todo bom cidadão, deverá ser de inclusão, generosidade em relação aos outros, humildade em causa própria. Ao jeito de Jesus. O bem que vem dos outros não nos diminui. Numa discussão, que promova a escuta, o respeito, a caridade, é possível enriquecermo-nos mutuamente. Argumentar com alguém não é um mal em si mesmo. Só deixa de ser benéfico quando só nos ouvimos a nós, tornando-nos surdos aos outros. Em vez de pensarmos no que vamos responder, seria de todo interessante ouvirmos com atenção o que o outro tem para dizer, pois por vezes está exatamente a dizer o que diríamos a seguir.

publicado originalmente na Voz de Lamego, n.º 4276, de 19 de agosto de 2014.

Não entrais nem deixais entrar...

       "A graça e a paz vos sejam dadas da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo. Devemos dar contínuas graças a Deus por vós, irmãos, como é justo, porque a vossa fé faz grandes progressos e o amor de uns pelos outros vai aumentando em todos vós. Assim nós mesmos nos gloriamos de vós nas Igrejas de Deus, por causa da vossa perseverança e da vossa fé, no meio de todas as perseguições e tribulações que suportais" (2 Tes 1, 1-5.11b-12).
       Disse Jesus: «Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque fechais aos homens o reino dos Céus: vós não entrais nem deixais entrar os que o desejam. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque dais volta ao mar e à terra, para fazerdes um convertido, mas, tendo-o conseguido, fazeis dele um merecedor da Geena, duas vezes mais do que vós. Ai de vós, guias cegos, que dizeis: ‘Quem jurar pelo santuário a nada se obriga; mas quem jurar pelo ouro do santuário tem de cumprir’. Insensatos e cegos! Que vale mais: o ouro ou o santuário que santifica o ouro? Dizeis também: ‘Quem jurar pelo altar a nada se obriga; mas quem jurar pela oferenda que está sobre o altar tem de cumprir’. Cegos! Que vale mais: a oferenda ou o altar que santifica a oferenda? Na verdade, quem jura pelo altar jura por tudo o que está sobre ele. E quem jura pelo Santuário jura por ele e por Aquele que o habita. E quem jura pelo Céu jura pelo trono de Deus e por Aquele que nele está sentado» ( Mt 23, 13-22).

       Optámos, hoje, por colocar dois textos: o primeiro da 2.ª Epístola de São Paulo aos Tessalonissenses e o segundo do Evangelho de São Mateus. São Paulo alegra-se pelos progressos da comunidade. É motivo de louvor e de agradecimento. Apesar das tribulações, a fé aumentou.
       No Evangelho, Jesus adverte os fariseus (e naturalmente todos, em algumas situações, poderemos viver em atitude farisaica) para as contradições da vida, o que fazem e o que exigem aos outros. Jesus sublinha o facto de se fecharem à graça de Deus e impedirem que outros usufruam da bondade divina...

sábado, 23 de agosto de 2014

XXI Domingo do Tempo Comum - ano A - 24 de agosto

– Sabes, ouvi uns comentários a teu respeito que me deixaram confuso e aborrecido.
– Ai sim, e são assim tão maus?!
– Preferia não ter ouvido e que não te chegasse aos ouvidos. Mas quero que ouças por mim, antes que alguém distorça ainda mais o que ouvi.
– Mas achas que é importante o que ouviste? A quem é que ouvistes?
– A umas pessoas! Ouvi ao povo!
– Ao povo ou a algumas pessoas?
– Na verdade ouvi a fulano X.
– E achas que é de confiança, dás crédito ao que ele te disse?
– Sim, ele ouviu dizer. Eu acredito nele. É de confiança. Não me ia mentir.
– Então não ouviste em primeira mão?
– Não, mas como mo venderam assim to vendo. E confio em quem me contou.
– E quem lhe contou a ele? Será de confiança? Quem disse isso afinal?
– Não sei, mas sei que quem mo disse merece a minha confiança. Quem lhe disse a ele não sei porque ele não quis dizer. Penso que não iria inventar!
       1 – Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Mas poderia acontecer. Querermos saber o que outros dizem de nós, ou por autorrecriação virem dizer-nos mesmo sem querermos saber. Jesus faz esta pergunta aos discípulos: quem dizem os homens que é o filho do homem? O que tendes ouvido dizer?
       Facilmente poderemos concluir que os discípulos, próximos de Jesus, interessados no Seu sucesso, na primeira linha para beneficiarem dessa ligação, estão atentos a tudo o que diz respeito ao Mestre. Quando pergunta, Jesus sabe o que perturba e incomoda os seus discípulos. Eles estão inquietos com o que se diz. Não pomos em causa a amizade que Lhe têm, ainda que misturada com outros sentimentos e desejos.
       Então Jesus avança um pouco mais. E vós, vós quem dizeis que Eu sou?
       Já não é tempo para a opinião dos outros, mas de reafirmar a amizade, os laços que nos unem a Jesus. Quem és Tu para nós, Senhor? Que lugar Te damos na nossa vida? Que aspetos da nossa vida se identificam com a Tua Mensagem de perdão e de amor? Quantas escolhas fazemos perguntando-nos o que farias Tu no nosso lugar?
       Voltando à conversa dos dois amigos...
 – E que é que tu pensas? Isso que ouviste é também a tua opinião?
– Tu sabes que não. Nunca diria tal coisa. Sou teu amigo. E se te digo isto é para te avisar. Quem te avisa teu amigo é!
– Sim, mas isso não me interessa. Eu quero saber se tu és meu amigo, com todos os defeitos que eu possa ter. Opiniões que não sei de onde vêm, não me interessam muito, não me fazem perder o sono…
       2 – Adentremo-nos um pouco mais no Evangelho.
       Jesus continua a Sua missão, deslocando-se entre povoações. Entretanto pergunta aos seus discípulos: «Quem dizem os homens que é o Filho do homem?». Seria diferente se fossem os próprios a dizerem a Jesus o que iam ouvindo acerca d'Ele. Certamente que não se atreveriam a revelar algumas afirmações! Respondem-lhe: «Uns dizem que é João Baptista, outros que é Elias, outros que é Jeremias ou algum dos profetas».
       Temos amigos que fazem questão em nos dizer o que não queremos saber. Umas vezes, por amizade, dizem por alto o que ouviram. Outras vezes, dizem-no com todas as letras. E outras vezes, dizendo-nos muito ou pouco, pouco ou nada tem a ver com o que ouviram mas com o que sentem em relação a nós. Diria que os nossos melhores amigos nos poupam a ditos e mexericos, a não ser que o solicitemos, ou com o fito de nos prevenirem. No caso pessoal, prefiro que não me digam mal de ninguém e não me digam quem possa dizer ou querer-me mal. O fundamental é saber e sentir que as pessoas amigas são amigas, e que podemos confiar nelas porque confiam em nós.
       Jesus não valoriza muito a opinião pública.
       Nos dias em que transcorre a nossa vida bem sabemos como a opinião pública é incontornável. Num debate entre políticos, como exemplo, pouco importa o debate em si mesmo, ou a entrevista, mas o que vai contar é a opinião pública, ou melhor, a opinião dos "fazedores de opinião", os comentadores afetos aos próprios, defendendo-os, ou dos pretensamente imparciais.

       3 – Vem a pergunta mais importante: «E vós, quem dizeis que Eu sou?».
       Pedro responde, em nome próprio, mas também assumindo a primazia entre os discípulos, e respondendo por nós, como discípulos deste tempo: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo».
       Quem é Jesus para mim? Que importância tem na minha vida? Que influência tem nas minhas escolhas? Sou o mesmo por ser cristão? Em que é que sou diferente daqueles que não são cristãos? Ou daqueles que não são praticantes? Vivo como se Deus não existisse? Ou Deus tem um papel fundamental em tudo o que faço e em tudo o que digo?
       Para mim, Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus que me revela a minha identidade e me desafia a ser irmão dos outros? Ou é um personagem interessante, que falava bem e que tinha gestos originais, mas que morreu e faz parte do passado? Será Alguém que revolucionou ideias e formas de vida, mas não Deus?
       A nossa ligação a Jesus terá de ser "em primeira mão". Se for um carro, talvez fique mais barato em segunda mão, ainda que a garantia possa não ser tão fiável ou por tanto tempo. O que se diz, como víamos, é diferente se for em primeira, em segunda, ou terceira mão. Em absoluto, só poderemos pôr a mão no fogo quando o que transmitimos vem de nós. A nossa fé e a nossa adesão a Jesus Cristo faz-se, primeiramente, pelo que os nossos pais, familiares, comunidade, nos legou. Há uma altura da nossa vida, no amadurecimento da nossa fé, que teremos de ser nós a encontrar-nos com Jesus. Seguimo-l'O em primeira mão. Porque é nosso amigo. Porque nos faz bem. Porque a nossa vida é diferente tendo-O em nós, fazendo parte das nossas principais escolhas.
       A resposta que dermos implica-nos. Se Ele é Deus, então a nossa identidade com Ele deve levar-nos a agir com a mesma disponibilidade e com o mesmo amor, servindo e dando a vida a favor dos irmãos.
       4 – O diálogo com Pedro continua. Jesus assegura-lhe uma missão especial: «Feliz de ti, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos Céus. Também Eu te digo: Tu és Pedro; sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos Céus».
       Corresponderá à promessa de Isaías: «…porei aos seus ombros a chave da casa de David: há de abrir, sem que ninguém possa fechar; há de fechar, sem que ninguém possa abrir. Fixá-lo-ei como uma estaca em lugar firme e ele será um trono de glória para a casa de seu pai».
       Ainda que a profecia se refira ao Messias, para nós a Jesus Cristo, será realizada historicamente. A Igreja é o Corpo de Cristo, com uma configuração sociológica e temporal. Nasce e vive e orienta-se para a Trindade, mas conta com a nossa frágil condição humana, e como tal precisa de guias que, em nome de Jesus, possam iluminar os caminhos deste mundo, como irmãos mais velhos no seguimento do Mestre. Jesus confia em Pedro. E nos Apóstolos. E em nós. Somos responsáveis uns pelos outros, somos irmãos, somos herdeiros de Jesus. Ajudamos os outros a ligar-se ao Céu ou contribuímos para que outros esteja desligados.
       É grande o nosso encargo: ligarmo-nos com os outros ao Céu. Mas é grande a misericórdia de Deus que nos sossega com o Seu Espírito em nós, fortalecendo-nos com a Sua presença.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Is 22, 19-23; Sl 137 (138)Rom 11, 33-36; Mt 16, 13-20.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

LEITURAS: Walter Kasper - o EVANGELHO da FAMÍLIA

WALTER KASPAER (2014). O Evangelho da Família. Prior Velho: Paulinas Editora. 72 páginas.
       No dia 17 de março de 2013, o Papa Francisco, na oração do ANGELUS, a primeira aparição na varanda do Palácio Apostólico, referiu que a leitura de um livro de Walter Kasper, sobre a misericórdia de Deus, lhe tinha feito muito bem. Menos de um ano depois, Walter Kasper recebeu o convite do Papa para refletir sobre a problemática da família, tendo em conta o Sínodo Extraordinário dos Bispos, no outono de 2014, e o Sínodo ordinário dos Bispos, em 2015, que terão como pano de fundo os "Desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização".
       Com efeito, foi enviado às Dioceses, paróquias, comunidades eclesiais, e disponibilizados em diferentes plataformas um extenso questionário procurando abranger os vários temas relacionados com a Família, dificuldades e potencialidades, a família e a Igreja, a família e a sociedade, novas formas de entender ou viver a família.
       No Consistório extraordinário dos Cardeais, 20 e 21 de fevereiro de 2014, coube a Walter Kasper a reflexão sobre a família, não antecipando conclusões do Sínodo, mas deixando pistas de reflexão, partindo da dinâmica bíblica, contextos, evoluções, conjugando a estrutura do matrimónio e da família com o anúncio do Reino de Deus, acentuando a misericórdia de Deus com a fidelidade às promessas feitas.
        Uma das problemática afloradas nesta apresentação, agora em livro, é a dos divorciados recasados, com a sugestão de uma prática pastoral de acolhimento, procurando dar respostas novas e acolhendo o contributo daqueles que vivem essas situações difíceis, para que a solução, o caminho encontrado, sob a sintonia do Papa, possa brotar dos anseios e preocupações das pessoas.
        Com grande sentido e abertura, o Cardeal avança com algumas hipóteses, para que a verdade esteja revestida da misericórdia de Deus, procurando que as respostas vão de encontro às sugestões das comunidades eclesiais de todo o mundo. A unidade a encontrar na reflexão não será fácil, mas como em outros momentos da história da Igreja, há que procurar um caminho comum, comprometendo-nos com a vivência do reino de Deus. É uma obrigação. Um compromisso. Um desafio, para que não se percam as gerações seguintes, dos filhos e dos netos.
       O livrinho, além da exposição feita aos Cardeais, apresenta alguns anexos explicativos das propostas apresentadas, entre as quais a sugestão do então professor Joseph Ratzinger (depois Papa Bento XVI) para se retomar de um modo novo a posição de Basílio, também partilhada pelo próprio Walter Kasper.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

JOSÉ ANTONIO PAGOLA - Volver a Jesús

JOSÉ ANTONIO PAGOLA(2014). Volver a Jesús. Hacia la renovación de las parroquias e comunidades. Madrid: PPC. 128 páginas.
       O teólogo espanhol é já nosso conhecido nestas andanças de livros, textos e sugestões. Tem-se dedicado a refletir sobre Jesus e sobre os Evangelhos, contextualizando a época em que Jesus viveu e procurando que a Mensagem seja significativa neste tempo.
       Neste pequeno livro, Pagola desafia precisamente a regressar a Jesus, à Sua mensagem, à Sua vida, gestos, postura, procurando ver como Jesus fazia, abrindo caminhos para viver ao Seu jeito nos dias em que nos é dado viver a nossa vida.
       Mergulhar no Evangelho. Reportar-nos ao essencial: amor, perdão, acolhimento, proximidade, grande intimidade com o Pai, opção pelos pobres, denúncia do mal, do pecado, da hipocrisia, dos poderosos que usam os pobres.
       O ponto de partilha é a Exortação Apostólica do Papa Francisco, a Alegria do Evangelho, que convoca os cristãos, todos os cristãos, a viverem com alegria a sua fé, como pessoas corajosas, sem medo de falar, de mostrar Jesus Cristo, saindo ao encontro de todos, mas primeiramente dos pobres, dos mais pobres. Agindo ao jeito de Jesus.
       O texto é também uma proposta pastoral, para formar os Grupos de Jesus, para a escuta do Evangelho, em que o centro seja Jesus, cujos encontros podem ser em casas particulares, sem rigidez quanto ao número de pessoas, em que a escuta e meditação do Evangelho sejam a referência. Obviamente estes grupos deverão estar atentos e poderão cooperar ativamente me dinâmicas pastorais e paroquiais. O Objetivo primeiro é escutar Jesus, deixar-se converter pela Sua Palavra, com ligação ao compromisso social.
       Ter a coragem de colocar fim a estruturas que já não convertem, não mobilizam, não libertam a pessoa.
Esta leitura pode ser muito interessante para os Conselhos Pastorais: mostrando o que realmente vale a pena resgatar, viver, anunciar. No final só uma conclusão: só Jesus Cristo, só Deus é definitivo. Converter-se de todo o coração a Jesus. As estruturas e as tradições hão de estar ao serviço do reino de Deus, como a Igreja, como os cristãos. Anunciar Jesus. Sair dos lugares de conforto, espevitar a fé, promover os dons de cada um em benefício de todos.
O castelhano é de fácil e acessível leitura, mas esperando um pouco logo estará disponível em português. O autor como o livro foi-nos recomendado, informando que a tradução para português está pronta, faltando a publicação. Aguardemos.
       Para quem não tenha lido a Exortação Apostólica de Francisco, a Alegria do Evangelho, seria oportuno ler agora, por exemplo, enquanto se aguarda a publicação deste livro em português. Perceber-se-á melhor o contexto, o ambiente desta proposta de Pagola.
       Segue a apresentação do livro pelo próprio José Antonio Pagola:

Sobre os grupos de Jesus: visitar a página Vida Nueva: AQUI

domingo, 17 de agosto de 2014

TIMOTHY RADCLIFFE - Imersos na Vida de Deus

TIMOTHY RADCLIFFE (2013). Imersos na Vida de Deus. Viver o Batismo e a Confirmação. Prior Velho: Paulinas Editora. 334 páginas.
       Segundo D. José Cordeiro, Bispo de Bragança-Miranda, "Timothy Radcliffe, um teólogo brilhante, partilha aqui o dizer indizível da vida de Deus em nós. Na sequência de tantos livros atraentes sobre a questão vital do Cristinianismo, oferece-nos agora um rasgado horizonte da narrativa dos sacramentos do Batismo e da Confirmação. Emerge aqui a fascinante aventura da vida de Deus" (contracapa).
       Dominicano, Radcliffe conduz-nos através dos diversos momentos do Batismo, como celebração, alargando à história, à cultura circundante, à literatura, citando autores bem conhecidos, mas também cheio de histórias do dia a dia, na família e no convento, com pessoas de diferentes origens. A redescoberta do Batismo como sacramento que nos faz imergir na vida de Jesus Cristo e nos compromete com as pessoas que nos rodeia, com a família, com os colegas de trabalho. Ser cristãos não é uma capa que se veste, cedendo a tradições ou ritualismos, mas algo que nos identifica com Jesus, nos faz viver com alegria. Ser cristão, fazer o que Ele faz, assumir uma postura de proximidade e de vida nova, abençoados pela presença de Deus em nós.
       Ser batizado é deixar-se transformar pelo Espírito de Deus. É um acontecimento único, de vida nova, que nos compromete com os outros e com a transformação do mundo, modificando em nós os que nos afasta dos outros. O cristianismo é antes de mais um encontro pessoal com Jesus Cristo, que nos assume como irmãos. É uma história de amor, de Deus por nós, que nos quer bem, que nos quer livres e felizes. Ser cristão não é algo triste ou melancólico. Faz-nos sentir livres, úteis, filhos amados de Deus. E como Jesus, o compromisso do serviço e da proximidade, do diálogo. Não deveremos ter o ensejo do pensamento único, mas com humildade vivermos criativamente em cultura de diálogo, de encontro. Há sempre dons e talentos que podemos descobrir noutros que também são filhos de Deus.
       O Batismo liberta-nos do mal, e filia-nos em Deus. O autor parte de diversas situações quotidianos. Em todas as idades precisamos de nos convertermos, de abrirmos o nosso coração e a nossa mente, deixando que Deus possa ser visto através de nós. Ser filhos de Deus também nos faz encarar o sofrimento e a morte na sua relatividade, como oportunidades para nos aproximarmos mais dos outros ou os deixarmos aproximar.
       A opção comprometida com os mais pobres é uma exigência própria dos batizados. Seguir Jesus Cristo leva-nos ao encontro dos mais desvalidos para ajudarmos, para promovermos a dignidade da pessoa humana, mesmo que a aparência nos repugne. Jesus, diante da mulher apanhada em flagrante adultério, homem para ela como mulher e não tanto para o seu pecado, ainda que o convite a ela, como a nós, seja um caminho novo de libertação, de vida nova. Ele reabilita-nos para saborearmos a vida em abundância.
       Se não nos tornarmos como crianças não entraremos no Reino do Deus. Ao sermos batizados somos assumidos como crianças diante de Deus, que é Pai. Mas, e olhando para o Sacramento da Confirmação, o coração de crianças mas em cristãos corajosos, cuja maturidade da fé um desafio permanente.

»» Vale a pena ler a recensão feita pela Livraria FUNDAMENTOS: AQUI.

sábado, 16 de agosto de 2014

XX Domingo do Tempo Comum - ano A - 17 de agosto

       1 – O amor de Deus não se circunscreve a um determinado círculo. É universal e concreto. Tem um Rosto. Uma Palavra. Um Corpo. Uma Vida. O amor de Deus visualiza-se em Jesus Cristo com palavras amáveis, comprovadas em gestos reabilitadores da dignidade humana. Em Jesus Cristo descobrimo-nos como irmãos, encontramo-nos como família, como filhos de Deus.
       A Encarnação de Deus realiza a redenção humana.
       Deus vem. Faz-Se um de nós. Dá-nos a Sua vida. Dá-nos o melhor de Si. O Seu maior e único amor: o Filho. Como facilmente verificamos, e como popularmente se diz, as moscas caçam-se com mel e nunca com o vinagre. O ser humano é salvo pelo amor, pela proximidade, pelo serviço. Nunca pela prepotência, pela escravização, pela instrumentalização.
       O percurso de Jesus leva-O ao encontro de povoações e de multidões. Porém, Ele não se perde em generalizações ou boas intenções. Está disponível. É todo ouvido, acolhimento. Acolhe o Amor do Pai. Acolhe-nos e envolve-nos nesse Amor maior. Sem fronteiras.
       Na região de Tiro e de Sidónia, uma mulher, estrangeira, cananeia, faz-se ouvir: «Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim. Minha filha está cruelmente atormentada por um demónio».
       Aparentemente há um diálogo de surdos. Veja-se a guerra que se desenrola atualmente em Israel, com os israelitas de um lado e os palestinianos do outro (religiosa e maioritariamente: de um lado judeus e do outro muçulmanos). Breves tréguas, mas logo surge um disparo e a violência continua. Uma cananeia/palestiniana aproxima-se de um judeu para lhe pedir a cura da filha.
       Jesus não lhe responde e os discípulos intercedem: «Atende-a, porque ela vem a gritar atrás de nós». A preocupação dos discípulos não é a mulher e as suas necessidades, mas o facto de ela estar a incomodar e a fazer cair atenções desnecessárias sobre Jesus. Então Jesus responde o que os discípulos e as pessoas que os acompanham estavam à espera: «Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel... Não é justo que se tome o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos».
       Esta era a posição oficial e popular: o Messias de Deus viria para restaurar o povo de Israel, como nação escolhida e protegida por Deus.
       A mulher não se cala. Como nenhuma mãe se cala quando em causa está o bem dos filhos: «Socorre-me, Senhor... Também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos».
       Jesus não Se faz rogado e responde-lhe: «Mulher, é grande a tua fé. Faça-se como desejas». Esta mulher e mãe consegue o que queria: a cura da filha. O amor salva-nos. Expande o nosso coração. Faz-nos pensar nos outros e agir em prol deles.
       2 – A esperança de Israel funda-se na Palavra de Deus, na promessa dos Profetas. Em momentos de perseguição, de violência e de êxodo forçado, os judeus esperam que Deus possa resgatá-los, para que voltem a ser um povo próspero, forte, no qual resplandeça a bênção de Deus. Os profetas acalentam a fé do povo, com nuances diferentes, mas sempre no sentido de libertação e de reunião do povo. O tempo presente, por mais amargo que seja, é de expiação e de provação para dias melhores.
       Quando Jesus aparece nas margens e entre o povo a pregar a proximidade do Reino de Deus, antecedido e sancionado por João Batista, os ouvidos estão atentos para as possibilidades: será Ele o Messias? Vamos ver mais de perto, não vamos perder esta oportunidade! Poderemos ser os primeiros a usufruir da força e da benevolência de Deus. Há sinais evidentes que a promessa de Deus vai cumprir-se. Falta um protagonista. Um Messias. Um novo Moisés. Um novo David. A fim de resgatar o povo. Ele porá fim ao domínio de povos estrangeiros, há de afastar os povos opressores, colocar-se-á firme contra o controlo romano, no caso presente.
       Os discípulos são filhos do seu tempo e da cultura judaica. Quando veem Jesus, incentivados pelos Batista, seguem-n'O. Não querem perder o barco. Muitas serão as ocasiões em que discutem entre eles quem poderá ter o melhor lugar, qual beneficiará mais dos favores de Jesus. Aproxima-se a Cruz e mesmo assim os discípulos continuam a disputar lugares, sem nada entenderem.
       Há grupos de judeus que se opõem claramente a Jesus. Porquê? Por razões parecidas com as dos discípulos. Vivem mais ou menos tranquilos. Sob domínio estrangeiro mas garantiram uma vida confortável, para si, suas famílias e círculos próximos. Jesus pode provocar uma rebelião que irrite as autoridades estrangeiras, podendo ficar arredados dos privilégios que mantêm. Os discípulos permanecem perto para terem mais. Alguns grupos querem silenciar Jesus para não perderem nada do que têm.
       Por outro lado, também esperam um Messias que os promova, cujo poderio afaste os romanos, dando-lhes ainda mais regalias. A primeira resposta de Jesus à cananeia outra coisa não faz do que dar largas ao pensamento da maioria dos judeus, incluindo os seus discípulos.
       3 – O clamor da cananeia, é também o clamor dos salmistas, é o nosso clamor: "Deus Se compadeça de nós e nos dê a sua bênção, resplandeça sobre nós a luz do seu rosto. Na terra se conhecerão os vossos caminhos e entre os povos a vossa salvação". Se Deus é Pai e nos ama com amor de Mãe não deixará de nos escutar e vir em auxílio das nossas preces.
       Na verdade, Jesus sublinha esta dinâmica de bênção e de eleição. O povo de Israel fora escolhido para ser um instrumento de salvação. Como promessa a Abraão, n'Ele serão abençoados todos os povos da terra. Não se estranham as palavras do profeta: «Respeitai o direito, praticai a justiça, porque a minha salvação está perto e a minha justiça não tardará a manifestar-se. Quanto aos estrangeiros que desejam unir-se ao Senhor para O servirem, para amarem o seu nome e serem seus servos, se guardarem o sábado, sem o profanarem, se forem fiéis à minha aliança, hei de conduzi-los ao meu santo monte, hei-de enchê-los de alegria na minha casa de oração. Os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceites no meu altar, porque a minha casa será chamada 'casa de oração para todos os povos'».
       Por aqui se vê a lucidez de Isaías que alarga a Aliança a todos os povos da terra.
       São Paulo depara-se, num tempo posterior, mas próximo do contexto dos evangelhos, com a discussão que ainda se faz sentir e que leva alguns judeus a dar pouco crédito a Jesus e pouco crédito aos seus discípulos. Seria mais uma farsa, um logro com promessas vãs e que terá reflexo nas primeiras comunidades cristãs, inclusivas de judeus nativos ou da diáspora e de pagãos: aguardavam que a morte e ressurreição de Jesus desse lugar à restauração de Israel, em definitivo. Como aparentemente nada acontece, vem o desencanto. Os apóstolos, à luz da Páscoa, terão uma missão exigente de apontarem para o Reino de Deus que já opera e não para um reino de poder e de violência que substitua o existente, trocando apenas os protagonistas.

       4 – Escutemos as palavras de São Paulo:
«É a vós, os gentios, que eu falo: Enquanto eu for Apóstolo dos gentios, procurarei prestigiar o meu ministério a ver se provoco o ciúme dos homens da minha raça e salvo alguns deles. Porque, se da sua rejeição resultou a reconciliação do mundo, o que será a sua reintegração senão uma ressurreição de entre os mortos? Porque os dons e o chamamento de Deus são irrevogáveis. Vós fostes outrora desobedientes a Deus e agora alcançastes misericórdia, devido à desobediência dos judeus. Assim também eles desobedecem agora, de modo que, devido à misericórdia obtida por vós, também eles agora alcancem misericórdia. Efetivamente, Deus encerrou a todos na desobediência, para usar de misericórdia para com todos».
       A dialética do apóstolo encerra-nos a todos na misericórdia de Deus, judeus e gregos, homens e mulheres, pela obediência, pela escuta da Palavra que nos transforma, alcançaremos de Deus a misericórdia. Aquela mulher olhou para Jesus e percebeu que Ele era um homem de Deus e, por conseguinte, não deixaria de olhar para a humildade da sua serva, para o seu amor, para a sua fé.
       Quando sentirmos que a vida nos escapa, tenhamos a ousadia da fé para nos colocarmos nas mãos de Deus.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Is 56, 1.6-7;Sl 66 (67) Rom 11, 13-15.29-32; Mt 15, 21-28.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Quem é o maior no reino dos Céus?

       Os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-Lhe: «Quem é o maior no reino dos Céus?». Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse-lhes: «Em verdade vos digo: Se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, não entrareis no reino dos Céus. Quem for humilde como esta criança, esse será o maior no reino dos Céus. E quem acolher em meu nome uma criança como esta, acolhe-Me a Mim. Vede bem. Não desprezeis um só destes pequeninos. Eu vos digo que os seus Anjos vêem constantemente o rosto de meu Pai que está nos Céus». Jesus disse ainda: «Que vos parece? Se um homem tiver cem ovelhas e uma delas se tresmalhar, não deixará as noventa e nove nos montes para ir procurar a que anda tresmalhada? E se chegar a encontrá-la, em verdade vos digo que se alegra mais por causa dela do que pelas noventa e nove que não se tresmalharam. Assim também, não é da vontade de meu Pai que está nos Céus que se perca um só destes pequeninos» (Mt 18, 1-5.10.12-14).

       A pergunta dos discípulos mostra a imaturidade da sua fé. Num primeiro momento, os discípulos seguem Jesus por motivos que pouco têm a ver com o reino de Deus proposto e vivido por Jesus. Ele sabe disso. Quando os chama tem a consciência do caminho a percorrer e dos riscos inerentes. Como refere Augusto Cury, ao debruçar-se sobre a inteligência de Jesus, o discípulo mais capaz, talvez o único a ser contratado pelo departamento de pessoal de qualquer empresa seria mesmo Judas Iscariostes e que viria a traí-l'O. Jesus chama. Acredita no ser humano e na sua capacidade de conversão.
       Como tantos judeus, os discípulos aguardavam o Messias para restaurar Israel, um Messias político, revolucionário, poderoso, que substituísse o poder instalado e assumisse o poder. Quem O seguisse teria a sorte de assumir com Ele um lugar de chefia, de poder. Jesus vai esclarecendo, anunciando o caminho da Cruz, consequência do amor, e apresenta o serviço como única forma de poder para estar no Reino de Deus. Quem quiser ser o maior será o servo de todos.
       Jesus chama uma criança e simplifica. O reino de Deus é para aqueles que se tornarem como crianças, dóceis, disponíveis para acolher, para dar, para amar. E na mesma onda, o desafia para cuidar sobretudo dos mais frágeis, as crianças, os idosos, como muitas vezes referem o Papa Francisco, os extremos da sociedade, e todas as outras pessoas que estão vulneráveis por questões de saúde, de trabalho ou falta dele, pela exclusão sócio-cultural e económica.
       Mas há mais. O discípulo de Cristo tem que ir em busca de toda a ovelha que anda tresmalhada. Não se trata de esperar e de ter as portas abertas, mas de sair e ir ao encontro já não da ovelha mas talvez das noventa e nove que agora estão tresmalhadas, como tem vindo a acentuar o Papa Francisco. A Igreja tem como referência Jesus Cristo e o Seu pastoreio, não pode ser autorreferencial, tem de sair ao encontro das ovelhas que vivem sem pastor...

sábado, 9 de agosto de 2014

XIX Domingo do Tempo Comum - ano A - 10 de agosto

       1 – Jesus é tão humano e tão parecido connosco que talvez, como aconteceu naquele tempo, tenhamos muitas dificuldades em reconhecê-l'O no meio de nós. Continuamos às aranhas para O reconhecer, pois Ele está em cada pessoa, principalmente naquela cuja aparência nos faz desviar o olhar, suster a respiração, e, silenciosamente, passar ao longe e ao largo. E lá ressoam as palavras do juízo final: o que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos é a Mim que o fazeis; o que deixardes de fazer ao mais pequenino é a Mim que deixais de o fazer.
       Não admira que muitos contemporâneos (no sentido histórico, pois no sentido teológico, Jesus é contemporâneo de todas as gerações) não O reconhecessem como Messias, como Filho de Deus. Mesmo os discípulos levam muito tempo a entender que Aquele Jesus é mais do que aquilo que eles veem. Humanamente falando, cada um é mais do que aquilo que mostra ou do que aquilo que os outros veem. Somos um mistério que não se esgota no espaço de uma vida. Por maioria de razão, o mistério de Jesus ultrapassa todas as expectativas e todas as definições.
       O evangelho deste domingo mostra a humanidade de Jesus que Se revela na delicadeza e num ou noutro pormenor. Ao escutarmos/lermos esta passagem, virá ao de cima a leveza de Jesus que Lhe permite andar sobre a água. Mas não apenas isso. Depois de ter saciado a fome à multidão, Jesus envia os discípulos para a outra margem. E o que é que Ele fica a fazer? A despedir-se da multidão. Curioso apontamento de Mateus. Jesus atrasa o seu passo para despedir a multidão. Atenção. Cuidado. Proximidade. Poderá deduzir-se que Jesus utilizou tempo para ir falando com as pessoas de forma mais informal.
       Outro momento, não menos importante, é a oração. Depois da multidão ter ido embora, Jesus enleva-se em oração ao Pai, e irá ter com os discípulos. A leveza da oração eleva-o acima da água!
       2 – Já noite dentro, Jesus caminha sobre o mar e vai ter com os seus discípulos, que estão assustados com a agitação do mar e com a presença daquela figura que julgam ser um fantasma. A palavra de Jesus desperta-os e acalma-os: «Tende confiança. Sou Eu. Não temais».
       Como seria bom que as nossas palavras dessem confiança aos outros e na nossa voz eles encontrassem repouso.
       Pedro, o discípulo sempre pronto para tudo, testa Jesus: «Se és Tu, Senhor, manda-me ir ter contigo sobre as águas». «Vem!» – disse Jesus. Então, Pedro desceu do barco e caminhou sobre as águas, para ir ter com Jesus. Mas, sentindo a violência do vento e começando a afundar-se, gritou: «Salva-me, Senhor!». Jesus estendeu-lhe logo a mão e segurou-o. Depois disse-lhe: «Homem de pouca fé, porque duvidaste?». Logo que subiram para o barco, o vento amainou. Então, os que estavam no barco prostraram-se diante de Jesus, e disseram-Lhe: «Tu és verdadeiramente o Filho de Deus».
       Queremos acreditar! A fé faz-nos partir ao encontro dos outros. Mas nem tudo é como sonhámos, advêm as dificuldades no caminho. Assalta-nos a dúvida e a hesitação. Será o Senhor, será que é isto que Ele me pede? Estará comigo nesta missão? Se é Ele que eu sirvo, por quê tantas chatices, tantas contrariedades? Se faço tudo em Seu nome, por quê tanta crítica, tanta contestação?!
       O desafio de Jesus não é para vivermos comodamente, anodicamente, sem adversidades. O chão pode ser aquoso, sujeito a tempestades e ventanias. Jesus é a nossa segurança. Ele não nos falha. A Sua mão permanece estendida. Se caminhamos sem Ele, se caminhamos sem levantarmos o olhar para Ele, acabamos no charco. É como andar de bicicleta, quanto mais olhamos para os pedais, para o nosso esforço, mais facilmente caímos. Se levantamos o olhar para a frente, para o caminho que falta percorrer, veremos melhor o chão que pisamos e o mundo que nos rodeia.
       Pedro distraiu-se, fixou-se nas suas forças, e nas seguranças temporais. Com as primeiras dificuldades, vacilou na confiança que colocara no mandato, na palavra de Jesus. Mas vai a tempo, olha para o Mestre, chama por Ele: salva-Me Senhor. Quando caminhamos por nós, apoiados nos nossos pés, nas nossas convicções, nos nossos propósitos, por melhores que sejam, diante das adversidades, vacilamos e caímos, e se nos descuidamos afundamos. Tenhamos a humildade de regressarmos a Jesus, invocando, suplicando, pedindo, confiando-nos à Sua mão protetora. Ele segura-nos com firmeza, ainda que sintamos a violência do chão, o vendaval do sofrimento, das perdas, as traições e as inimizades. Ele segura-nos para lá de todas as circunstâncias, mesmo que não nos livre do esforço, do trabalho, do sacrifício e do sofrimento. A Sua mão conduz-nos por meio das tempestades que vão surgindo na nossa vida. Não nos falte a fé que nos guia para Ele.
       3 – A luz da fé traz-nos uma paz maior que nos sustenta para lá das intempéries, além das dúvidas e dos obstáculos, faz-nos perceber que as pedras que encontramos ao longo do caminho, no dizer do poeta, nos ajudam a ir mais longe, fortalecem-nos os músculos para caminharmos mais tempo; com elas podemos ora construir um castelo onde caibamos como irmãos, degraus que nos levam a enfrentar situações ainda mais difíceis e podem sempre ajudar-nos a fazer pontes para os outros. Se olhamos para os obstáculos como empecilho, achando que o mundo inteiro está contra nós e que o próprio Deus Se esconde de nós, será muito fácil perder-nos.
       Deus cabe na palma da nossa mão. Deus cabe dentro do nosso coração. É tão grande o Seu amor, é tão alto o Seu perdão, é tão extensa a Sua Omnipotência que cabe todo em nós, ainda que nenhum de nós O abarque ou O encerre em si mesmo. Cabe no meu e no teu coração. Na minha e na tua vida. Deus cabe na história e no tempo. Cabe no mais pequenino, no mais simples, no mais pobre. Deus cabe em Nazaré, na manjedoura, entre palhas, envolto, como qualquer um de nós, nos panos de amor e de ternura com que a Mãe O aquece. Ele cabe numa cruz. Dois pedaços de madeira, maiores que Ele. Mas cabe aí. Cabe onde cabe cada um de nós. Na vida e na morte. Na alegria e no sofrimento. Cabe no chão que pisamos, numa fenda que se abre na rocha. Ele cabe em nós. Sem forçar, sem Se impor. Cabe na nossa vontade de O querermos e de O acolhermos. Talvez não Se perceba na violência e na força, ainda que para aí O arrastemos. Cabe na brisa da tarde. É tão grande o Seu amor por nós, que Ele usa o Seu poder para Se deixar ver, para Se deixar tocar, para Se deixar amar.
       Elias descobre que Deus se encontra na brisa, no silêncio, na calmaria do deserto.
       "O Senhor passou. Diante d’Ele, uma forte rajada de vento fendia as montanhas e quebrava os rochedos; mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento, sentiu-se um terramoto; mas o Senhor não estava no terramoto. Depois do terramoto, acendeu-se um fogo; mas o Senhor não estava no fogo. Depois do fogo, ouviu-se uma ligeira brisa. Quando a ouviu, Elias cobriu o rosto com o manto, saiu e ficou à entrada da gruta". Talvez precisemos de ver como Deus está na brisa suave, ligeira. O bem não faz ruído. O amor não faz ruído. Deus não impõe a Sua presença. Como não lembrar novamente o barulho que fazem as notícias sobre desgraças, a maledicência, a cusquice. Talvez precisemos, todos, de fazer um pouco mais de silêncio para que Deus fale em nós.

       4 – A segunda leitura, em muitos domingos, traz-nos o testemunho de Paulo. Tudo o que faz gira à volta de Jesus, no serviço do Evangelho, procurando que todos tenham acesso à graça de Deus e possam tornar-se livres para amar, para viver, para descobrir o que traz a paz, a alegria, a vida nova em Deus.
       No seu peregrinar vai encontrar muitas contrariedades, entre os amigos e nas comunidades por ele fundadas. Ora aplaudido, ora expulso, perseguido, preso, injuriado. Sabe que as tempestades, a agitação do mar, a ventania, o ruído, as disputas por lugares e pelo poder, estão sempre por perto.
       Ainda que fustigado pelos contratempos, Paulo faz emergir a sua Fé em Jesus Cristo, uma esperança firme e inabalável em Deus, que Se aproxima de nós por meio de Jesus Cristo.
       «Sinto uma grande tristeza e uma dor contínua no meu coração. Quisera eu próprio ser anátema, separado de Cristo para bem dos meus irmãos, que são do mesmo sangue que eu, que são israelitas, a quem pertencem a adoção filial, a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas, a quem pertencem os Patriarcas e de quem procede Cristo segundo a carne, Ele que está acima de todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos…»
       O propósito único de Paulo: testemunhar Jesus Cristo, e ganhar todos para o Seu reino de amor, de paz e de justiça, de salvação e misericórdia. Jesus vale todos os sacrifícios, todos os sofrimentos, vale a vida inteira.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): 1 Reis 19, 9a.11-13a; Sl 84 (85) Rom 9, 1-5; Mt 14, 22-33.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

E vós, quem dizeis que Eu sou?

       Jesus perguntou: «E vós, quem dizeis que Eu sou?». Então, Simão Pedro tomou a palavra e disse: «Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo». Jesus respondeu-lhe: «Feliz de ti, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos Céus. Também Eu te digo: Tu és Pedro; sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos Céus» (Mt 16, 13-23).
       "O saber não ocupa lugar". Neste ditado popular uma verdade muito simples que convida a saber e a descobrir sempre mais, pois é algo que não nos prejudica, não estorva, e pode ajudar-nos a ver a vida de outra maneira.
       O episódio do Evangelho desta quinta-feira diz-nos que a nossa relação com Jesus Cristo não é de mero conhecimento. Não basta saber muitas coisas sobre Jesus, mas saber quem é para nós, que implicações tem na nossa vida, como pode modificar as nossas opções?
       Diz-se, por exemplo, que ninguém conhece tão bem a Deus como o Diabo e nem por isso ele é crente ou seguidor da verdade que vem de Deus. Por outras palavras, o conhecer é importante, mas quando nos envolve e compromete com o seguimento.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Transfiguração do Senhor (Ano A)

Nota Histórica:
       A festa da Transfiguração, celebrada no Oriente desde o século V e no Ocidente a partir de 1457, faz-nos reviver um acontecimento importante da vida de Jesus, com reflexos na nossa vida.
       Situada antes do anúncio da Paixão e da Morte, a Transfiguração foi uma manifestação da vida divina, que está em Jesus. A luz do Tabor é, porém, uma antecipação do esplendor, que encherá a noite da Páscoa. Por isso, os Apóstolos, contemplando a glória divina na Pessoa de Jesus, ficaram preparados para os dolorosos acontecimentos, que iriam pôr à prova a sua fé. Vendo Jesus na Sua condição de servo, já não poderão esquecer a Sua condição divina.
       Anúncio da Páscoa, a Transfiguração encerra também uma promessa – a da nossa transfiguração. Jesus, com efeito, fez transparecer na Sua Humanidade a glória de que resplandecerá o seu Corpo Místico, a Igreja, na Sua vinda final.
       A nossa vida cristã é, pois, um processo de lenta transformação em Cristo. Iniciado no nosso Baptismo, completa-se na Eucaristia, «penhor da futura glória», que opera a nossa transformação, até atingirmos a imagem de Cristo glorioso.

      Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João seu irmão e levou-os, em particular, a um alto monte e transfigurou-Se diante deles: o seu rosto ficou resplandecente como o sol e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E apareceram Moisés e Elias a falar com Ele. Pedro disse a Jesus: «Senhor, como é bom estarmos aqui! Se quiseres, farei aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias». Ainda ele falava, quando uma nuvem luminosa os cobriu com a sua sombra e da nuvem uma voz dizia: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus toda a minha complacência. Escutai-O». Ao ouvirem estas palavras, os discípulos caíram de rosto por terra e assustaram-se muito. Então Jesus aproximou-se e, tocando-os, disse: «Levantai-vos e não temais». Erguendo os olhos, eles não viram mais ninguém, senão Jesus. Ao descerem do monte, Jesus deu-lhes esta ordem: «Não conteis a ninguém esta visão, até o Filho do homem ressuscitar dos mortos» (Ano A: Mt 17, 1-9). 

       A transfiguração é como um "rebuçado" dado por Jesus aos Apóstolos, para enfrentarem os momentos de dificuldade que se aproximam, quando o Mestre for perseguido, preso e levado à Cruz. Esta antecipação mostra a divindade de Jesus, para de novo assumir a nossa humanidade com toda a crueza que a limitação e a finitude podem envolver.
       Importa, em todas as situações, escutar a Sua voz. É a voz do Pai de entre as nuvens que ressoa por todo o universo.

sábado, 2 de agosto de 2014

XVIII Domingo do Tempo Comum - ano A - 3 de agosto

       1 – O AMOR de DEUS é a primeira e a maior bênção que podemos receber. Não é algo de abstrato, racional, ou simplesmente espiritual. Com efeito, quando percebemos o quanto Deus nos ama, a partir de então, a nossa vida muda para sempre e muda integralmente. Não é um jogo de palavras. É a realidade da vida, a experiência da história, a revolução das civilizações.
       O que é verdadeiramente mobilizador na nossa vida: o amor. O amor, os afetos, os sentimentos, as emoções. O amor é, no dizer de António Damásio, se a memória não nos atraiçoa, um daqueles sentimentos de fundo, o alicerce, essencial à vida humana. Desde o seio materno que a nova vida é alimentada com o sangue e com as proteínas da mãe, mas também pelo carinho, pela ternura, pelo amor da mãe, cujo corpo (todo o corpo, toda a vida da mulher que será mãe) age para proteger a vida. É tanto assim que este será sempre um argumento para defender a vida desde o ventre materno. A vida da mãe conjuga-se para abonar a vida do filho. E pela placenta passa amor. Hoje, mais do que nunca, se aceita que aquela nova vida humana recebe o exterior, antes de ter consciência, recebe, apercebe-se, e reage ao que vem de fora, a música clássica ou as discussões, o ambiente tranquilo da família ou a tensão depressiva e nervosa que a mãe lhe comunica.
       É pelo amor que vamos, é o amor que redime a nossa vida, que nos resgata da solidão e da treva. É o amor que dá sentido e sabor aos nossos dias. É o amor, nas suas diversas traduções, de carinho, beijo, toque, afago, proximidade, envolvimento físico e afetivo, que nos torna humanos. É o amor, em definitivo, que faz girar e evoluir a história, e a cultura, e a educação e as civilizações. O sexo pelo sexo, o dinheiro e os bens materiais, o poder e a ganância, quando muito são substitutos mais rápidos, mas que não resolvem o nosso anseio, o nosso desejo de eternidade. Só o amor promete e concede eternidade. Sem amor, ainda que vivamos (biologicamente), estamos mortos, ossos sem carne e sem vida. É no amor que nos descobrimos filhos de Deus, e nos consideramos irmãos. As piores doenças da atualidade, e que mais pessoas destroem, são precisamente as que resultam da falta de amor, de compreensão, de companhia. Pode dizer-se que a solidão é das "doenças" mais destrutivas dos nossos dias. Todos precisamos de um olhar que encontre o nosso olhar, de um sorriso que torne mais largo o nosso sorriso, de uma palavra que desperte os nossos ouvidos, de um silêncio que preencha o nosso coração. O amor é vida. O Amor que promete e concede eternidade é Deus.
       Como refere são Paulo, nada nos pode separar do amor de Deus. «Quem poderá separar-nos do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo ou a espada? Estou certo de que nem a morte nem a vida, nem os Anjos nem os Principados, nem o presente nem o futuro, nem as Potestades nem a altura nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que se manifestou em Cristo Jesus, Nosso Senhor».
       2 – Só o Amor tem a capacidade de Se tornar pequeno, Se reduzir ao mais simples e pequenino, só o Amor consegue fazer-Se ver pela humildade. Deus, o Senhor da força, em Jesus Cristo, abaixa-Se até Se deixar ver, tocar, até Se deixar matar. Pela brisa da tarde, o Senhor passeia entre os homens, entre iguais, carne da nossa carne, osso dos nossos ossos. Não acima, não à parte, não longe ou no exterior, não pela violência ou pelo poder. Mas pela delicadeza, pela pobreza, pela vida despida de preconceitos e ideias feitas, pelo AMOR.
       A Encarnação de Deus, traz-nos o Amor da eternidade. Reconcilia-nos. Assume-nos na nossa fraternidade. Em Jesus, Deus dá-nos a vida, resgata-nos do pecado e das trevas, do egoísmo que nos afasta dos outros, da inveja que nos destrói como família, da ganância que mata o sonho e o futuro. Ele entra no coração, na vida concreta. Ensina-nos que o AMOR se dá e se vive concretamente. Ao cair da tarde, os discípulos, com algum cuidado e talvez alguma sensibilidade, lembram a Jesus a multidão que se acercou para O ver, para O escutar: «Este local é deserto e a hora avançada. Manda embora toda esta gente, para que vá às aldeias comprar alimento». Perante um problema concreto, uma multidão faminta, a solução parece óbvia, e hoje ainda mais, quando se acentuam as desigualdades sociais, e a lógica de cada um, cada família, cada grupo partidário, cada lóbi empresarial, se governar e proteger os seus: cada um trate de se desenrascar. É uma lei que vai sendo assumida, a lei do desenrasque ou do salve-se quem puder.
       Jesus perentoriamente: «Não precisam de se ir embora; dai-lhes vós de comer».
       Belíssima pregação a de Jesus, poucas palavras, incisivas, concretas. Dai-lhes vós de comer. Não laveis as vossas mãos, não assobieis para o lado como se não fosse nada convosco. Não. Não os mandeis embora. Alguns desfalecerão pelo caminho, outros não têm como comprar alimento. Ponde mãos às obras e procurai soluções para lhes dardes de comer. Nem só de pão vive o homem, mas também de pão vive o homem.
       3 – Perante os milhentos problemas das sociedades seremos tentados pelo desânimo. Não há soluções mágicas. Eles que vão embora e resolvam. Estamos disponíveis para ouvir, para lhes falar, mas que podemos fazer? São tantos e com tantos problemas e nós tão poucos e com parcos recursos!
       Cada um de nós, em algum momento, diante de algum problema, terá concluído que não tinha nem forças, em meios, e por vezes nem vontade para o resolver ou ajudar a revolver. Mas por maiores que sejam os problemas, seguindo Jesus, nunca podemos desistir, renunciando a fazer o que quer que seja. Como refletimos noutros momentos, se não temos capacidade para construir uma casa, demos um tijolo, demos tempo e ajudemos a construí-la. Dai-lhes vós de comer.
       Só então os discípulos procuram uma solução ou mais uma justificação: «Não temos aqui senão cinco pães e dois peixes». Há alguma coisa, mas vão ficar todos com fome!
       Jesus ensina-nos que por mais pequena que seja a semente, o grão de trigo ou de mostarda, pode gerar a grandiosidade, quanto feito com amor, quando o ponto de partida é a bênção. Em vez de olhar à escassez, Jesus olha para o que tem entre mãos e reza. Só na oração o nosso coração se dilata de forma a reconhecermos os outros como irmãos. Como lembrava João Paulo II, numa das últimas mensagens para a Quaresma, quando partilhamos o pouco que temos dá para muitos, dará para todos. Na atualidade, com a evolução técnica e científica, na agricultura e na indústria, há alimentos suficientes para a humanidade inteira e no entanto existem milhares de pessoas subnutridas e a morrer à fome. Porquê? Injusta distribuição, ganância, açambarcamento dos recursos existentes. É o pecado das origens, Adão e Eva recolhem o fruto da árvore para si, esquecendo os outros. Quando assim é, a fome e a miséria, a pobreza e, consequentemente, a violência e a guerra, ganham terreno.
       Jesus "tomou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao Céu e recitou a bênção. Depois partiu os pães e deu-os aos discípulos e os discípulos deram-nos à multidão. Todos comeram e ficaram saciados. E, dos pedaços que sobraram, encheram doze cestos".
       Magistral lição de Jesus, a bênção faz-nos repartir o que temos. Quando partilhamos, chega para todos e para os que hão de vir. O milagre da multiplicação é também (e sobretudo) o milagre da partilha, da bênção e do amor.
       4 – Gratuidade e partilha, oração e bênção. Tudo tem origem no amor, tudo tem origem em Deus. O desafio de Jesus – dai-lhes vós de comer –, compromete-nos e opõe-se às nossas justificações: acaso sou guarda do meu irmão? Podemos até encontrar razões nas nossas limitações ou na falta de recursos de que dispomos, mas não convencem Jesus e, por conseguinte, não devem justificar qualquer tipo de resignação. Em sentido cristão, quando falámos em resignação não estamos a falar de demissão, mas de conformação à vontade de Deus, ao Seu Amor infinito, o que nos leva a fazer o mesmo que Ele faria.
       Isaías, o profeta que mais claramente anuncia a chegada do Messias, caracterizando os tempos messiânicos, pródigos de paz e humildade, de justiça e de amor, formula o convite do Senhor: «Todos vós que tendes sede, vinde à nascente das águas. Vós que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei. Vinde e comprai, sem dinheiro e sem despesa, vinho e leite. Porque gastais o vosso dinheiro naquilo que não alimenta e o vosso trabalho naquilo que não sacia?».
       Sem Deus, tudo é negociável. Com Deus tudo tem sentido, o trabalho e o lazer, o alimento e a convivência. Na atualidade verifica-se que tudo tem um preço, por vezes até a consciência. Mas chegamos a um ponto em que só a gratuidade nos faz irmãos e definitivamente nos compromete. Não há dinheiro que garanta a nossa felicidade, não há dinheiro que sacie a nossa humanidade. Só o AMOR. Sem contrapartidas.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Is 55, 1-3: Sl 144 (145); Rom 8, 35.37-39; Mt 14, 13-21.