1 – A Palavra de Deus deve iluminar a realidade presente e concreta, apontando caminhos, comprometendo os cristãos que a escutam. A reflexão da Palavra não pode e não deve ser abstrata, genérica, mas partir da experiência humana. Hoje, escutando o Evangelho e a forma como Jesus lida com "os outros" que não pertencem ao povo judeu, sugere-me que partamos do momento que já se respira na sociedade portuguesa: a campanha eleitoral com vista às eleições autárquicas.
Vale a pena repescar as palavras do Papa Francisco: «Envolver-se na política é uma obrigação para um cristão... os cristãos não podem fazer de Pilatos, lavar as mãos... Devemos implicar-nos na política, porque a política é uma das formas mais elevadas da caridade, visto que procura o bem comum... Os leigos cristãos devem trabalhar na política. Dir-me-ão: não é fácil... A política é demasiado suja, mas é suja porque os cristãos não se implicaram com o espírito evangélico. É fácil atirar culpas... mas eu, que faço? Trabalhar para o bem comum é dever de cristão».
A política é coisa boa. É o cuidado da polis (= cidade), o serviço aos cidadãos. É um elevado serviço de caridade quando procura o bem comum (não o bem individual, particular, privado, ainda que se exprima no serviço a pessoas concretas), o bem de todos, discutindo ideias, projetos, lançando propostas para melhorar a vida das pessoas.
Os cristãos (leigos), em todos os cenários – também na vida política e partidária, pois é esse o sistema em vigor na república (res publica = coisa pública) –, devem testemunhar o amor a Deus através do serviço e dedicação ao próximo. Como sublinha o Papa, também à vida política, os cristãos devem emprestar os ideais do Evangelho, devem "acrescentar", promover, congregar, lutar por mais justiça, maior transparência, comprometendo-se com os mais frágeis e desfavorecidos. Os católicos tem de estar na política como na vida, procurando imitar Jesus Cristo, em tudo, com as suas fragilidades e qualidades, mas nunca desistindo de procurar a verdade e o bem comum, a fidelidade aos princípios da vida e da dignidade da pessoa. Respeito, elevação, honestidade, diálogo. Sem renunciar aos seus princípios, debatendo, apresentando propostas, sugerindo projetos, implicando-se com tudo o que possa melhorar a vida de todos.
Infelizmente, muitas vezes vemos discutir pessoas e não projetos. "Nós fizemos", "Nós prometemos", "Eles não cumpriram", "Nós vamos cumprir"... O nosso grupo tem todas as qualidades... os outros são falsos, mentirosos, maus... O que partir de nós é bom... o que partir dos outros só pode ser mau... E, no final, o que importa é favorecer os que nos ajudaram na eleição, os outros que aguardem mais quatro anos ou então que nos tivessem apoiado!
2 – Os discípulos de Jesus vivem (ainda) nesta dinâmica: o nosso grupo, os nossos, os que andam connosco. O Messias de Deus é nosso, pertence-nos, temos o exclusivo. Os milagres que fizer hão de beneficiar os nossos, os do nosso povo. As palavras que Ele disser são-nos dirigidas, a não ser que sejam para maldizer os outros, os estrangeiros, os que estão para lá do nosso grupo.
Como não lembrar o episódio em que os discípulos dizem a Jesus que tinham proibido um homem de fazer milagres e anunciar em Seu nome pelo simples facto de não fazer parte do grupo? (cf. Mc 9, 38). Ou a estranheza quando veem Jesus a falar com a Samaritana? Já era demais estar a falar com aquela mulher em público, mais escandaloso é o facto de ser samaritana, inimiga dos judeus (Cf. Jo 4, 1-41). Ou quando querem deitar fogo do céu contra os samaritanos que não os acolhem, pois iam em sentido contrário? (Lc 9, 51-56).
A pedagogia de Jesus é sublime. No diálogo com a mulher cananeia, Jesus assume a postura dos discípulos, a sensibilidade dos judeus ciosos do Seu Deus e da sua religião. Contrariamente ao que seria expectável, Jesus mantém-se em silêncio (exterior) diante da investida da mulher estrangeira: «Senhor, Filho de David, tem compaixão de mim. Minha filha está cruelmente atormentada por um demónio».
Os discípulos estranham a posição do Mestre e colocam-se ao lado da mulher. Por certo que os discípulos perceberam que não era normal Jesus não responder favoravelmente, pois essa não é a Sua forma de agir. Talvez sintam compaixão por aquela Mãe em sofrimento. Já não basta o sofrimento, quanto mais a exposição em que se coloca?! É Mãe. Está tudo dito. Tudo fará para reaver o filho, para o reconquistar para a vida. Sujeita-se ao ridículo, a ser olhada de esguelha, sujeita-se a uma humilhação pública. Mas que lhe importa? O importante é a saúde e a vida do filho. Até pode morrer, mas que o filho seja salvo! Contudo, os discípulos parecem incomodar-se sobretudo com a gritaria da mulher e não tanto pelo seu sofrimento!
3 – Na resposta aos discípulos, Jesus diz-lhes que não foi enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel. Tinha sido essa a recomendação que Ele lhes dera quando os enviou dois a dois: «Não sigais pelo caminho dos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos. Ide, primeiramente, às ovelhas perdidas da casa de Israel» (Mt 10, 5-6).
Porém, esta Mãe não desiste e insiste, prostrando-se aos pés de Jesus: «Socorre-me, Senhor». Será que Pedro percebeu que é um pedido semelhante ao seu, quando está a caminhar sobre as águas ao encontro de Jesus, como escutávamos no domingo passado? Parece que Jesus não se comove! O que contraria o que está contido nos Evangelhos: a Sua delicadeza e a docilidade, a proximidade às pessoas mais frágeis, aos pobres, aos doentes, às mulheres, às crianças, aos publicanos e pecadores! Então que se passa com a reação de Jesus? Assume a nossa postura para que nós nos ponhamos do lado de quem sofre e assumamos a Sua postura: pobreza e amor ao serviço dos mais desfavorecidos.
Convertamos em pergunta a resposta dada por Jesus àquela Mulher: "Será justo tomar o pão dos filhos para o lançar aos cachorrinhos?". Entramos na pedagogia de Jesus que nos desafia. A Mulher cananeia ajuda-nos a responder ao questionamento de Jesus: «É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos».
A conclusão de Jesus abre o horizonte da salvação, mostrando que a salvação que nos traz não se destina a um grupo ou a um povo, mas destina-se a todos. A fé é a única exigência para a cura, para a redenção. Fé que se torna humildade diante de Deus e predisposição para acolher o Seu amor, o Seu perdão e a Sua cura. É na fé amadurecida desta mulher que Jesus opera a cura da sua filha.
4 – Habitualmente contrapõe-se o Antigo e o Novo Testamento, sublinhando que o Deus do Antigo Testamento é sobretudo um Deus omnipotente, juiz, um Deus cioso do Seu poder e dos Seus desígnios, pronto para castigar aqueles que se transviam e alheio aos problemas da humanidade e, a acrescentar, um Deus nacional. No Novo Testamento, a novidade é assumida por Jesus: Deus é Pai, misericordioso e compassivo que Se imiscui na nossa vida, para nos elevar, sendo um Deus "universal".
Porém, como se pode ver em Isaías, e em outros textos veterotestamentários, a vivência da fé e da religião leva a um compromisso concreto e real, como respeitar o direito e praticar a justiça. Deus escuta o clamor do pobre e revolve-se-Lhe o coração com as injustiças. E também os estrangeiros têm aceitação no Templo de Deus, «casa de oração para todos os povos».
A condição para chegar ao coração de Deus está na (boa-) fé, na verdade que procura o bem, na humildade de se fazer caminho, na oração e louvor que brotam do coração, na persecução da justiça.
Com efeito, já em Abraão Deus revelava que n'Ele abençoaria todos os povos da terra (cf. Gn 12, 3). Ele faz chover sobre bons e maus. Os Seus desígnios de amor abarcam a humanidade inteira e a própria eleição do Seu povo visa chegar a todos.
5 – Como segunda leitura tem-nos sido servida a Carta de São Paulo aos Romanos. No domingo passado, o Apóstolo testemunhava como tudo fez para ganhar os seus compatriotas, os judeus, para Jesus Cristo. Cedo, contudo, percebeu que a mensagem de Jesus não era exclusiva para um povo e que a morte e ressurreição de Jesus não tinha sido particular, mas universal, por todos, para a todos salvar. São Paulo, na verdade, é o Apóstolo por excelência, é o primeiro a compreender a extensão do mistério pascal de Jesus e o primeiro que assumidamente se torna missionário junto dos gentios, também resultado da animosidade que encontra entre os judeus.
O facto de agora se dirigir aos gentios, conforme confessa, não significa que desistiu dos seus conterrâneos. Se for exímio no ministério evangelizador junto dos pagãos, pode acontecer que provoque ciúmes nos da sua raça e assim atraia alguns para Cristo. Com efeito, Jesus morreu por todos, para a todos reconciliar para Deus. «Efetivamente, Deus encerrou a todos na desobediência, para usar de misericórdia para com todos».
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano A): Is 56, 1. 6-7; Sl 66 (67); Rom 11, 13-15. 29-32; Mt 15, 21-28.
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