domingo, 31 de março de 2019

Homilia do Papa Francisco em Marrocos - 31/03/2019

«Quando ainda estava longe, o pai viu-o e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos» (Lc 15, 20).

       Assim nos leva o Evangelho ao coração da parábola onde se apresenta o comportamento do pai quando vê regressar o seu filho: comovido até às entranhas, não espera que ele chegue a casa, mas surpreende-o correndo ao seu encontro. Um filho ansiosamente esperado. Um pai comovido ao vê-lo regressar.
       Mas não foi a única vez que o pai correu. A sua alegria seria incompleta sem a presença do outro filho. Por isso, sai também ao seu encontro, para convidá-lo a tomar parte na festa (cf. 15, 28). Contudo o filho mais velho parece não gostar das festas de boas-vindas, custava-lhe suportar a alegria do pai, não reconhece o regresso do seu irmão: «esse teu filho» (15, 30) – dizia. Para ele, o irmão continua perdido, porque já o perdera no seu coração.
       Incapaz de participar na festa, não só não reconhece o irmão, mas tão-pouco reconhece o pai. Prefere ser órfão à fraternidade, o isolamento ao encontro, a amargura à festa. Custa-lhe não só compreender e perdoar a seu irmão, mas também aceitar ter um pai capaz de perdoar, disposto a esperar e velar por que ninguém fique fora; enfim, um pai capaz de sentir compaixão.

       No limiar daquela casa, parece manifestar-se o mistério da nossa humanidade: por um lado, temos a festa pelo filho reencontrado e, por outro, um certo sentimento de traição e indignação por se festejar o seu regresso. Por um lado, a hospitalidade para quem experimentara tal miséria e sofrimento, que chegara ao ponto de exalar o cheiro dos porcos e querer alimentar-se com o que eles comiam; por outro, a irritação e o ressentimento por se dar lugar a alguém que não era digno nem merecedor de tal abraço.
       Deste modo, mais uma vez vem à luz a tensão que se vive no meio da nossa gente e nas nossas comunidades, e até dentro de nós mesmos. Uma tensão que, a partir de Caim e Abel, mora em nós e que somos convidados a encarar: Quem tem direito a permanecer entre nós, ocupar um lugar à nossa mesa e nas nossas assembleias, nas nossas solicitudes e serviços, nas nossas praças e cidades? Parece continuar a ressoar aquela pergunta fratricida: Porventura sou eu o guardião do meu irmão? (cf. Gn 4, 9).
       No limiar daquela casa, surgem as divisões e desencontros, a agressividade e os conflitos que sempre atingirão as portas dos nossos grandes desejos, das nossas lutas pela fraternidade e pela possibilidade de cada pessoa experimentar desde já a sua condição e dignidade de filho.
       Mas no limiar daquela casa brilhará também em toda a sua claridade, sem lucubrações nem desculpas que lhe tirem força, o desejo do Pai: que todos os seus filhos tomem parte na sua alegria; que ninguém viva em condições desumanas como seu filho mais novo, nem na orfandade, isolamento ou amargura como o filho mais velho. O seu coração quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade (cf. 1 Tm 2, 4).

       Sem dúvida, há tantas circunstâncias que podem alimentar a divisão e o conflito; são inegáveis as situações que podem levar a afrontar-nos e dividir-nos. Não podemos negá-lo. Estamos sempre ameaçados pela tentação de crer no ódio e na vingança como formas legítimas de obter justiça de maneira rápida e eficaz. Mas a experiência diz-nos que a única coisa que conseguem o ódio, a divisão e a vingança é matar a alma da nossa gente, envenenar a esperança dos nossos filhos, destruir e fazer desaparecer tudo o que amamos.
       Por isso, Jesus convida-nos a fixar e contemplar o coração do Pai. Só a partir dele poderemos, cada dia, redescobrir-nos como irmãos. Só a partir deste horizonte amplo, capaz de nos ajudar a superar as nossas míopes lógicas de divisão, é que seremos capazes de alcançar um olhar que não pretenda obscurecer ou desmentir as nossas diferenças, buscando talvez uma unidade forçada ou uma marginalização silenciosa. Só se formos capazes diariamente de levantar os olhos para o céu e dizer Pai Nosso, é que poderemos entrar numa dinâmica que nos possibilite olhar e ousar viver, não como inimigos, mas como irmãos.

       «Tudo o que é meu é teu» (Lc 15, 31): diz o pai ao filho mais velho. E não se refere apenas aos bens materiais, mas a ser participante também do seu próprio amor e compaixão. Esta é a maior herança e riqueza do cristão. Com efeito, em vez de nos medirmos ou classificarmos com base numa condição moral, social, étnica ou religiosa, podemos reconhecer que existe outra condição que ninguém poderá apagar ou aniquilar, pois é puro dom: a condição de filhos amados, esperados e festejados pelo Pai.
       «Tudo o que é meu é teu», incluindo a minha capacidade de compaixão: diz-nos o Pai. Não caiamos na tentação de reduzir a nossa filiação a uma questão de leis e proibições, de deveres e seu cumprimento. A nossa filiação e a nossa missão nascerão, não de voluntarismos, legalismos, relativismos ou integrismos, mas da imploração feita por pessoas crentes que diariamente rezam com humildade e constância: Venha a nós o vosso Reino.
       A parábola do Evangelho deixa aberto o final. Vemos o pai rogar ao filho mais velho que entre e participe na festa da misericórdia; mas o evangelista nada diz acerca da decisão que ele tomou. Ter-se-á associado à festa? Podemos pensar que este final aberto sirva para cada comunidade, cada um de nós o escrever com a sua vida, o seu olhar e atitude para com os outros. O cristão sabe que, na casa do Pai, há muitas moradas; de fora, ficam apenas aqueles que não querem tomar parte na sua alegria.

       Queridos irmãos, quero agradecer-vos pela forma como dais testemunho do Evangelho da misericórdia nestas terras. Obrigado pelos esforços feitos para tornardes as vossas comunidades oásis de misericórdia. Animo-vos e encorajo a continuar a fazer crescer a cultura da misericórdia, uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença nem desvie o olhar ao ver o seu sofrimento (cf. Carta ap. Misericordia et misera, 20). Continuai ao lado dos humildes e dos pobres, daqueles que são rejeitados, abandonados e ignorados; continuai a ser sinal do abraço e do coração do Pai.
       Que o Misericordioso e o Clemente – como tantas vezes O invocam os nossos irmãos e irmãs muçulmanos – vos fortaleça e faça frutificar as obras do vosso amor.


Papa Francisco
Complexo Desportivo Príncipe Moulay Abdellah - Rabat, 31 de março de 2019)

quarta-feira, 20 de março de 2019

O Filho do homem vai ser entregue...

        Disse-lhes Jesus: «Vamos subir a Jerusalém e o Filho do homem vai ser entregue aos príncipes dos sacerdotes e aos escribas, que O condenarão à morte e O entregarão aos gentios, para ser por eles escarnecido, açoitado e crucificado. Mas ao terceiro dia Ele ressuscitará»...
       «Sabeis que os chefes das nações exercem domínio sobre elas e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem entre vós quiser tornar-se grande seja vosso servo e quem entre vós quiser ser o primeiro seja vosso escravo. Será como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção dos homens» (Mt 20, 17-28).
       Jesus não veio para ser servido como um príncipe ou como uma rei, mas veio ao mundo para servir e dar a vida a favor da humanidade inteira.
       Hoje, o Evangelho mostra-nos a anúncio da paixão de Jesus. A caminhada para Jerusalém - a cidade santa - é uma caminhada para o desfecho da missão, rumo à CRUZ. Neste trajeto, a mãe dos filhos de Zebedeu pede a Jesus que os coloque à Sua esquerda e à Sua direita. É a procura pelo melhor lugar. Os outros discípulos contestam, pois também disputam os lugares mais importantes. Jesus inverte a lógica: quem quiser ser o maior faça servo de todos. O serviço é o caminho de Jesus Cristo até ao Pai, até à eternidade.
       O fim anunciado, mas não o esperado pelos discípulos de Jesus. No II Domingo da Quaresma, o Evangelho apresentava-nos a Transfiguração de Jesus, que surge precisamente neste contexto, em que Jesus lhes diz que será entregue às autoridades dos judeus, e depois será morto.

Amai os vossos inimigos

       Disse Jesus aos seus discípulos: «Ouvistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus; pois Ele faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos. Se amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem a mesma coisa os publicanos? E se saudardes apenas os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito» (Mt 5, 43-48).
       O paradigma de Jesus é bem mais elevado e saudável que a nossa limitação. É certo que nós também sabemos que o perdão é muito mais eficaz e faz-nos melhor à saúde que o rancor, a inveja e o desejo de vingança. Mas quando nos fazem mal a nós, aí já se torna mais delicado perdoar. Mas, ainda que momentaneamente nos pareça humilhação, com o tempo perceberemos que é o único caminho que nos liberta, que nos faz sentir bem connosco, com o mundo e com Deus. Dar a outra face, amar até os inimigos, ser perfeitos como o Pai celeste é perfeito. É este o modelo de vida que Jesus nos propõe.
       Amar os nossos amigos é tarefa de fácil execução, não custa nada. Agora, amar os inimigos, aqueles de quem não gostamos, que nos fizeram mal ou a quem nós fizemos mal já é uma missão muito pesada, mas, garante Jesus, muito libertadora e que nos dignifica.
       Como é que podemos rezar por alguém que nos fez mal? Como é que podemos amar alguém que disse mal de nós? Como podemos nutrir sentimentos positivos por alguém que não vemos com bons olhos? Não é fácil, mas é o mandamento de Jesus. A referência é Deus Pai. O cristão não se fixa nos mínimos garantidos, mas almeja o máximo, a perfeição de Deus.

quinta-feira, 14 de março de 2019

Pedi e dar-se-vos-á, procurai e encontrareis...

        Disse Jesus aos seus discípulos: «Pedi e dar-se-vos-á, procurai e encontrareis, batei à porta e abrir-se-vos-á. Porque todo aquele que pede recebe, quem procura encontra e a quem bate à porta abrir-se-á. Qual de vós dará uma pedra a um filho que lhe pede pão, ou uma serpente se lhe pedir peixe? Ora, se vós que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está nos Céus as dará àqueles que Lhas pedem! Portanto, o que quiserdes que os homens vos façam fazei-lho vós também: esta é a Lei e os Profetas» (Mt 7, 7-12)
       A desafio é de Jesus: pedir. Rezar incessantemente, confiar em Deus, confiar que Deus atenderá à nossa súplica. Tal como o pai não deixa de atender ao seu filho, assim também Deus não deixará sem resposta e sem auxílio aqueles que Lhe pedem com fé.
       Veja-se a belíssima oração de Ester, na primeira leitura proposta para hoje:

       «Meu Senhor, nosso único Rei, vinde socorrer-me, porque estou só e não tenho outro auxílio senão Vós e corre perigo a minha vida. Desde criança, ouvi dizer na minha tribo paterna que Vós, Senhor, escolhestes Israel entre todos os povos e os nossos pais entre os seus antepassados, para serem a vossa herança perpétua, e cumpristes tudo o que lhes tínheis prometido. Lembrai-Vos de nós, Senhor, e manifestai-Vos no dia da nossa tribulação. Fortalecei-me, Rei dos deuses e Senhor dos poderosos. Ponde em meus lábios palavras harmoniosas, quando estiver na presença do leão, e mudai o seu coração, para que deteste o nosso inimigo e o arruíne com todos os seus cúmplices. Livrai-nos com a vossa mão; vinde socorrer-me no meu abandono, porque não tenho ninguém senão Vós, Senhor» (Est 4, 17).

terça-feira, 12 de março de 2019

Quando orardes dizei: Pai-nosso...

       "Orai assim: ‘Pai nosso, que estais nos Céus, santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso reino; seja feita a vossa vontade assim na terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido; e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal’. Porque se perdoardes aos homens as suas faltas, também o vosso Pai celeste vos perdoará. Mas se não perdoardes aos homens, também o vosso Pai não vos perdoará as vossas faltas" (Mt 6, 7-15).
       O Pai-nosso é a única oração que Jesus nos ensina. Concentra o essencial da mensagem cristã. Revelação de Deus como Pai, próximo, providente, preocupado com a humanidade. Soberania de Deus, nos céus e na terra. Realizando a vontade de Deus não nos sujeitaremos a ditaduras materiais ou humanas. A fé que nos conduz ao compromisso, a trabalhar honestamente pelo pão de cada dia, a partilhar do que temos com quem tem menos ou nada tem. A mensagem de perdão, bem acentuada por Jesus. O perdão traz-nos a saúde, liberta-nos do azedume, da indisposição. O perdão tem raiz no perdão de Deus. Deus ama-nos infinitamente, perdoando mesmo antes de iniciarmos o nosso processo de regresso. O sentirmo-nos perdoados deve levar-nos ao perdão ao próximo...

segunda-feira, 11 de março de 2019

Juízo final e as obras de misericórdia

       Disse Jesus aos seus discípulos: «Quando o Filho do homem vier na sua glória com todos os seus Anjos, sentar-Se-á no seu trono glorioso. Todas as nações se reunirão na sua presença e Ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos; e colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai; recebei como herança o reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-Me de comer; tive sede e destes-Me de beber; era peregrino e Me recolhestes; não tinha roupa e Me vestistes; estive doente e viestes visitar-Me; estava na prisão e fostes ver-Me’. Então os justos Lhe dirão: ‘Senhor, quando é que Te vimos com fome e Te demos de comer, ou com sede e Te demos de beber? Quando é que Te vimos peregrino e Te recolhemos, ou sem roupa e Te vestimos? Quando é que Te vimos doente ou na prisão e Te fomos ver?’. E o Rei lhes responderá: ‘Em verdade vos digo: Quantas vezes o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes’. Dirá então aos que estiverem à sua esquerda: ‘Afastai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e os seus anjos. Porque tive fome e não Me destes de comer; tive sede e não Me destes de beber; era peregrino e não Me recolhestes; estava sem roupa e não Me vestistes; estive doente e na prisão e não Me fostes visitar’. Então também eles Lhe hão-de perguntar: ‘Senhor, quando é que Te vimos com fome ou com sede, peregrino ou sem roupa, doente ou na prisão, e não Te prestámos assistência?’ E Ele lhes responderá: ‘Em verdade vos digo: Quantas vezes o deixastes de fazer a um dos meus irmãos mais pequeninos, também a Mim o deixastes de fazer’. Estes irão para o suplício eterno e os justos para a vida eterna» (Mt 25, 31-46).
       É-nos apresentado hoje o evangelho do Juízo Final. É a fé que nos salva, mas uma fé vivida e autenticada pela relação com os outros, pelo compromisso com os nossos irmãos em situação mais frágil. Claramente Jesus nos diz que Ele está na pessoa, em todas as pessoas, mas de forma privilegiada nos mais pobres, nos mais pequeninos. Ele Se fez pobre, identificado-Se com as nossas pobrezas e fraquezas, para nos elevar. O início da transformação do mundo inicia no exato momento em que as pessoas afastadas da cultura, da política, da sociedade, da religião, são tidas em conta.
       O cristianismo não é um exercício meramente intelectual. Não é uma filosofia envolvente. O cristianismo não é um conjunto de regras e/ou de verdades. Pode ser tudo isso. Antes de mais, porém, é a história de um encontro, de uma pessoa, de Jesus Cristo, que Se oferece por nós.
       Ser cristão implica-nos com Jesus. Implica que em tudo sigamos a lógica de Jesus, do perdão, da caridade, do dar a vida. A fé liga-nos a Deus, mas não pode, em nenhum situação afastar-nos dos outros. Não amamos a Deus se desprezarmos ou ignorarmos os irmãos.
       Agora e no final, Deus pedir-nos-á conta dos nossos irmãos. A reposta de Caim não vale: acaso sou guarda do meu irmão? Jesus dá claramente uma resposta diferente. Também nós teremos que a dar. Somos responsáveis uns pelos outros, especialmente responsáveis pelos que têm mais necessidade do nosso cuidado.

Tomáš Halík e Anselm Grün - O abandono de Deus

TOMÁŠ HALÍK e ANSELM GRÜN (2017). O Abandono de Deus. Prior Velho: Paulinas Editora. 224 páginas
       Tomáš Halík nasceu a 1 de junho de 1948, em Praga, na Checoslováquia num ambiente e numa família ateia ou a-religiosa. Batizados os pais pararam na Primeira Comunhão e, seguindo a tradição, batizam o filho, mas não têm mais ligações à Igreja. Por volta dos 18 anos, Halík encontra-se com a fé e, particularmente, com o cristianismo. Licenciou-se em Ciências Sociais e Humanas pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Charles, em Praga e, clandestinamente, estudou teologia em Praga, tendo entretanto começado a frequentar a Igreja, a escutar os sermões, tornando-se acólito e sentindo a vocação ao sacerdócio, foi ordenado em Erfurt, em 1978. Durante o período comunista, considerado inimigo do regime, é impedido da docência universitária. Assume, então, a profissão de psicoterapeuta de toxicodependentes, situando-se na linha dos padres operários, pois não pode revelar a sua identidade eclesial. Com o fim do comunismo no seu país natal, pode então viajar pelo mundo inteiro. Em 1989, Papa João Paulo II desafia-o a estudar na Universidade Pontifícia de Roma, Lateranense, frequentando aí um curso de pós-graduação. Frequentará outra pós graduação na Faculdade Pontifícia de Teologia de Wroclaw, na Polónia. Trabalhou de perto com o futuro Presidente Václav Havel e, após 1989, tornou-se num dos seus conselheiros. Depois da queda do Comunismo, serviu como Secretário-geral da Conferência Episcopal da República Checa (1990-93).
Halik continua a ser professor de sociologia na Universidade de Charles, em Praga (Departamento de Estudos Religiosos, Faculdade de Letras), pároco da Paróquia Académica e Presidente da Academia Cristã da República Checa. Em 1992, o Papa João Paulo II nomeou-o conselheiro do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso e, em 2009, o Papa Bento XVI concedeu-lhe o título de Monsenhor – Prelado Honorário de Sua Santidade.

       Anselm Grün, monge beneditino e doutor em teologia, nasceu em 1945 em Junkershausen, na Alemanha, numa ambiente católico, com a família comprometida com a Igreja, é sobrinho de um padre. Cresceu em Munique, ajudava na loja de materiais elétricos de seus pais. Aos 19 anos, entrou para a Abadia Beneditina Muensterschwarzach, perto de Würzburg, na Bavária, onde vive até hoje. Ali aprendeu sobre a arte da liderança e da gestão de pessoas descobrindo conexões entre a Regra de São Bento, a Bíblia e a psicologia moderna. Esse, provavelmente, tenha sido o ponto de partida para aperfeiçoar-se e dar início às suas atividades de conselheiro espiritual, palestrante e mestre em autoconhecimento. Nos seus livros e cursos, procura responder às necessidades e problemas mais comuns e urgentes da existência humana, como os desafios que conduzem ao amadurecimento, os relacionamentos pessoais, a presença de Deus no quotidiano e outras questões ligadas à espiritualidade, recorrendo aos seus conhecimentos filosóficos, teológicos e da tradição cristã, assim como de psicologia, meditação e contemplação. Publicou o seu primeiro livro em 1976. Hoje é autor de mais de 300 obras, traduzidas para 28 idiomas, sempre em linguagem acessível e clara. Em 2013, a Universidade de Friburgo, na Suíça, sediou o simpósio “Teologia e linguagem em Anselm Grün”, organizado pela cátedra de Teologia Pastoral, Pedagogia Religiosa e Homilética e pela Pastoral Universitária de Berna.

        Claro que a biografia destes dois homens de fé é importante. O livro que escreveram em conjunto tem muita das suas vidas de fé. Halík, nascido num ambiente ideologicamente contrário à fé, numa família, segundo o próprio, sem ligação à Igreja mas que vivia um humanismo secular. Foi descobrindo a fé e a Igreja, ordenando-se sacerdote clandestinamente. A democracia na Checoslováquia (a partir de 1 de janeiro de 1993, a Checoslováquia deu lugar à República Checa e  Eslováquia) trouxe novos desafios e problemas. Não foi fácil conciliar a Igreja que vivia clandestinamente com a Igreja que conviveu com o regime, sendo que agora já não havia um inimigo a combater. Um dos propósitos de Halík é o diálogo com a cultura, o seu ambiente natural é a Universidade, o ecumenismo, o diálogo com outras religiões, mas também o diálogo com os descrentes ou os ateus. Uma das figuras com que dialoga é com Nietzsche, o filósofo alemão que pregou a morte de Deus.
       Por sua vez, Anselm Grün nasce num ambiente cristão. Aos 19 anos entrou para uma abadia beneditina, aperfeiçoando a arte da liderança e da gestão de pessoas, relacionando Bíblia, regra de São Bento e psicologia moderna, escrevendo livros, ministrando cursos, procurando responder a problemas concretos das pessoas. A temática da fé está bem patente nas suas palestras e nos seus livros. No diálogo com o "ateísmo", Grün tem como interlocutor Ludwig Feuerbach, filósofo alemão, conhecido pelo seu ateísmo humanista.
       Ambos os autores têm uma referência comum: a psicologia da profundidade de CG. Jung. A psicologia pode não demonstrar Deus, mas conclui que a imagem de Deus está profundamente gravada na nossa psique. É possível que um crente esteja mais próximo de um ateu do que de outro crente. Para Halík o cristianismo é a religião dos paradoxos que abarca a Sexta-feira santa e a alegria da Páscoa. O negativo é quando só se fixa na sexta-feira santa e não se abre à Páscoa.
Grün recorre a Karl Rahner, para quem Deus é sempre um mistério incompreensível. E o mistério exige uma busca permanente. O crente está a caminho. Melhor, crente e descrente convivem em cada um de nós. Também nós, cristãos, fomos ateus durante 400 anos, assim considerados por judeus e romanos.

         A obra visa dialogar com os ateus, com os descrentes, não para a fé, para para a enriquecer com as interrogações dos descrentes, no reconhecimento que também as pessoas de fé passam por momentos de crise, de dúvida, como Santa Teresinha ou Madre Teresa de Calcutá, ou São João da Cruz. Por outro lado, a certeza que há muitas formas de ateísmo, ateísmo prático, de quem não quer saber, científico, de quem quer provar a inexistência de Deus, ao ateísmo do sofrimento, de quem perdeu alguém ou o sentido para a via, de quem busca. Os dogmáticos de um lado e de outro, excluem-se, talvez combatendo o que neles próprios é medo e trevas. Quem não se interroga, crente ou descrente, perde a oportunidade de aprender e de crescer.

Eu não vim chamar os justos, vim chamar os pecadores

       Jesus viu um publicano chamado Levi, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: «Segue-Me». Ele, deixando tudo, levantou-se e seguiu Jesus. Levi ofereceu-lhe um grande banquete em sua casa. Havia grande número de publicanos e de outras pessoas com eles à mesa. Os fariseus e os escribas murmuravam, dizendo aos discípulos: «Porque comeis e bebeis com os publicanos e os pecadores?» Então Jesus, tomando a palavra, disse-lhes: «Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes. Eu não vim chamar os justos, vim chamar os pecadores, para que se arrependam» ( Lc 5, 27-32).
       Neste primeiro sábado da Quaresma, o Evangelho apresenta-nos o chmamento de Mateus. O que virá a ser apóstolo e evangelista Mateus foi chamado por Jesus no seu posto de cobrança. Era conhecido como publicano, o que equivalia a ser considerado como traidor para com o povo judeu. Os cobradores de impostos estavam ao serviço do império romano, o povo opressor. E, por outro lado, os impostos eram muito elevados, pois visavam sustentar toda a máquina da opressão, soldados, oficiais, dirigentes, para lá dos impostos que beneficiavam directamente o cobrador.
       Jesus lança-lhe um desafio para mudar de vida. Chama-o no lugar em que se encontra. Também a nós nos chama e desafia onde nos encontramos, chama-nos na nossa existência concreta. Deixa tudo para seguir Jesus. Suscita entre alguns uma justificável apreensão, pelo facto de ser publicano. Mas para Jesus todos reúnem as mesmas condições para serem Seus discípulos, pois todos são filhos de Deus. Aliás, como sublinha, a Sua vinda ao mundo visa envolver os pecadores, pois os justos (à partida) já não precisam de ser salvos...

quinta-feira, 7 de março de 2019

Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro?!

        Disse Jesus aos seus discípulos: «O Filho do homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas; tem de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia». E, dirigindo-Se a todos, disse: «Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me. Pois quem quiser salvar a sua vida, tem de perdê-la; mas quem perder a vida por minha causa salvá-la-á. Na verdade, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou arruinar-se a si próprio?» ( Lc 9, 22-25).
       Jesus clarifica as condições do seguimento. Para O seguimos é necessário que não nos centremos em nós, no nosso umbigo, mas nos centremos em Deus e nos outros. Na volta, se todos seguirmos nesta perspetiva, seremos compensados, na partilha solidária, na comunhão, na vivência da mesma fé. O mal da sociedade, ou a origem de todos os males é precisamente o egoísmo, cada um pensar apenas em si mesmo, ou cada empresa pensar apenas no lucros dos gerentes e/ou proprietários, ou o partido só defender e promover os seus à custa da maioria dos cidadãos... e depois vêm as crises!
       De que adianta ganharmos o mundo inteiro, termos todos os bens e mais alguns, se depois viermos a perder-nos? Temos muitas coisas, e o lugar para a família, para estar e conviver com os familiares? E o espaço que dedicamos aos amigos? Quando olhamos à volta vemos coisas, ou vemos pessoas que nos querem bem e a quem queremos bem?

Deixai vir a Mim as criancinhas!

       Apresentaram a Jesus umas crianças para que Ele lhes tocasse, mas os discípulos afastavam-nas. Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis: dos que são como elas é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não acolher o reino de Deus como uma criança, não entrará nele». E, abraçando-as, começou a abençoá-las, impondo as mãos sobre elas (Mc 10, 13-16).
       Jesus chama a Si as criancinhas e apresenta-as como referência, como exemplo a seguir quanto à simplicidade, à bondade e à inocência, numa sociedade que atribuía pouca importância às crianças ou pelo menos enquanto crianças não se deveriam misturar com os adultos. O mesmo acontece com as mulheres. No entanto, Jesus não só deixa que elas se aproximem, como as apresenta como exemplo a seguir.
       Procuremos a simplicidade, a transparência e a generosidade das crianças, para que nosso seja o Reino de Deus.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Pode um homem repudiar a sua mulher?

       Jesus pôs-Se a caminho e foi para o território da Judeia, além do Jordão. Voltou a reunir-se uma grande multidão junto de Jesus e Ele, segundo o seu costume, começou de novo a ensiná-la. Aproximaram-se então de Jesus uns fariseus, que, para O porem à prova, Lhe perguntaram: «Pode um homem repudiar a sua mulher?». Jesus disse-lhes: «Que vos ordenou Moisés?». Eles responderam: «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio para se repudiar a mulher». Jesus disse-lhes: «Foi por causa da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei. Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne’. Deste modo, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu». Em casa, os discípulos interrogaram-n’O de novo sobre este assunto. Jesus disse-lhes então: «Quem repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro, comete adultério» (Mc 10, 1-12).
       A pergunta colocada a Jesus tem a sua pertinência e tem certamente muita atualidade. Porém, a resposta não é reactiva, Jesus não apresenta uma solução face à dificuldade que possa existir no relacionamento do casal, do homem e da mulher. Nesta como em outras situações, ao invés de ficar com muitas explicações, justificações, a argumentar, Jesus aponta um ideal a prosseguir: qualidade nas relações, empenho, diálogo, paciência, caridade. O cristão não pode apostar nos mínimos garantidos. Não há uma receita. O desafio é sempre melhorar, na família, na sociedade, na Igreja, dar o máximo, alegrar-se no serviço ao outro, não desistir das pessoas, procurar viver a unidade com os outros, estar atento aos pequenos sinais, dar atenção às pessoas que estão perto, não descurar os pormenores com a desculpa de falta de tempo, não esconder as dificuldades mas assumi-las e procurar que não sejam obstáculo.
       Mas atenção: quando Jesus aponta um ideal não o faz para aligeirar a nossa ambição. Pelo contrário, o ideal apontado é sempre uma possibilidade que deveremos buscar, com a ajuda da oração, com a força da fé, confiantes que Deus sustenta a nossa vida e a nossa relação com os outros. Chegam-nos experiências que servem de testemunho e desafio mas que podem também servir de exemplo para outros. Há casais que terminam o dia de mãos dadas, mesmo que tenham discutido. Não adormecem sem dar as mãos, sem se beijarem e sem rezar uma avé-maria ou um pai-nosso juntos...