sábado, 25 de maio de 2019

Leituras: PRIMO LEVI - SE ISTO É UM HOMEM

PRIMO LEVI (2017). Se isto é um Homem. Alfragide: D. Quixote. 15.º Edição. 192 páginas.
Foi-nos sugerido, lemos e agora sugerimos a outros esta bela, pertinente e luminosa narrativa sobre os campos de concentração nazis, ou melhor, sobre a experiência vivida na primeira pessoa pelo autor, Primo Levi, judeu italiano deportado no campo de extermínio, onde a humanidade é questionada e onde a preocupação imediata não será a ética, a vida, a dignidade, o respeito, os valores, mas a sobrevivência ao frio e à fome, ao trabalho e às doenças.
Para compreendermos o pensamento de Primo Levi teríamos que ler vários (ou todos) livros e de preferência na língua original, segundo o Bispo de Lamego, D. António Couto, tal a profundidade e a relevância das suas reflexões.
Esta pode ser a leitura de entrada deste autor. É o testemunho pessoal, impressionante, lúcido sobre o tratamento desumano nos campos de extermínio, mas também da forma como as vítimas lidaram com a sobrevivência, havendo lugar a alguma solidariedade, mas prevalecendo a luta animalesca por sobreviver mais um dia.
Quando alguns tentam branquear aquela que foi uma das páginas mais negras da história europeia e mundial, com a eliminação de 6 milhões de judeus e de outros que se tornaram críticos do regime, ou simplesmente porque não se enquadraram no ideal da raça pura, este é mais uma obra provocante, que aviva a memória, que nos revela como, em situações degradantes, as pessoas são capazes das maiores barbaridades. Aqui e além há lampejos de humanidade e de alguma esperança, de alguma fé.
Levi foi detido pelas forças alemãs a 13 de dezembro de 1943, era então um jovem químico, membro da resistência. Tendo confessado a sua ascendência judaica, foi deportado para Auschwitz em fevereiro do ano seguinte, onde permaneceu até 27 de janeiro de 1945 quando o campo foi libertado.

Vale a pena reter algumas palavras:

“Todos descobrem, mas tarde ou mais cedo na vida, que a felicidade perfeita não é realizável, mas poucos se detêm a pensar na consideração oposta: que também uma infelicidade perfeita é, igualmente, não realizável. Os momentos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza: derivam da nossa condição humana, que é inimiga de tudo o que é infinito. Opõe-se-lhe o nosso sempre insuficiente conhecimento do futuro; e a isto se chama, num caso, esperança; no outro, incerteza do amanhã. Opõe-se-lhe a certeza da morte, que impõe um limite a qualquer alegria, mas também a qualquer dor. Opõem-se-lhe as inevitáveis preocupações materiais que, assim como poluem qualquer felicidade duradoura, também distraem assiduamente a nossa atenção da desgraça que paira sobre nós e tornam fragmentária, e, por isso mesmo, a consciência dela.
Foram precisamente as provações, as pancadas, o frio, a sede, que nos deixaram afundar no vazio de um desespero sem fim, durante a viagem e depois. Não a vontade de viver, nem uma resignação consciente: pois são poucos os homens capazes disso, e nós mais não éramos que uma vulgar amostra de humanidade”.

"A persuasão de que a vida tem uma finalidade está enraizada em todas as fibras do homem, é uma propriedade da substância humana. Os homens livres dão a essa finalidade muitos nomes, e sobre a sua natureza muito se debruçam e discutem; mas para nós a questão é mais simples. 
Agora e aqui, a nossa finalidade é chegar à Primavera. Neste momento, nada mais nos preocupa. Por detrás desta meta, neste momento, não há outra meta. De manhã, quando em fila na Praça da Chamada, esperamos durante um tempo interminável a hora de partir para o trabalho, e cada sopro de vento penetra por debaixo das nossas roupas e corre em arrepios violentos pelos nossos corpos sem defesa, e tudo em volta está cinzento, e nós estamos cinzentos; de manhã, ainda antes de o dia chegar, todos observamos o céu do lado do Oriente para espreitar os primeiros indícios da estação amena, e o nascer do Sol é todos os dias comentado: hoje foi um pouco mais cedo do que ontem; hoje está um pouco mais calor do que ontem; dentro de dois meses, dentro de um mês, o frio dar-nos-á tréguas e teremos um inimigo a menos. 
Hoje, pela primeira vez, o Sol nasceu vivo e nítido por cima do horizonte lamacento. É um sol polaco, frio, branco e longínquo e não consegue aquecer para além da epiderme; mas, quando se libertou das últimas neblinas, um murmúrio percorreu a massa descorada que somos e, quando também senti a tepidez através da roupa, compreendi como se pode adorar o Sol". 

"Sucumbir é o mais simples: basta cumprir todas as ordens que se recebem, comer só a ração, obedecer à disciplina do trabalho e do campo. A experiência demonstrou que só em casos excecionais, desta forma, se pode durar para além dos três meses. Todos os ‘muçulmanos’ que vão para a câmara de gás têm a mesma história, ou, melhor dizendo, não têm história; seguiram o declive até ao fundo, naturalmente, como os rios vão desaguar no mar. Depois de terem ingressado no campo, por sua incapacidade essencial, ou por azar, ou por qualquer acidente banal, sucumbiram antes de poderem habituar-se; estão sempre atrasados... a sua vida é breve, mas o seu número é enorme... dentro deles apagou-se a centelha divina, já demasiado vazios para sofrer de verdade... eles povoam a minha memória com a sua presença sem rosto e, se pudesse resumir numa única imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria esta, que me é familiar: um homem ressequido, com a testa baixa e os ombros curvados, em cujo rosto e em cujos olhos não se pode ler qualquer sinal de pensamento. E os que sucumbiram não têm história, e um só amplo é o caminho da perdição, os caminhos da salvação são, pelo contrário, muitos, difíceis e imprevisíveis". 

Na vida comum "não é frequente acontecer que um homem se perca, pois normalmente não está só e, no seu subir e descer, está ligado ao destino dos que o rodeiam; pelo que só excecionalmente acontece que alguém cresça sem limites ou desça continuamente de derrota em derrota até à ruína. Mais, cada um possui habitualmente recursos, espirituais, físicos e também económicos, capazes de tornar ainda menos provável a eventualidade de um naufrágio, de uma carência perante a vida. Acrescente-se ainda que uma sensível ação de amortecimento é exercida pela lei e pelo sentido moral, que é a lei interior; de facto, considera-se tanto mais civilizado um país quanto mais sábias e eficazes são as leis que impedem ao miserável ser demasiado miserável e ao poderoso demasiado poderoso... Mas no Lager tudo acontece de outra forma: aqui, a luta para sobreviver é sem remissão, porque cada um está desesperada e ferozmente só. Se um Null Achtzenh qualquer vacilar, não encontrará quem lhe estenda a mão, mas sim alguém que o deitará abaixo, pois ninguém está interessado em que um «muçulmano» (nome pelo qual são chamados os fracos, os ineptos, os votados à seleção para serem mortos) a mais se arraste todos os dias para o trabalho; e se alguém, com um milagre de paciência selvagem e astúcia, encontrar nova combinação para escapar ao trabalho mais duro, uma nova artimanha que lhe proporcione algumas gramas de pão, procurará manter secreta a forma como o conseguiu, e por isso será estimado e respeitado, e tirará um lucro exclusivo e pessoal; tornar-se-á mais forte, os outros terão medo dele e, por isso mesmo, será um candidato à sobrevivência". 

"As personagens deste livro não são homens. A sua humanidade está sepultada, ou eles mesmos a sepultaram, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrem... Mas Lorenzo era um homem; a sua humanidade era pura e incontaminada, estava fora deste mundo de negação. graças a Lorenzo, aconteceu-me não esquecer que também eu era um homem". 

Pobre e ingénuo Kraus. Se soubesse que… para mim também ele é nada, a não ser um breve momento, nada como aqui tudo é nada, a não ser a fome dentro de nós, e o frio e a chuva à nossa volta".

O livro começa com o seguinte poema:
«Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não
Considerai se isto é uma mulher
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno. 
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração.
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara»

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Papa Francisco - A força da vocação

PAPA FRANCISCO (2018). A força da vocação. A vida consagrada hoje. Conversa com Fernando Prado, cmf. Prior Velho: Paulinas Editora. 104 páginas.

A figura do Papa Francisco é incontornável na atualidade e a simpatia que foi granjeando não esmoreceu; é escutado com agrado e apreciado nos gestos que assume, ainda que esteja também sujeito à crítica, por vezes daqueles que estão mais próximos e que deveriam ser amigos e defensores dos desafios que o Papa tem lançado à Igreja e ao mundo.
Os meios de comunicação social do Vaticano, mas também outros meios de comunicação, fazem-nos chegar todos os dias intervenções, mensagens, discursos, homilias do Papa Francisco, para já não falar das frases ou textos que lhe são atribuídos e que não foram por ele proferidos, mesmo que alguns depois defendam, como desculpa e justificação, que tais palavras correspondem à sua sensibilidade e que poderia ter sido ele a dizê-las. Enfim!
Também por isso, é mais garantido ir às fontes, procurar sítios seguros e de confiança, como as páginas do Vaticano na Internet, conferir se esta ou aquela mensagem que gostamos e queremos partilhar corresponde efetivamente às palavras do Papa, até porque às vezes, juntando uma foto do Papa, se divulga uma mensagem pessoal. Pode ser interessante, mas, se intencional, não deixa de ser aproveitamento da "imagem" para vender, para ter mais likes!
Há muita coisa escrita sobre o Papa Francisco, mas nada melhor, que ler o que ele diz e/ou escreve. Um comentário sobre o seu magistério, sobre as suas intervenções, é interessante e pode ajudar-nos a captar melhor a mensagem, as antes ou depois do comentário, é essencial que se leia e/ou se ouça o Papa em primeira mão. As homilias, as mensagens, os discursos, outras intervenções, por exemplo, no twitter, estão acessíveis e a qualquer momento pode serem consultados. Uma entrevista, no entanto, apresenta curiosidades, pois, neste como em outros casos, o entrevistador faz questão de descrever o espaço da entrevista, os gestos, a postura, o sorriso, os silêncios, o entusiasmo do Papa, e a interpretação das "emoções" que o papa vai deixando transparecer.
Nesta entrevista em concreto, o tema fulcral é a vida consagrada no tempo atual, revisitando o passado, olhando para o presente, perspetivando o futuro. Por ocasião da celebração do Ano de Vida Consagrada (2015-2016), o Papa endereçou uma Carta aos Consagrados. Motivado por esta missiva e por este ano da vida consagrada, o e. Fernando Prado, missionário claretiano, solicitou esta entrevista ao Papa Francisco.
O discurso simples, com imagens, pequenas histórias vividas na primeira pessoa ou que lhe foram comunicadas por alguém, boa disposição, tocando nos pontos essenciais que, segundo o Papa, é preciso alterar para que a vida consagrada continue ser profética, valorizando a pobreza, em detrimento das seguranças e das riquezas materiais, a oração, o estudo, o discernimento vocacional, a inserção na vida e na missão da Igreja, conservar o que aproxima de Cristo, do Evangelho e das pessoas, corrigir os desvios, tratar os consagrados, religiosos respeitando a sua identidade e o carisma das suas congregações, evitando "escravidão" dos mesmos ao serviço de algum projeto eclesial, diálogo entre consagrados e o Bispo diocesano, são alguns do temas que vale a pena refletir. Mais uma vez, o que vale para os consagrados, vale também para os Seminários e para as vocações, mas vale também para os cristãos, no seu conjunto, nomeadamente na questão do discernimento vocacional, do estudo, da vida de oração, da inserção à Igreja, do compromisso missionário, do respeito pelo tempo de cada um, pelo crescimento da fé.
O Papa coloca, nesta entrevista, mais uma vez o foco no discernimento. As regras são importantes, mas mais importantes são as pessoas, com as suas limitações e com os seus dons. Vincado também o diálogo jovens-idosos, vale para a Igreja, para a sociedade, vale para os Institutos de Vida consagrada. "Os jovens caminham rapidamente, mas os mais velhos conhecem o caminho". Cuidado com as generalizações. A rigidez é negativa. "O verdadeiro amor nunca é rígido". Caminhar em conjunto... Não existem soluções mágicas. É esse o meu critério: o triunfalismo nunca é de Jesus. O triunfo de Jesus, o verdadeiro triunfo, é sempre a Cruz".
E, claro, muito cuidado com o clericalismo. Na formação, 4 pilares: vida espiritual, vida comunitária, vida de estudo e vida apostólica. "Condescendência, de Jesus, que desceu para se inserir no povo. Ora o clericalismo é o oposto da inserção... O clericalismo é a raiz de muitos problemas... Inclusive, por trás dos abusos, além de outras imaturidades e neuroses, está o clericalismo. É preciso ter muito cuidado com isto na formação. É necessário discernir e ajudar a clarificar imaturidades e acompanhar o formando num saudável crescimento".

A Palavra Mãe... oração e gratidão

Mãe, hoje queremos balbuciar o teu nome nesta palavra: Mãe.
Mãe, palavra que nos sai do coração e nos faz agradecer a vida.
A minha e a tua vida. A nossa vida! Sem Mãe, nem palavra nem vida nem amor!
Mãe, palavra gravada no nosso coração e no nosso corpo, na nossa vida!
Se olharmos para o nosso umbigo, logo nos lembraremos da nossa origem. Não nos criámos sozinhos. O umbigo liga-nos à fragilidade, à humanidade, aos afetos!
Tivemos origem noutro corpo que não o nosso.
Fomos gerados no corpo da nossa Mãe, no seu ventre e no seu amor!
Para quem tem fé, a origem última é em Deus. E Deus, como não podia estar fisicamente em todo o lado, deu-nos uma Mãe. A minha e a tua Mãe.
E deu-nos também a Mãe de Jesus, nossa Mãe santíssima!
Para quem não tem fé, a presença do que resta do cordão umbilical, relembra que antes da nossa vida, outra vida, que nos gerou, nos alimentou e nos trouxe à vida.
Alguém se imagina sem o umbigo? Não! O umbigo é uma marca humana que nos liga aos outros, através da nossa Mãe, através dos nossos pais.
Que admirável: se a nossa memória nos trair, há um umbigo que nos fala da nossa Mãe! Afinal somos seres carentes, finitos, limitados, ligados, com origem em outro alguém! Não fomos nós que nos demos a vida!
A vida é um dom! Foi-nos dada! É-nos dada!
Podemos agradecer! Podemos viver! É a viver que agradecemos! É vivendo que experimentamos a alegria de sermos alguém, a gratidão de pertencermos a alguém. E começamos por pertencer à nossa Mãe! Nove meses! Dentro de ti, ó Mãe! Nove meses ligados! Alimentados! Dependentes da vida e do amor!
E aí começou uma nova história! Uma cumplicidade para a vida toda!
Duas vidas; dois corações a bater juntinhos; dois mundos, um por dentro do outro!
E uma vida imensa, uma vida intensa! Começa a fazer sentido a palavra Mãe.
E então, o medo e a esperança; a pressa e a paciência; os sonhos e as angústias!
Sentes-te Mãe antes de alguém saber, antes de alguém sonhar! Mas logo se começa a notar! E mais uma vez o revelas no corpo, na alegria e no sorriso!
E, depois, é a vida toda: o nascimento, os primeiros gestos, sorrisos, palavras, o gatinhar e o andar, o crescimento, a adolescência, a juventude, até sairmos de casa...
As noites por dormir, a angústia de fazer alguma coisa errada, não saber cuidar, ou não estar à altura das nossas necessidades; as primeiras lágrimas, o primeiro choro, a primeira queda, a primeira ferida; as birras, e com o tempo, as diferenças que parecem roubarem-nos de ti, minha Mãe…
Mãe é uma palavra para a vida toda! É uma vida toda em que facilmente te esqueces de viver a tua vida para viveres em função nos nossos anseios e urgências.
Tornámo-nos crescidos! Mas nem por isso os teus cuidados de Mãe enfraquecem! As preocupações não cessam! E, tantas vezes, filhos criados trabalhos dobrados! Mas é a vocação e a felicidade de cada Mãe. Da minha e da tua Mãe!

Duas palavras ocupam este dia: Maria e Mãe!
Também Maria é Mãe! Mãe de Deus e nossa Mãe. Do anúncio à cruz! Da cruz até a nossa vida! Também Maria, como Mãe, vem morar em nossa casa, na minha e na tua vida! Só se quiseres! Só se quisermos! Mas como Mãe, como a minha e a tua Mãe, mesmo que fujamos, mesmo que nos descuidemos a retribuir ou a agradecer, ou a viver, Ela está lá para nós! Sempre! Só se não quiseres! Só se não quisermos.
Mãe, obrigado!
Que te mereça e te saiba chamar e tratar por Mãe pela vida toda! Obrigado, Mãe!
Rezemos uma Ave-Maria, pelas nossas Mães, presentes no meio de nós e por aquelas que já se encontram no coração de Deus que é Pai e é mais Mãe!

Pe. Manuel Gonçalves