sábado, 21 de janeiro de 2017

Domingo III do Tempo Comum - ano A - 22 de janeiro

       1 – O ser humano aspira a ser cada vez melhor, a possuir cada vez mais, a ter um controlo maior sobre a sua vida! "O homem ultrapassa infinitamente o homem" (Blaise Pascal). Está inscrito no coração de cada homem a adaptação à realidade que o circunda, desde que nasce, e a superar as dificuldades que o tolhem, a não estacionar numa fase da vida, a procurar superar-se a si mesmo, aprendendo mais, procurando novas ferramentas para facilitar a sua vida e a daqueles que lhe são próximos. Subentende-se a generosidade intrínseca do ser humano. O ser humano é naturalmente bom, a sociedade é que o corrompe (Jean-Jacques Rousseau). Sublinhe-se que esta é só meia verdade, já que a sociedade influi na pessoa e a pessoa influencia a sociedade em cada tempo.
       Este superar-se e procurar ultrapassar os limites, criando, inovando, desenvolvendo, de maneira a que nem o corpo nem o espírito paralisem este desejo, esta vontade de transformar o mundo, de superar os condicionamentos do tempo e do espaço, para viver mais tempo, para estar em todo o lado, acompanha-nos durante toda a vida.
       A conversão, recorrente no Evangelho, traduz este anseio do ser humano em ultrapassar as dificuldades, sem as contornar, mas assumindo-as, carregando-as, não como fardo, mas como experiência motivadora que nos fortalece e enriquece. O arrependimento, para crer no Evangelho, é o vínculo à humanização da sociedade. Não basta querer mais. É urgente que o mais que se quer seja partilha, que o trabalho e o génio sejam dom e tarefa, acolhendo o amor de Deus e espalhando-o por todos, em tudo o que se diz e em tudo o que se faz. E, desta forma, esta vontade em “ser mais” deverá ser sobretudo da ordem do ser e menos da ordem do ter. É o SER que nos humaniza, é o ser que nos coloca em relação com os outros. Antes, o SER de Deus vem até nós e Se relaciona connosco, remetendo a nossa relação com os outros para esta relação primeira e fontal (Deus é a fonte, é Ele que toma a iniciativa de nos criar e de nos salvar), purificando-a de qualquer instrumentalização ou idolatria.
       2 – O ministério de Jesus e de João Batista não se contrapõe nem se justapõe. A mensagem de Jesus não recusa nem anula a mensagem de João, mas também não é sequencial. Entrelaçam-se. João prepara, dulcifica as mentes e os corações, adverte, desafia à conversão e à mudança de vida, para que um olhar renovado possa ver e reconhecer Aquele que há de vir da parte de Deus. Se o olhar é turvo, embaciado, não perceberá a presença de Deus no mundo e na história.
       Jesus é novidade, pois é MAIS que o Messias esperado, o Rei prometido ou um qualquer Profeta. É o próprio filho de Deus, Deus connosco. Irrompe no tempo, para ser Um de nós. Vêm de Deus, é Filho de Deus, para nascer e crescer como filho do Homem e para caminhar connosco, confundindo-Se, propondo a Sua mensagem de amor e de perdão, convocando-nos, pelas palavras e pelos gestos, a vivermos como Ele, com compaixão e ternura, em lógica de serviço para gastarmos a vida inteira a favor dos outros.
       Jesus não faz tudo sozinho! Deus é Pai e Filho e Espírito Santo. É comunidade de vida e de amor, em Quem não há divisão nem contraposição nem confusão, em Quem o amor circula como a seiva pelas vides ou o sangue pelas veias. É esta comunidade que Jesus vem inaugurar na terra. N'Ele enxerta-se uma vida nova, novos céus e nova terra. D'Ele dimana, como rios de água a brotar da fonte, uma vida nova, de verdade e bênção, de alegria e justiça, de amor misericordioso. A vida divina que chega a nós, por Jesus Cristo, é um projeto que nos impele à imitação, a vivermos do mesmo jeito, deixando que seja o amor a circular nas nossas veias, no nosso olhar, no nosso coração, na nossa vida. Mais, a vida divina, em Jesus Cristo, já está entrelaçada na vida humana. A comunidade que somos chamados a formar já tem vida onde se agarrar, para crescer, já tem onde afundar as suas raízes.
       3 – Ao ser batizado por João no rio Jordão, como víamos na semana passada, Jesus assume publicamente a Sua missão de anunciar o Evangelho. Porém, segundo nos revela São Marcos, só depois da prisão de João Batista é que Jesus altera em definitivo e mais claramente a sua ação, retirando-Se para a Galileia. Deixa Nazaré e vai viver em Cafarnaum, terra à beira-mar. Se por um lado, a missão de Jesus não se sobrepõe à de João Batista, por outro lado, insere-se na mesma história da salvação. O elemento novo, que marca uma rutura de qualidade, é o facto de Jesus ser o Profeta por excelência, o próprio Filho do Deus Altíssimo, levando à plenitude o tempo e a história, inaugurando, em definitivo, um reino para Deus. «O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam na sombria região da morte, uma luz se levantou».
       Estas palavras ainda cheiram a Natal. «Multiplicastes a sua alegria, aumentastes o seu contentamento. Rejubilam na vossa presença, como os que se alegram no tempo da colheita, como exultam os que repartem despojos. Vós quebrastes, como no dia de Madiã, o jugo que pesava sobre o povo, o madeiro que ele tinha sobre os ombros e o bastão do opressor».
       Jesus é a luz que nos liberta de tudo o que nos oprime, inunda as trevas com a Sua presença, revitaliza os ossos ressequidos e potencia os sonhos de um mundo melhor, mais humano, mais fraterno.
       Conta comigo e contigo. Conta connosco. Não faz nada sozinho. Não Se impõe a partir do alto. Não emite uma ordem mantendo-Se à distância. Não há n'Ele traços de sobranceria. Abaixa-Se. Coloca-Se ao meu nível, ao teu nível. Faz-Se do nosso tamanho. E, por conseguinte, nos chama, nos desafia e nos envia. «Vinde e segui-Me e farei de vós pescadores de homens».
       Simão Pedro e André, João e Tiago escutam o Seu chamamento e deixam as redes, deixam o que estavam a fazer para se tornarem, com Ele, pescadores de homens. Logo O seguem no anúncio do Evangelho, pela Galileia, proclamando a salvação, curando as enfermidades e as doenças entre o povo.
       E nós, como respondemos ao chamamento de Jesus? Largamos as redes e as amarras que nos prendem aos preconceitos, ao conforto, ao nosso cantinho? Ou tornamo-nos discípulos missionários, acolhendo Jesus em todas as circunstâncias e levando-O a todos?

       4 – João Batista deixa-nos como herança a humildade e o apontar para Jesus. Como Precursor toma consciência que prepara o caminho do Senhor. Ganhou fama, arrastou centenas de pessoas ao deserto e ao Jordão, batizou o próprio Jesus, mas no final soube que a (sua) Voz tinha que dar lugar à Palavra (Jesus), e o deserto (onde prega) convida a entrar na Terra prometida (que para nós é Jesus): A sua missão cumpre-se ao mostrar o Messias de Deus. Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Sobre Ele desceu o Espírito Santo, Ele é mais forte do que eu, Ele batiza no fogo e no Espírito Santo. Os próprios discípulos de João compreendem este testemunho e seguem Jesus.
       O Apóstolo São Paulo, dirigindo-se à comunidade de Corinto, sublinha a primazia de Jesus Cristo. Uma primazia totalizante. Vem primeiro. É o fundador. Mas é também a referência e a meta de toda a evangelização. Poderá haver no meio de vós, diz o Apóstolo, alguns mais afetos a Pedro, a Apolo, a Paulo ou a Cristo, mas há um só Deus, que é Pai e que Se manifesta em plenitude no Seu Filho, Jesus Cristo, pelo Espírito Santo. Se a fé é a mesma, se o batismo é o mesmo, se Deus é Pai de todos, e todos somos irmãos em Cristo Jesus, não faz sentido haver contendas e ruturas. «Rogo-vos, pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que faleis todos a mesma linguagem e que não haja divisões entre vós, permanecendo bem unidos, no mesmo pensar e no mesmo agir». Todos recebeste o mesmo batismo de Jesus.
       Como João batista, como São Paulo, o cristão é discípulo missionário de Jesus, acolhendo-O, vivendo-O, testemunhando-O e anunciando o Seu Evangelho a toda a criatura, em toda a parte, em todo o tempo.


Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (A): Is 8, 23b – 9, 3 (9, 1-4); Sl 26 (27); 1 Cor 1, 10-13. 17; Mt 4, 12-23.

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