sábado, 4 de março de 2017

Domingo I da Quaresma - ano A - 1 de março de 2017

       1 – Desde sempre, Jesus está cheio do Espírito de Deus. Como Maria, Sua Mãe santíssima, a Cheia de Graça, concebida sem pecado, Imaculada Conceição, em Seu seio virginal concebeu, pelo Espírito Santo, o Filho Jesus. Assim o Filho do Altíssimo, cheio de Graça e de Bênção. Para onde quer que vá. De onde quer que venha. Onde quer que esteja. É o Espírito que O ilumina, O guia, O preenche e O sustenta.
       É conduzido ao deserto pelo Espírito de Deus. Não vai sozinho. Leva Deus no coração. A Sua vida está agrafada à de Deus Pai. O propósito do deserto não é a tentação. Não é o demónio que O impele para o exterior. É o próprio Deus. O deserto é deserto, não tem adornos, ruído, não tem que ver, que comer, que cheirar. É areia, horizonte sem fim, é demasiado frio à noite, calor exagerado durante o dia. Chegada a idade da missão, João Batista vai da cidade para o deserto. Chegada a idade da missão, Jesus retira-Se para o deserto, para que a força da oração O acompanhe e a certeza da presença de Deus Lhe dê alento nos momentos difíceis que advirão. Logo reentrará na Terra prometida. João leva-nos ao deserto, aponta para Jesus. Jesus faz-nos caminhar para a Terra Prometida. Ele é a nossa Terra Prometida.
       No deserto Jesus mostra-nos o valor da oração e a necessidade do crente viver próximo, íntimo, em situação dialogante com Deus. Só dessa forma as tentações serão vencidas, não tanto pelos nossos méritos mas pela Graça santificante do Senhor.
       O jejum e a penitência, quarenta dias e quarenta noites, o tempo necessário e preciso para Se preparar para o que lá vem, não valem por si mesmo, valem por sublinharem que Deus é a prioridade essencial, só Ele verdadeiramente conta e nem o alimento, nem o frio, nem o calor, nem a indigência O poderão separar do Amor do Pai. A primeira fome não é de pão. A primeira fome há de ser de Deus, dos afetos e das pessoas, da companhia e do olhar que nos vê, nos descobre e nos reconhece como pessoas. E o primeiro olhar que nos salva é o olhar de Deus. Jesus sabe de antemão quanto vai precisar da presença e do olhar de Deus ao longo da vida pública que vai iniciar. Com o Batismo recebe a confirmação do Céu, do Seu e nosso Pai, que é bem-amado e que nunca será abandonado. Assim, na certeza do Espírito Santo que O preenche, vai ao deserto preparando-Se para mudar o mundo e vida da humanidade.

       2 – A fome de Jesus, num primeiro momento, é uma opção. Se andamos empanturrados da vida, precisamos da calmaria do deserto, do refúgio, da meditação, esvaziando-nos do que nos empanturra para nos enchermos e preenchermos da alegria, da esperança e do amor que Deus nos dá. A fome de Jesus liberta-nos da prepotência, da arrogância e da soberba, do egoísmo, da inveja e da avareza. Há quem não tenha fome e viva miseravelmente. Há pessoas tão pobres, tão pobres, que só têm dinheiro. O jejum relembra-nos as prioridades da nossa vida: Deus. E, se Deus é prioridade, as pessoas estarão em primeiro lugar, as pessoas com as suas ânsias e sofrimentos, já que Deus sempre nos remete para o nosso semelhante.
       No deserto Jesus continua a fazer-Se pobre, despojado, para nos enriquecer com a Sua pobreza, com o Seu amor e docilidade. Ele, sem mais, sem máscaras, sem falsas imagens ou esperanças, de mãos vazias e abertas, com o coração em Deus. Ele, com a Sua fragilidade muito humana e com o Seu amor muito divino. Solidariza-Se com os pobres, tornando-os visíveis. Aqueles que, por vergonha e por medo se escondem, Jesus trá-los para a luz do dia, pobres, pecadores, aleijados, surdos, mudos, doentes, leprosos, publicanos, mulheres, crianças, excluídos social, politica e religiosamente, não podem ser esquecidos e relegados para o esquecimento. A partir do deserto, Jesus denuncia todos os que se fecham e se esquecem das pessoas mais frágeis. Os ricos, na sua penúria humana, espiritual, fecham os olhos, tapam os ouvidos, bloqueiam o coração ao grito dos indigentes. Os "ricos" são todos aqueles que vivem apenas para si mesmos, insolidários; enriquecem à custa dos outros e os outros servem apenas para servir os seus interesses. "Pobres" são aqueles que põem a sua confiança no Senhor e se abrem à Sua misericórdia, cuidando de trabalhar honestamente para transformar positivamente o mundo, procurando "adicionar", sem "subtrair" os outros. Reconhecem-se responsáveis pelos outros, sobretudo pelos mais frágeis, lutando contra toda a espécie de injustiças.
       Esta é a pobreza comprometida que Jesus nos ensina, vivendo-a. Em Jesus reencontrar-nos-emos com rios de água viva, renovando as fontes que nos irmanam. Nas palavras de Bento XVI (24 de abril de 2015, quando assumia o pontificado), multiplicam-se os desertos exteriores (fome, guerra, violência…) e os desertos interiores (solidão, vazio, desencanto, do amor destruído…), aos quais é necessário responder com Deus, com a vida nova que se enxerta em Jesus Cristo, na Sua oferenda de Amor.

       3 – Pobres que confiam na doçura do Senhor. Por conseguinte rezamos pedindo: "compadecei-Vos de mim, ó Deus, pela vossa bondade, pela vossa grande misericórdia, apagai os meus pecados. Lavai-me de toda a iniquidade e purificai-me de todas as faltas. Porque eu reconheço os meus pecados... Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos. Criai em mim, ó Deus, um coração puro e fazei nascer dentro de mim um espírito firme" (salmo).
       Na família de Nazaré, Jesus aprendeu a confiar em Deus, a confiar a Deus toda a Sua vida, nas dificuldades e nas possibilidades. Com Maria e com José e com a comunidade nazarena, reza salmos como este que hoje nos é proposto. No deserto é essa confiança e intimidade que O capacitam para vencer as tentações do poder, da facilidade, do espetáculo, do milagre em benefício próprio pois "nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus".
       É o Filho de Deus, mas também é Filho do Homem, portanto é como Homem que caminhará connosco, trabalhando pelo pão de cada dia, não usando Deus para os seus interesses, como tantas vezes temos visto ao longo da história. Quantas vezes com Deus se justifica a violência, a injustiça, os fratricídios e a imposição de ideologias? Como verdadeiro Deus, Jesus abrir-nos-á, com a Sua morte e sobretudo com a Sua ressurreição, o Coração de Deus Pai, escancarando-nos as portas da eternidade.
       Por um só homem, diz-nos São Paulo, o pecado entrou no mundo. O pecado do egoísmo, da inveja, do ódio, da violência, o pecado da prepotência, do desejo em subjugar os outros e o próprio Deus aos seus interesses. Só Deus é Deus. E quando Deus é Deus, não há mais lugar para que uns sejam escravos e outros sejam filhos, uns vivam injustiçados e outros à custa das injustiças praticadas. Por um só Homem, Jesus, vem a salvação, a certeza que cada um de nós vale muito. Para Deus cada um de nós vale tudo e, por isso, nos dá o Seu Filho. Por isso, o Seu Filho Se entrega por cada um de nós, pela humanidade inteira, para que tenhamos vida e vida em abundância (cf. Jo 10, 10). Pela escuta e pela obediência à vontade paterna, Jesus encaminha-nos para o Pai, vencendo as tentações de tudo controlar e decidir!

       4 – No livro do Génesis, que hoje nos é servido como 1.ª leitura, a criação. Deus cria o Homem como Sua obra-prima, coloca-o no Jardim, onde não lhe falta nada: árvores, flores, aves, peixes, animais. Pode viver harmoniosamente com toda a criação, em segurança, sob o olhar bendito de Deus, revendo-se no olhar humano do/a companheiro/a. Homem e mulher, Deus os criou, criou-os à Sua imagem e semelhança, para se auxiliarem mutuamente, sentindo-se o mundo um do outro.
       Tudo corria bem. Deus criou-nos livres, seres dotados de inteligência e de vontade. Deus não força, não obriga, não Se impõe. Cabe-nos prosseguir a criação. Como víamos no Evangelho, quanto maior a proximidade a Deus maior a possibilidade de vencer e ultrapassar as tentações. No momento, por menor que seja, em que nos esquecemos de Deus, dando ouvidos aos nossos impulsos, querendo tudo e rapidamente e ao nosso jeito, sem ouvir, sem dialogar, pensando apenas em nós mesmos, mais perto estamos de nos deixarmos levar pela tentação do egoísmo, do controlo, do poder.
       O pecado, seguindo a visão do nosso Bispo, D. António Couto, não está no comer do fruto da árvore, frutos que Deus nos dá gratuitamente, mas no facto de querermos açambarcar o fruto apenas para nós, impedindo que outros acedam à árvore, onde há frutos para todos. Mutatis mutantis, há riqueza e bens suficientes para que as pessoas do mundo inteiro vivam com dignidade, contudo a riqueza está concentrada nas mãos de mundos, enquanto muitos lázaros, sintonizando com a Mensagem do Papa Francisco para esta Quaresma, estão à margem, fora dos portões, soçobrando por terra, sem acesso aos bens da criação. Ou como lembrava o papa Bento XVI, no início do Seu pontificado, “os tesouros da terra já não estão ao serviço da edificação do jardim de Deus, no qual todos podem viver, mas tornaram-se escravos dos poderes da exploração e da destruição”.
       Por vezes somos tentados a desistir, a percorrer o caminho mais fácil, o que nos facilita a vida, ainda que prejudiquemos os outros. Por vezes quereríamos que o mundo inteiro se ajoelhasse aos nossos pés e seguisse as nossas ideias. Quereríamos ter magia para resolver todos os problemas com que nos deparamos ao longo da vida. Quereríamos ter o controlo sobre todas as variáveis da nossa vida! Quereríamos ser Deus! Então Deus faz-Se homem, um de nós, para caminhar connosco e nos mostrar a dignidade, a grandeza e a beleza de sermos humanos, capazes de refazer o caminho, recomeçar, com esforço, com dedicação, com paixão. Jesus responde com persistência, percorrendo o caminho do serviço e do amor, mesmo que isso Lhe venha a custar a vida. E nós, que caminhos queremos seguir?


Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (A): Gen 2, 7-9 – 3, 1-7; Sl 50 (51); Rom 5, 12-19; Mt 4, 1-11.

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