Para abrir os olhos temos de fechar mais os ouvidos.
Está dito e redito que estamos em crise. Ditas e analisadas estão causas e consequências. Até à exaustão. Como agir, avançar, ultrapassar, parece matéria menos óbvia. Números, cálculos, hipóteses, também abundam. Horizontes nebulosos, dados sobre todas as mesas parecem não faltar. Muitas das explicações, todavia, não passam de conversa de adivinhos que se querem fazer passar por cientistas. Há, em consequência, abundantes palavras simplesmente inúteis. Nem palavras são. Apenas desabafos.Mas neste todo a palavra ganha uma dinâmica e uma responsabilidade decisivas. A palavra que se diz, que se grita, que se escreve e se ilustra com imagem. Palavra do cidadão anónimo que está nos pequenos palcos de cada casa, cada empresa e até cada esquina. Palavras sobre tudo e sobre nada, explosões de vencedores e vencidos, governados e governantes, humilhados e ofendidos, escondidos, novos soberanos da economia, da finança, da exploração. Mas também a palavra de homens e mulheres justos que não encontram saídas para os novos becos que a cada esquina se montam, sem se saber bem quem os desenhou na vida de tanta gente.
Há um anonimato refinado por detrás de muitas decisões que estão a abalar o nosso mundo. Estreitados aqui, pensamos que aqui começa e acaba o mundo. Quase não se fala dos países em carência total, dos refugiados da guerra e da fome, das crianças que morrem de subnutrição, dos sobressaltos que acontecem em África, América Latina ou Ásia.
Para abrir os olhos temos de fechar mais os ouvidos. A inflação da palavra e da opinião pode minar esperanças e desnortear bússolas. Vagueia na incontinência verbal de técnicos, especialistas, professores, religiosos, vedetas, vips, governantes, profissionais de poder e oposição, críticos embebidos em vinagre. Há sentenças a mais sobre cada acontecimento e cada matéria. Sem pensar no povo que somos, que anda perdido nas suas solidões com tantos saberes, sentenças, dogmas e previsões. Tudo construído sobre a areia movediça da opinião ocasional, da vaidade que não se permite arrumar-se atrás do pano. A torrente de palavras não é a expressão plural dum país que procura caminhos. É uma sinfonia dissonante de quem não pensa no que diz e diz tudo o que mal chegou a pensar. E chega-se a alguma ditadura da palavra com o desrespeito por quem não se consegue fazer ouvir. Não se pede a ninguém que ponha ordem nisto. Mas pede-se e exige-se que seja respeitado quem escuta tanta palavra sem poder sequer replicar de forma a também se fazer ouvir.
António Rego, in Editorial da Agência Ecclesia.
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