1 – Ainda que caminhemos por entre escombros, não precisamos que nos substituam, mas que nos estendam a mão, caminhem ao nosso lado; precisamos de uma luz, ainda que seja ao fundo do túnel, um objetivo, uma razão para lutar, uma meta a atingir, um sentido que nos mova a prosseguir.
O grande Papa Paulo VI (falecido a 6 de agosto de 1978), num discurso, contou a história de um filósofo (Bardiaef) que, a passear no famoso claustro de um mosteiro ortodoxo e a contemplar tanta beleza, perdeu a noção das horas. Caiu a noite e, sentindo-se cansado, tentou regressar à sua cela. Mas eram muitas celas e todas iguais. Onde encontrar o interruptor da luz? Não quis acordar nenhum religioso e ficou dando voltas e mais voltas até que a manhã chegou. «Afinal, a porta da sua cela, a porta da verdade, estava ali mesmo à mão. Mas faltou-lhe a luz, a Luz de Cristo».
A luz ténue de uma vela acesa num estádio de futebol às escuras pode ser a chama suficiente para acender a luz de outras velas. A Luz que vem de Jesus, enraizada no Seu coração e que vem do Pai, é luz mais que suficiente para queimar, incendiar os corações e iluminar a humanidade inteira, como víamos na Festa da Sua Transfiguração. É uma luz que vem de dentro, do coração, que vem do alto, de Deus Pai e que, portanto, não está sujeita a tantas variações, sabendo que as circunstâncias que nos circundam podem favorecer o enfraquecimento da luz que nos guia a partir do interior. Daí que a luz de quem caminha ao nosso lado ajude a manter-nos focados na luz que nos une, irmanando-nos.
O Evangelho deste domingo mostra que para os discípulos de Jesus as trevas exteriores são enormes e que os medos, as trevas interiores, são ainda demasiado intensas e extensas. Pedro quer acreditar, quer deixar de ter medo, quer avançar imitando Jesus, mas vacila no momento das dificuldades. Quando olha para si mesmo vacila, quando olha para Jesus caminha, apesar das dificuldades.
2 – No Evangelho do domingo passado (não fosse a festa da Transfiguração), Jesus realiza o milagre da multiplicação e da partilha do pão e do peixe. A multidão é a destinatária do ensino e dos gestos de Jesus. Porém, a atenção para com os discípulos mantém-se: eles são chamados a intervir, a dar de comer à multidão, a arranjarem uma solução concreta e possível, a distribuírem/partilharem o alimento e a recolherem as sobras, para que nada se perca.
Estando mais perto de Jesus, os discípulos têm o privilégio de O conhecer melhor, de O escutar com mais atenção, de beneficiarem das Suas explicações, mas, como se costuma dizer, quanto mais informação, quanto mais poder, mais a responsabilidade. Jesus compromete os discípulos no anúncio do Evangelho e na prática da caridade.
Essa proximidade que liga os discípulos a Jesus fortalece-os, e a nós também, para as tempestades da vida, para os desertos, para as invernias, para as trevas. Depois da multiplicação dos pães, Jesus permanece junto da multidão a despedir-se das pessoas. Os discípulos vão indo para a outra margem. Há outro hiato de tempo que é recorrente, Jesus sobe ao monte para orar, para melhor escutar o Pai. Regressa para junto dos discípulos na quarta vigília da noite. Ao vêl'O os discípulos pensam que estão a sonhar, que estão a ver um fantasma ou um espírito maligno. À noite todos os gatos são pardos. Jesus caminha sobre o mar, tranquilamente. Assustaria qualquer um. Por certo não é uma partida de crianças mas a certeza de que não há barreiras para Jesus vir ao nosso encontro, em nosso auxílio. Como então, Jesus estende-nos a mão, mostra-Se, garante-nos que está. Temos que O ver também durante a noite, quando as trevas se adensam.
3 – Pedro, sempre ele, quer imitar Jesus. E imitar Jesus é coisa boa, é bom sinal. É um desejo que também devemos ter. Mas Pedro lá acaba por se fixar mais nas suas fragilidades e limitações que em Jesus. Mais vale quem Deus ajuda que quem muito madruga. Podemos fazer tudo bem, mas se é apenas por nós, para nós, se nos apoiamos somente nas nossas capacidades, como se fôssemos deuses, tornando-nos o centro, mais tarde ou mais cedo vamos ao fundo. Da mesma forma, não avançamos se for o medo a controlar-nos, o medo de falharmos, o medo de não sermos aceites, o medo de sofrermos com as opções que iremos fazer.
Vem. Avança. Podes confiar. Pedro vai, com o olhar fito em Jesus. Vai bem, até que olha para baixo e começa a afundar-se. É como as vertigens, quem as tem, só tem que olhar para cima, para a frente, e seguir, pois no momento em que olha para baixo vacila. Se Pedro se tivesse fixado em Jesus e na Sua voz, a violência do vento passaria para segundo plano.
Pedro dá-nos ainda outra lição importante: a humildade, o reconhecimento das próprias fragilidades, a humildade que se volta para Jesus. «Salva-me, Senhor». Só Tu, Senhor, me livras das minhas quedas, dos meus medos. Só Tu, Senhor, podes ser luz e sentido e meta para eu caminhar seguro! Vem e socorre-me, Senhor, do meu egoísmo, do meu pecado e do meu orgulho, que são peso que me afunda. Liberta-me, concede-me a capacidade de amar, de acreditar, de confiar, de me gastar a favor dos outros, o gosto de servir e cuidar, para me tornar leve, tão leve que seja capaz de caminhar por cima do mar.
4 – Por vezes Deus não é evidente. "Deus não mora à superfície" (Tomáš Halík). Por vezes o ruído é maior, o vento é mais veloz, a chuva é mais fria, as nuvens são mais densas, o medo é mais profundo, a desilusão é mais entranhada, a noite é mais longa, as trevas são mais escuras, os desertos são mais traiçoeiros. A vida nem sempre é fácil e por vezes Deus não ajuda, parece não ajudar, parece que tudo corre mal. É preciso olhar de novo, escutar mais atentamente, apostar, estender a mão com a certeza que Ele tem a Sua mão estendida, saltar sabendo que vai amparar a nossa queda, qual filho a lançar-se no colo do pai ou da mãe.
O Profeta Elias vai ao monte de Deus e passa a noite numa gruta, com a promessa que Deus vai passar. E, como prometido, Deus passa. «Diante d’Ele, uma forte rajada de vento fendia as montanhas e quebrava os rochedos; mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento, sentiu-se um terramoto; mas o Senhor não estava no terramoto. Depois do terramoto, acendeu-se um fogo; mas o Senhor não estava no fogo. Depois do fogo, ouviu-se uma ligeira brisa. Quando a ouviu, Elias cobriu o rosto com o manto, saiu e ficou à entrada da gruta».
Deus não está na confusão, no ruído, na agitação. Deus não é assim tão invasivo nem tão evidente. Pode passar sem que nos apercebamos!
5 – Se a luz que há em nós vem de Jesus leva-nos aos outros, para que a minha, a tua, a nossa luz, façam multiplicar a Luz em todo o mundo. Se há luz em nós, ou algo parecido com luz, que não vem de Jesus, se somos nós a nossa luz, é crível que advenha a cizânia, o joio, a rotura.
O Apóstolo Paulo é uma figura com forte carácter, diríamos, teimoso até dizer basta. Todavia, orienta-o a vontade de viver Jesus, de mostrar Jesus, de transparecer Jesus, de converter para Jesus, de congregar as comunidades à volta de Jesus, à volta da fé, do Evangelho, da graça divina, da Palavra de Deus. É com esse propósito que percorre aldeias e cidades até onde lhe é humanamente possível ir, para anunciar o Evangelho, formar comunidades, deixar discípulos que possam educar na fé e ensinar a viver o Evangelho.
Começou pelos irmãos judeus e foi até ao fim do mundo, acolhendo o mandato de Jesus. Com efeito, na Carta de apresentação aos Romanos, onde Paulo pensa estabelecer-se, para daí partir para outras terras, mostra os sentimentos que o movem: «Sinto uma grande tristeza e uma dor contínua no meu coração. Quisera eu próprio ser anátema, separado de Cristo para bem dos meus irmãos, que são do mesmo sangue que eu, que são israelitas, a quem pertencem a adopção filial, a glória, as alianças, a legislação, o culto e as promessas, a quem pertencem os Patriarcas e de quem procede Cristo segundo a carne, Ele que está acima de todas as coisas, Deus bendito por todos os séculos».
A perspetiva do Apóstolo é fazer-se tudo para todos, grego com os gregos, judeu com os judeus, escravo com os escravos, para ganhar alguns para Cristo, pois só Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida, o Bom Pastor que nos conduz.
Pe. Manuel Gonçalves
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