sábado, 26 de setembro de 2020

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

PAPA FRANCISCO - VIDA APÓS A PANDEMIA

PAPA FRANCISCO (2020). Vida após a pandemia. Prior Velho: Paulinas Editora. 56 páginas.
Será impossível alguém falar em 2020 sem falar na pandemia do novo corona vírus e na respetiva doença que provoca, a Covid-19. Desde a primeira hora, a Igreja respondeu à chamada, quer a dar o exemplo no confinamento, suspendendo celebrações, quer na reflexão sobre o momento e sobre as consequências devastadoras sobretudo nos povos e nas pessoas mais vulneráveis, e na ajuda solidária e concreta a pessoas mais desfavorecidas, através de diversos organismos presentes no terreno, quer com a multiplicação de donativos para hospitais, distribuindo por várias países, em todos os continentes, e lançado outras campanhas de angariação de fundos em prol de hospitais ou de países que vivem situações verdadeiramente aflitivas.
O Santo Padre, o Papa Francisco, sentiu o distanciamento físico dos fiéis e a aflição dos serviços públicos para tentar preservar a vida e a saúde das pessoas. A praça de São Pedro espelhou bem o confinamento, esvaziando-se. No dia 27 de março, vimo-lo, pesaroso, alquebrado, subindo a praça de São Pedro, para um momento extraordinário de oração, com a Bênção Urbi et Orbi (sobre a cidade e o mundo). Na sua reflexão, o Papa partiu do texto de São Marcos (4, 35-41), seguindo com uma espécie de refrão: "Porque sois tão medrosos?". Pergunta feita por Jesus aos apóstolos, a atravessar uma tempestade. A partir deste trecho do Evangelho, o Papa enquadra a pandemia, a tempestade, o medo, mas também a confiança em Deus que age por todos aqueles que estão envolvidos.

"«Ao entardecer…» (Mc 4, 35): assim começa o Evangelho, que ouvimos. Desde há semanas que parece o entardecer, parece cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos". Uma reflexão tocante, assomando a dor partilhada, mas também a firmeza da fé. "O Senhor interpela-nos e, no meio da nossa tempestade, convida-nos a despertar e ativar a solidariedade e a esperança, capazes de dar solidez, apoio e significado a estas horas em que tudo parece naufragar. O Senhor desperta, para acordar e reanimar a nossa fé pascal. Temos uma âncora: na sua cruz, fomos salvos. Temos um leme: na sua cruz, fomos resgatados. Temos uma esperança: na sua cruz, fomos curados e abraçados, para que nada e ninguém nos separe do seu amor redentor. No meio deste isolamento que nos faz padecer a limitação de afetos e encontros e experimentar a falta de tantas coisas, ouçamos mais uma vez o anúncio que nos salva: Ele ressuscitou e vive ao nosso lado. Da sua cruz, o Senhor desafia-nos a encontrar a vida que nos espera, a olhar para aqueles que nos reclamam, a reforçar, reconhecer e incentivar a graça que mora em nós. Não apaguemos a mecha que ainda fumega (cf. Is 42, 3), que nunca adoece, e deixemos que reacenda a esperança... Desta colunata que abraça Roma e o mundo desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus. Senhor, abençoa o mundo, dá saúde aos corpos e conforto aos corações! Pedes-nos para não ter medo; a nossa fé, porém, é fraca e sentimo-nos temerosos. Mas Tu, Senhor, não nos deixes à mercê da tempestade. Continua a repetir-nos: «Não tenhais medo!» (Mt 14, 27). E nós, juntamente com Pedro, «confiamos-Te todas as nossas preocupações, porque Tu tens cuidado de nós» (cf. 1 Ped 5, 7)".

Este é apenas um dos textos incluído neste livrinho. Claro que há forma de ler as intervenções do Papa nas plataformas do Vaticano, mas reunir as reflexões num livro, permite-nos voltar a ler e sublinhar algumas passagens mais tocantes. Vejamos como os títulos atribuídos às intervenções do Papa falam deste momento, mas procuram, já, lançar desafios: "A preparação para o depois é importante", "Como uma nova chama", "Um exército invisível", "Um plano para ressurgir", "O egoísmo: um vírus ainda pior", "Para os jornais de rua", e "Superar os desafios globais".

Na mensagem Urbi et Orbi, no dia de Páscoa, mais uma enxurrada de fé e confiança, e desafio: "Este não é tempo para a indiferença, porque o mundo inteiro está a sofrer e deve sentir-se unido ao enfrentar a pandemia... Este não é tempo para egoísmos, pois o desafio que enfrentamos nos une a todos e não faz distinção de pessoas... Este não é tempo para divisões. Cristo, nossa paz, ilumine a quantos têm responsabilidades nos conflitos, para que tenham a coragem de aderir ao apelo a um cessar-fogo global e imediato em todos os cantos do mundo. Este não é tempo para continuar a fabricar e comercializar armas, gastando somas enormes que deveriam ser usadas para cuidar das pessoas e salvar vidas... Este não é tempo para o esquecimento. A crise que estamos a enfrentar não nos faça esquecer muitas outras emergências que acarretam sofrimentos a tantas pessoas".

Joseph Ratzinger (BENTO XVI) - Por amor

JOSEPH RATZINGER/BENTO XVI (2019). Por Amor. Cascais: Lucerna. 144 páginas. 
Quando uma criança agarra um brinquedo dos irmãos, de algum amigo ou num centro comercial, é muito difícil convencê-la a largar o brinquedo, mesmo que tentem dar-lhe um melhor. Há tantas pessoas que continuam agarradas ao brinquedo que a comunicação social vendeu acerca do Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI. Muitos tiveram a oportunidade de corrigir a imagem que lhes tinham vendido, muitos continuam a fazer birrice, e daí também a necessidade de contrapor a humildade e bondade do atual Papa Francisco ao distanciamento e reserva de Bento XVI. Claro que são diferentes, mas a bondade, a simplicidade, a humildade e a sabedoria são características agrafadas à personalidade dos dois Papas. Mesmo no tempo em que era Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, quando recebia alguém, era sempre atencioso, delicado, com um trato familiar, próximo, direto, simples. Não deixava de ser amável, mesmo que houvesse desencontro de ideias. Uma das biógrafas do atual Papa Francisco, refere que quando o então Cardeal Jorge Mario Bergoglio ia ao Vaticano, o também Cardeal Joseph Ratzinger (Bento XVI) era dos poucos que o tratava de igual para igual, sem tiques de superioridade, mas como a um irmão! 
Neste pequeno livro que hoje sugerimos - Por amor - publicado pela Lucerna, vem ao de a humildade do pastor, a simplicidade do padre, a sabedoria do teólogo, a fé do cristão, a melodia da mensagem cristã, a ternura maternal de Maria, a luz do Evangelho, a compaixão de Jesus. 24 homilias (inéditas, pelo menos no facto de serem publicadas em livro, como um conjunto) que vão do ano 1978 a 2003, portanto antes de ser eleito Papa. Muitos dos textos são anteriores à sua nomeação para Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé. Cada reflexão é uma pérola. Não adianta tentar explicar a alguém que não quer, à partida, compreender. Para sacerdotes – como eu e outros – que já fizeram muitas homilias e tenham ouvido outras tantas, aprendemos sempre com o Cardeal Ratzinger. Há sempre apontamentos e leituras novas. Quando se lê, fica a ideia: como é que não me lembrei disto? 
Nota-se que os textos foram preparados como homilias, tem um tom muito reflexivo, pastoral, dialogante com a assembleia celebrante. Como curiosidade, há uma reflexão/mensagem na bênção de tratores, numa interessante interpretação do que é a bênção e a razão de benzer "máquinas", e há também a homilia do então Cardeal, em Fátima, em 13 de outubro de 1996. 
Também através dos textos nos aproximamos de quem os escreve. Vejamos uma ou outra passagem: 
"Ser cristão é passar da morte para a vida. O cristianismo é portanto um movimento, um caminho; não é uma teoria, nem um conjunto de doutrinas; o cristianismo é vida, é um impulso vital que nos leva à verdadeira vida e, por conseguinte, abre também os nossos olhos para a verdade, que não é pensamento puro mas força criadora fundamentalmente idêntica à caridade... a vida humana é, segundo a sua tendência natural, um caminho em direção à morte... 'Nós sabemos que passámos da morte para a vida'... o que é a vida? ... o amor é vida. O amor é síntese, a morte é dissolução. Quem encontrou o amor pode dizer: 'encontrei a vida'. A inversão do processo da morte, numa passagem para a vida, realiza-se na conversão da cupidez ao amor. O cristianismo é a conversão ao amor divino e, portanto, ao amor fraterno e, por conseguinte, passagem da morte para a vida". 
"Só o amor conhece o amor... o amor faz ver, e faz amar" 
"Em Maria, o Antigo Testamento torna-se Novo, a esperança transforma-se em cumprimento, em realidade concretizada. Ela é o advento em pessoa, isto é, o templo vivo em que Deus habita corporalmente. O sim de Maria é o momento em que o Antigo testamento se torna Novo: este sim é a porta através da qual Deus entra no mundo... Maria pode acreditar porque ama. Eva, por seu turno, perde a fé na Palavra de Deus e experimenta o contrário, no momento em que abre o seu coração à suspeita de que Deus talvez não fosse inteiramente bom. Envenenada por esta suspeita, procura a sua felicidade, colocando-se contra Deus, teme que Deus seja o adversário que a impede de ser livre, e foge da presença de Deus... O diálogo entre o Anjo e a Virgem conclui-se não só com uma profissão de fé, mas com o ato de submissão: «Eis a servas do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). A Palavra de Deus não é só informação, comunicação da verdade; esta Palavra é missão, é mandato. A fé tem uma consequência prática: transforma a vida por completo. Deus tem necessidade de Maria, do seu sim, da sua obediência. A fé só é completa se se tornar obediência concreta ao mandato divino. Deus espera o nosso sim, espera a fé que se torna vida, na transformação da nossa vontade até à plena conformidade com a Sua vontade... a fé tende a ser comunicada. A fé é dinâmica, coloca-nos em movimento em direção aos outros... Ninguém crê só por si. Todos devem testemunhar com a sua vida a fé..." 
"Um dos costumes mais antigos da liturgia cristã é um pequeno gesto no início da preparação dos dons. Deita-se uma pequena gota de água no cálice com vinho. A origem deste gesto remonta simplesmente ao velho costume dos países mediterrâneos que não tinham hábito de beber vinho puro. Por esta gota de água estamos assim ligados à origem da Eucaristia: fazemos o que Jesus Cristo fez... A mistura da água e do vinho surgiu como uma interpretação para o grande mistério de que fala o Natal: o tornar-se um só do Homem com Deus, Cristo, em quem se dá a admirável troca. Deus assume a natureza humana para que o Homem possa participar da natureza de Deus. A pobre gotazinha de água, que cai no vinho delicioso e forte, representa a Encarnação de Deus. O pobre humano é mergulhado no oceano da divindade. No coração de Deus está o Homem... Regressemos uma vez mais á gota de água no vinho destinado à Eucaristia! Ele representa o facto de Deus e o Homem se tornarem um só em Cristo. Mas é também a orientação muito prática para o dia de hoje. Deixemo-nos simplesmente mergulhar no abismo de Deus, no vinho do seu amor!" 
"Não é possível estar junto da Cruz, junto dos mistérios da nossa redenção, sem estar também junto de Maria. É aqui que Maria se torna Mãe da Igreja. A Igreja nasceu no momento em que Jesus viu a sua Mãe e, ao lado dela, o discípulo que Ele amava… Tudo está consumado a partir do momento em que o discípulo «recebe» Maria «em sua casa»... Maria conduz-nos à Cruz. A presença eucarística do Senhor provém da Cruz. Não é possível aproximar-se de Jesus evitando a Cruz... O discípulo torna-se o filho, torna-se naquilo que é Jesus. Esta admirável identificação é o fruto do amor crucificado. Essa identificação, porém, torna-se realidade quando o discípulo «recebe» Maria «em sua casa». A comunhão com a Mãe é o caminho para a união com Jesus, o caminho da santa transformação. A Igreja nasce no momento em que, do alto da Cruz, o discípulo é confiado à Mãe... O facto de Maria ser recebida pelo discípulo em sua casa comporta dois aspetos. Por um lado, o discípulo de Jesus torna-se também discípulo da Mãe. Ele aprende a ser filho na escola da Mãe. Com a Mãe, ele aprende as palavras guardadas e ponderadas no coração materno. Com Maria, aprende não só as palavras, mas também o significado do silêncio de Jesus, o silêncio de 30 anos em Nazaré, o silêncio da sua origem eterna no regaço do Pai. Com a Mãe, que é a Igreja em pessoa, ele aprende a ser Igreja. A escola da Mãe é condição indispensável para se tornar filho, para reconhecer o Pai. Por outro lado, Maria é confiada ao discípulo: «Ele recebeu-a em sua casa». Santo Agostinho comenta a propósito desta passagem que o discípulo, tendo deixado tudo, não pode receber a Mãe em sua morada física - em «sua casa»... Ele «recebe-a» realmente «na sua intimidade», no seu ser, no seu pensamento e na sua vida". 
Quando Jesus esteve na Terra… escolheu o último lugar. Nasceu num estábulo. Viveu como trabalhador no meio dos pobres de Israel. Ensinou no meio dos publicanos, dos pecadores, dos desprezados. Reuniu pescadores à sua volta. E morreu fora dos muros da cidade, entre dois criminosos. A verdadeira imagem de Deus revela-se precisamente nisso, porque o verdadeiro Deus não é um tirano que exerça o poder como Lhe apetece, que Se apresente fechado em Si mesmo para se afirmar. O verdadeiro Deus é o amor trino que se oferece… 
Na Ceia do Senhor, vemos acontecer o que também acontece no banquete com os fariseus por causa dos primeiros lugares. Os evangelistas contam-nos que, na Última Ceia, os discípulos discutiram por causa do primeiro lugar (Lc 22, 24-30). Com este seu comportamento, mais uma vez, representam entre eles, em ponto pequeno, por assim dizer, o drama da história universal. Com isso, O Evangelho quer dizer-nos que também na Igreja há mundo. Não deve ser para nós motivo de espanto que a Imagem da história universal também atinja o âmago da Igreja, podendo chegar até ao mais sagrado, até à Eucaristia. A isso, no entanto, o Senhor contrapõe a inversão de valores que que é Ele próprio. Sobre o Seu lugar na Última Ceia, Ele também já decidiu. O seu lugar não é o lugar do Senhor, o lugar do poderoso, o lugar das tigelas cheias ou o mais confortável. Ele nem sequer Se senta com o grupo; pelo contrário, anda de um lado para o outro como o servo e, em especial, Se dá a Si mesmo. 
É este o significado do relato lava-pés de São João. O Senhor lava os pés dos discípulos da sujidade e do suor do dia-a-dia para que eles possam sentar-se à mesa. João, mais ainda do que os outros evangelistas, afirma claramente que não se trata aqui de um ato moral isolado. Ao longo de toda a sua vida, o próprio Senhor é o ato do lava-pés para connosco. A sua natureza consiste em baixar-Se; Ele é, na sua essência, humildade, porque o facto de Ele, o Filho de Deus, existir enquanto homem deve-se a Ele ter tirado a túnica da Sua glória e Se ter cingido com o linho grosseiro da natureza humana. E, agora, ajoelha-Se diante de nós, as suas criaturas. Ele lavou-nos, limpou-nos com o Seu próprio corpo, através do Seu sofrimento, do fedor da nossa soberba e da sujidade do nosso egoísmo, a fim de podermos sentar-nos à mesa do banquete do amor de Deus. 
«Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz vós façais também» (Jo 13, 15). Esta frase é mais do que uma exortação moral à prática de atos morais. É a razão de ser cristão, uma iniciação à comunhão com Jesus Cristo que tem a humildade de Se baixar. Só conseguiremos identificar-nos com Ele se entrarmos nesse movimento, se nós próprios nos tornarmos humildes. Não é possível acreditar sem humildade. Sem humildade, não é possível sequer afirmar o mistério no meio do mundo que não O reconhece, nem aceitar até ao limite do nosso entendimento o caráter insondável de um Deus que Se ajoelha diante de nós. E, assim como não há fé, também não há amor sem humildade. Todos sabemos que amar implica ser capaz de engolir algumas coisas e calar outras tantas e ainda suportar a humilhação. O amor só subsiste envolto numa enorme humildade. E como, sem fé e sem amor, o Homem não tem por que ter esperança, e a fé e o amor não podem existir onde não há humildade, esta última é também a condição indispensável para a nossa esperança.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Assunção de Nossa Senhora ao Céu - 15.agosto.2020

       1 – Em Maria, Mãe de Jesus, cumprem-se as promessas de Deus. N'Ela vem habitar a força do Espírito Santo, assumindo-A por inteiro, para Se tornar, com o Seu sim, Mãe do filho de Deus, do Deus connosco. A morada de Deus entre os homens é, antes de mais e por maioria de razão, Maria, desde sempre escolhida, desde sempre consagrada para ser a Mãe do Messias.
       Na primeira leitura da Missa vespertina, David impele o povo a fazer uma grande festa, a Arca da Aliança está de novo em Sião, na cidade santa de Jerusalém. "Trasladaram a arca de Deus e colocaram-na no meio da tenda que David mandara levantar para ela. Depois ofereceram, diante de Deus, holocaustos e sacrifícios de comunhão." A Arca contém a Lei, a Aliança de Deus com o Povo, a promessa firme de Deus de que não abandonará o Seu povo. Para nós cristãos, a nova Arca é Maria, é n'Ela que está, não a Lei, mas a Palavra de Deus, Deus feito homem. Ela é a primeira Igreja, em cujo corpo se forma o Corpo de Jesus Cristo, que integraremos pelos batismo.
       Rezamos com o salmista que "o Senhor escolheu Sião, preferiu-a para sua morada" e, por conseguinte, será para Deus o lugar do Seu repouso, aí habitará para sempre. Maria é Filha de Sião. É uma linha de sucessão em que Deus – que nos criou – vem ao nosso encontro para nos assumir como filhos. Deus não está à margem, não Se coloca à parte, por cima, ou de fora. Deus entra na história e no tempo, respeitando a nossa liberdade, a nossa fisionomia, a nossa humanidade. Também Ele quer nascer em nós, através da geração/gestação carnal. Ainda que Maria não conheça homem, pois n'Ela opera a força, a sombra, do Espírito Santo! E assim Jesus é verdadeiramente homem, nascido de mulher, verdadeiramente Deus, nascido pelo Espírito Santo, antecipando o nosso nascimento espiritual, pela água e pelo Espírito.
       Maria é preparada por Deus – Imaculada Conceição – para assumir uma missão muito peculiar na história da Salvação: ser Mãe do Filho de Deus. É um privilégio, segundo os Padres da Igreja, em atenção aos méritos futuros da paixão redentora de Jesus Cristo, no qual todos somos redimidos. Até mesmo Maria é salva pela morte e ressurreição de Jesus, Seu Filho.
       Puro Dom de Deus, Ela tornar-se-á também nossa Mãe. Mãe da Igreja. Melhor, Ela é a primeira Igreja que nos dá Cristo.
       2 – Este mistério, como outros que envolvem a Virgem Maria, foi percebido e acolhido primeiramente e com maior humildade e generosidade pelo povo de Deus, a Igreja. Só muitos séculos depois a Igreja hierárquica sanciona positivamente a fé de todo o povo. Pio XII, em 1 de novembro de 1950, confirma como doutrina de fé para toda a Igreja, aquilo que a Igreja (mais popularmente) tinha como certo. Maria foi preservada desde sempre, antes de nascer. Preservada imaculada para Deus e assim Deus a preserva também no túmulo, para além da morte.
       Se nos ficarmos no dogma, como uma declaração da fé professada, não chegaremos a entrar no mistério que nos é dado em Maria, como uma certeza que faz desabrochar a nossa fé.
       Numa lógica racionalista, só o que pode ser demonstrado tem propriedades de ser verdadeiro e real! Pura razão que deixaria de fora sentimentos e emoções, pois o amor, o ódio, a confiança, não são demonstráveis pelas regras da ciência positiva. Também a cultura e a história assentam bases na confiança e na palavra dada, na interpretação e na boa-fé de quem nos narra e transmite os acontecimentos. A fé, como luminosamente expressou a Encíclica A Luz da Fé, preparada por Bento XVI e publicada por Francisco, não é um campo obscurantista que nos ilude, mas é luz que nos guia, que dá sentido à nossa vida, e que potencia a inteligência e a razão.
      Na plenitude dos tempos, Deus revela-Se encarnando. A Palavra de Deus tem um rosto, uma identidade, um Corpo, que não ofusca a nossa humanidade, pelo contrário, revela e clarifica a nossa origem, o sustentáculo e o fim da nossa existência. Doravante, as promessas concretizam-se e dão luz à nossa busca. Não estamos sós, fechados entre o nascimento e a morte, num período de tempo limitado a umas dezenas de anos. Quando morrermos, por mais doloroso que seja pensar neste facto e por mais triste que seja para quem gosta de nós, por mais sofrível que seja deixarmos tudo e sobretudo as pessoas que amamos, a certeza que não seremos apenas pó que se desfazerá terminando a nossa história e a nossa vida. Jesus entra na história, em Maria torna-se um de nós, para nos fazer entrar na vida de Deus. Assume-nos como seres humanos, criados à imagem e semelhança de Deus, e assume-nos como irmãos cuja pátria definitiva está no Céu, onde Ele já Se encontra à direita do Pai. Ora, em Maria esta promessa torna-se certeza: Ela já Se encontra onde Se encontra o Seu filho. A Mãe quer-se sempre perto dos Filhos.
       São Paulo faz transparecer a fé na ressurreição que, embora não anulando o sofrimento do tempo presente, nos faz relativizar as contrariedades da vida: "Quando este nosso corpo mortal se tornar imortal, então se realizará a palavra da Escritura: «A morte foi absorvida na vitória. Ó morte, onde está a tua vitória? Ó morte, onde está o teu aguilhão?»Com efeito, "Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram". A morte que veio por um homem, Adão, será vencida por outro homem, Jesus Cristo. A ressurreição de Jesus marca o início de um tempo novo. Ele abre-nos as portas da eternidade de Deus. Maria é assunta ao Céu, juntando-Se ao Seu filho e garantindo-nos que a seguir seremos nós, seguindo Jesus.

       3 – O PRIVILÉGIO de Nossa Senhora – preservada de toda a mancha e da corrupção – diz-nos que TODA a vida, o Seu Corpo inteiro, é de Deus e para Deus. No início, durante e no fim. Mas é um privilégio instrumental, lunar, como é a Igreja. Tem como fito refletir a luz, refletir Jesus Cristo. Obviamente, o SIM de Maria não é passivo, deixando que Deus aja sem Ela querer. Ela terá que dizer SIM no momento da Anunciação e durante toda a vida. Nesse sim Se torna Mãe de Jesus. Nesse sim Se tornará nossa Mãe, Mãe da Igreja. Se é a Mãe de Jesus, também será Ela a portadora do Corpo de Cristo, a Igreja, do Qual somos membros.
       Ela é iluminada, salva, pela LUZ que incide no Seu coração. Mas a LUZ é para ser vista, é para revelar todo o bem que A rodeia e que nos envolve. E logo nos primeiros instantes, Ela nos dá Jesus, colocando-O na manjedoura. Os Pastores e depois os Magos encontram o Menino envolto em panos e podem "pegar" n'Ele, adorá-l'O.
       No alto da Cruz, Jesus diz claramente que doravante a maternidade de Maria se expande para todos os seus discípulos, para toda a Igreja. Dessa hora em diante cabe-nos acolher Maria, trazê-l'A para nossa casa, para a nossa vida. Só assim nos tornamos discípulos amados de Jesus, só assim assumimos a fraternidade que Ele nos oferece. Partilha connosco a Mãe, para que nos assumamos, entre nós, como irmãos.
       No evangelho – belíssimo – da Missa vespertina, Jesus diz-nos que a missão de Nossa Senhora é um privilégio que está ao nosso alcance. Uma mulher, levantando a voz por entre a multidão, declara: «Feliz Aquela que Te trouxe no seu ventre e Te amamentou ao seu peito». Mas logo Jesus nos revela que a prerrogativa de Nossa Senhora não é um exclusivismo: «Mais felizes são os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática».
       Maria é Mãe, mas também é discípula de Jesus. É a primeira Igreja. Gera Cristo. N'Ela se reflete e refulge a Luz que vem da eternidade de Deus. Mas integra o Povo de Deus que peregrina ao encontro do Seu Senhor. Em vida: feliz porque escuta. Bem-aventurada Aquela que acreditou em tudo quando vem da parte do Senhor. E depois da morte (temporal), continua a dar-nos Jesus, e a acolher-nos como filhos. Ela é bem-aventurada por todas as gerações por nos ter dado o Salvador e nos mostrar como podemos responder e realizar o nosso sim a Deus em gestos de atenção, cuidado e intercessão a favor dos nossos irmãos.
       Somos chamados a partilhar a gravidez de Maria, acolhendo a Palavra que vem de Deus e dando à luz, ao mundo, a Luz, o Deus que nos habita e que em nós faz a Sua morada, preparando e antecipando JÁ a eternidade que nos espera.

Pe. Manuel Gonçalves

Textos para a Eucaristia: Ap 11, 19a; 12, 1-6a.10ab; 1 Cor 15, 20-27; Lc 1, 39-56.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

São Cristóvão, mártir

(São Cristóvão, de Hans Memling)

São Cristóvão é padroeiro dos motoristas (e dos archeiros, moços de fretes, carregadores dos mercados, pisoeiros, negociantes de frutas, automobilistas; é invocado contra a morte súbita, as tempestades, o granizo, as dores de dentes e a impenitência final) e comemorado, pelo martirológio jeronimiano, a 25 de julho. O seu nome, Cristofóro, para nós Cristóvão, significa porta-Cristo. Foi-lhe dedicada uma Igreja, na Bitínia, a 22 de setembro de 452. O seu martírio terá ocorrido no século III, um século de muitos mártires e de grande perseguição à Igreja e aos cristãos.
A lenda grega diz que ele era antropófago, da tribo dos cinéfalos (homens com cabeça de cão). Converteu-se ao cristianismo. Alistou-se no exército imperial e recusou-se a negar a sua fé. Morreu em suplícios inimagináveis.
A lenda ocidental: era um gigante com a mania das grandezas. Servia só os mais importantes. Primeiro um rei que ele pensava ser o rei mais importante do mundo. Depois encontrou o Demónio e achando que era a pessoa mais importante do mundo, seguiu-se, verificando que ele se desviava sempre que via uma cruz, contornando o caminho. Perguntou-lhe porque é que se desvia da cruz, ficando a saber a referência ao crucificado-ressuscitado.
Conhecendo Jesus Cristo, convenceu-se que era o maior rei que podia servir. Converteu-se. Pediu a um ermitão que o instruísse. Certo que Jesus apreciava a bondade, tornou-se transportador de pessoas num rio. Uma noite coube-lhe passar um menino, que se tornou tão pesado, obrigando-se a firmar-se bem nas pernas e com a ajuda de um cajado, com o receio real de ser derrubado. Quando chegou à margem disse ao menino que nem o mundo era tão pesado. Então o menino respondeu-lhe: “Tiveste às costas mais que o mundo inteiro; transportaste o Criador dele. Sou Jesus a quem tu serves”.
O martírio foi o último testemunho que deu de Jesus Cristo.
Paróquias que o têm como Padroeiro em Portugal: em Évora - Paróquia de São Cristóvão; em Lisboa Paróquia de São Cristóvão; em Viseu - São Cristóvão de Lafões; em Lamego - São Cristóvão de Nogueira (Zona Pastoral de Cinfães); em Vila Real - São Cristóvão do Douro; em Braga - Paróquia de São Cristóvão de Selho (Guimarães).
São Cristóvão, de Filippo Mazzola

Fonte: Santos de Todos os Dia, da Editorial A.O., referente ao mês de julho, publicado em 2005.
As imagens, digitalizadas, são as que aparecem neste mesmo volume.

ZACHARIAS HEYES - Como encontrar Deus

ZACHARIAS HEYES (2020). Como encontrar Deus... e porque nem é preciso procurá-l'O. Lisboa: Paulus Editora. 128 páginas
Jesus, com a Sua encarnação, vida, mensagem, com a Sua morte e ressurreição mostra-nos que Deus é um Deus tão próximo, tão próximo, que Se confunde com a humanidade. Em Jesus, Deus não apenas vem à procura da humanidade "perdida", mas faz-Se Ele mesmo humanidade, assumindo a nossa carne, a nossa fragilidade. Por conseguinte, se diz que o cristianismo não é tanto uma religião, mas um encontro, um acontecimento: Deus, Pai/Mãe, faz-Se ser humano, vem e faz a Sua morada em nós e no mundo que é a nossa casa, a casa de todos.
"Como encontrar Deus... e porque nem é preciso procurá-l'O". O título do livro faz-nos intuir o propósito do autor com estas reflexões. O Padre Zacharias Heyes é monge na Abadia de Münsterschwarzach, na Alemanha. Logo a abrir diz o que pretende. "Aquele que parte em busca de Deus não precisa de ficar constantemente no 'modo de procura', mas ter apenas a disposição interna de permitir que Deus o encontre e de O encontrar no meio das pessoas... em Jesus é evidente que Deus não só Se aproximou das pessoas, mas que Ele está nas pessoas, Ele mesmo tornou-Se homem e, como tal, pôde ser vivenciado pelos outros... O caminho leva à descoberta de Deus em mim e no outro, pois em Jesus evidencia-se que aquele que deseja encontrar Deus precisa de procurar o ser humano... se Deus está no meio da vida, no quotidiano das pessoas, então é exatamente aí que a Igreja precisa de estar".
A Encarnação de Jesus é o acontecimento decisivo. "Os cristãos acreditam que em Jesus o próprio Deus Se tornou homem. Ele viveu entre as pessoas, deu-lhes o seu amor, a sua amizade, curou-as e instruiu-as. As pessoas que conhecem Jesus recebem uma nova esperança e força através desse encontro. Deus encontrou o ser humano no homem Jesus. O desejo de Deus é estar presente entre as pessoas porque Ele ama os seres humanos".
A primeira parte do livro apresenta as experiências bíblicas essenciais e a certeza que Deus encontra o ser humano. O autor apresenta algumas personagens bem conhecidas: Adão e Eva, a certeza que não somos fruto do ocaso, mas somos criados pelo amor de Deus; Abraão, que Deus encontra através dos Seus mensageiros, revelando-Se como um Deus da partida e do caminho, num encontro que muda a sua vida e parte para outra terra; Moisés, salvo pelas águas e a certeza que "não existe lugar neste mundo que não seja lugar da presença de Deus, não existe lugar que não seja chão sagrado, não existe lugar em que não possamos encontrar Deus"; David, que Deus encontra para o ungir e tornar Rei do Seu povo; Maria, moça simples do Povo de Israel, que é surpreendida pelo Anjo Gabriel e se entrega à vontade de Deus, permitindo que n'Ela se realize a encarnação, tornando-Se a Mãe de Deus; José, a quem Deus Se comunica pelos sonhos, e que aceita o que lhe é pedido em sonho; Zaqueu, cobrador de impostos, é encontrado por Jesus, na sua banca, na certeza que Deus vem ao nosso encontro na nossa vida, antes de qualquer exigência moral, vem para ficar em nossa casa; a mulher junto ao poço: "Deus não está preso a nenhum lugar geográfico, as pessoas podem encontrá-l'O em qualquer sítio; os discípulos de Jesus: "ninguém deve acreditar que está sozinho e abandonado... a maneira mais simples de experimentar o amor de Deus é no amor de outra pessoa, porque esse amor é palpável", e Jesus, na certeza que "Deus não Se esconde. Ele deseja ser encontrado e redescoberto; nunca para de bater à porta, de chamar a nossa atenção para se relacionar connosco".
Num segundo momento - Não procures, encontra! - o autor conduz-nos a encontrar Deus em mim, partindo do facto de sermos imagem de Deus, aceitando Deus na nossa vida e no nosso corpo e com Ele tornando-nos cocriadores; a encontrar Deus nos outros - "Se eu quiser encontrar Deus no outro, o 'mapa do tesouro' que me leva até Ele é a conduta e as palavras de Jesus. Como ser humano, Ele viveu como todos os outros, entre os seres humanos. Ele amou, sofreu e zangou-se como todos não fazemos. Mas fez algumas coisas de modo diferente ao que as pessoas estavam acostumadas a fazer na época que não só surpreendeu mas também chocou aquelas que conviviam com Ele. Mas isso também significa encontrar Deus, e ás vezes pode ser incómodo... Deus pode ser experimentado no outro, no diálogo que aquece, fortalece, cura, edifica e que não julga nem condena"; a comunhão na Igreja - o encontro com Deus passa pelo encontro das pessoas umas com as outras, estamos vinculados uns aos outros, comungamos o mesmo corpo, o mesmo pão. "Eu encontro-me no outro". Solidariedade radical; o Deus em mim busca e encontra o Deus no outro, como João e Jesus, no encontro entre Isabel e Maria e todos são lugar para encontrar Deus, todos "são lugar da presença de Deus. são imagem de Deus; ou, por outras palavras, o outro é sarça ardente... o Ser humano é local da presença de Deus. Ele é a luz do mundo.. Deus deseja brilhar em cada um e por meio de cada um neste mundo". Jesus há de lembrar-nos, a propósito: o que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos é a Mim que o fazeis. Entra aqui então o programa das obras de misericórdia... Na terceira parte: "Onde é a Igreja?" e obviamente que a Igreja é... a caminho, mosteiro, peregrinação, convívio, rituais, para o espírito do tempo, misericórdia. A Igreja é com cada um, em caminho e em comunhão, na busca e sobretudo na descoberta e no encontro de Deus em cada ser humano.

terça-feira, 2 de junho de 2020

ANTÓNIO COUTO - Leitura do tempo em que vamos

ANTÓNIO COUTO (2020). Daqui, desta planura: Leitura do Tempo em que vamos. Lisboa: Óbidos: Aletheia Editores. 140 páginas.
D. António Couto, Bispo de Lamego, já nos habituou à clareza e profundidade de pensamento, no campo da reflexão bíblica, mas também com as pontes com a cultura deste tempo, do tempo dos escritos sagrados, da antropologia e arqueologia, com a etimologia dos termos e da linguagem, procurando a fidelidade a cada autor e sobretudo ao Autor primeiro.
Esta é uma obra diferente de todas as outras que publicou, ainda que haja expressões e conteúdos já insinuados, refletidos ou aprofundados noutros textos, nomeadamente nas pistas de reflexão que nos apresenta para cada domingo, sentando-se connosco à mesa da Palavra.
O tempo em que vamos remete-nos para a egolatria, para o culto do eu sem um tu como interlocutor e quando muito um tu que é adversário, inimigo e osbtáculo às minhas pretensões. O individualismo, a cultura do "ego" e, por outro lado, a exaltação da liberdade pura, sem entraves, nem ligações. Dispensa-se o outro, tudo o que é institucional, e passo a ser "eu" o critério para a minha vida, sou eu que decido, que faço. Quero, posso e mando. Dispenso o outro e o Outro que é Deus. Fico sem Deus, sem chão nem céu, sem pai nem mãe, sem religião. Eu decido o que sou, sem umbigo, escolho se sou homem ou sou mulher, ou uma mistura de ambos. Deus foi remetido para o pensamento e do pensamento para a inexistência. Não há nenhum critério moral fora de mim.
Ao individualismo atual, D. António Couto propõe a socialidade, a partir sobretudo da reflexão filosófica de Emmanuel Levinas. A opção pelo outro, que me cabe acolher. O outro aponta para o totalmente Outro, Deus, que Se revela em cada rosto. O outro impõe-se, irrompe na minha vida, com o mandamento: não matarás. O outro não é redutível, não é enquadrado, é sempre um mistério, não da razão, mas da humanidade. Levinas propõe o primado do outro.
A questão do Ocidente é a questão de uma liberdade absoluta que rejeita e exclui o rosto, a resposta, a responsabilidade. Daí que a questão do Ocidente se torne na questão do "outro", a questão da alteridade. O rosto do outro, a alteridade, conduz à socialidade, isto é, à responsabilidade pelo outro, que não tem princípio em mim, é "fruto do rosto do outro vindo sem se fazer anunciar, vindo como eleiçãi em que a minha humanidade recebe a sua verdadeira identidade e unicidade pela impossibilidade de se subtrair à eleição... a socialidade é a minha responsabilidade pelo outro, pelo próximo". "A socialidade póe-me em relação com o rosto ou o viso do outro, ao mesmo tempo, pobre e senhor, porque porque nu, e senhor porque pobre e nu, rosto ou viso que não surge como conteúdo, mas como súplica e mandamento, que quebra e interrompe a minha espontaneidade e expansividade selvagem... impõe-me a responsabilidade pelo outro, que é o verdadeiro sentido da proximidade, na aceção nova de me obrigar a responder ao outro e pelo outro, portanto, por aquilo que não fui eu que fiz".
Deixemos o autor falar um pouco mais: "De facto, perdemos o «amor», o cinto, o cíngulo, o cordão, o sýndesmos, que dava segurança, sentido e beleza à nossa vida. Vendo bem, andamos por aí perdidos, desconstruídos, à deriva, vivendo de «relações de bolso» e de «compromissos enlatados, com a advertência bem visível: »consumir de preferência antes de...». A música que nos chega aos ouvidos são notas servidas em pautas enlatadas,sons de mármore, ritmos de marchas militares ou fúnebres. Só o Rosto nu do pobre que é, afinal, o verdadeiro soberano, que nos elege, institui, veste, e ordena, vindo de fora e acolhido à porta com amor, surpresa e maravilha, dom, e-vento, ad-vento, pode romper e fecundar este areal espesso com gesso. Falo do alento de Deus, beijo de Deus no pó que modela em suas mãos. Só Ele pode transformar estas pedras em filhos e irmãos".

LUIGI GIUSSANI - Gerar rasto na História do Mundo

LUIGI GIUSSANI, STEFANO ALBERTO e JAVIER PRADES (2019). Gerar Rasto na História do Mundo. Lisboa: Paulus Editora. 212 páginas.
"O verdadeiro protagonista da história é o mendicante: Cristo mendicante do coração do homem e o coração do homem mendicante de Cristo". O Acontecimento Cristo torna concreto a realidade de Deus; o Infinito garante que a história tem um sentido que vai além de mim e de ti, de que não somos a medida das coisas, porque então seria um sentido limitado, finito, vazio. É um acontecimento que dá origem a um povo, o povo Eleito, primeiro, com o chamamento de Abraão, do novo povo de Deus, a Igreja, com a encarnação de Deus em Jesus Cristo. Este acontecimento há de gerar o encontro, o seguimento, o envio, a missão. Posteriormente, a memória tornará atual o acontecimento Cristo.
O autor, Pe. Luigi Giussani, já falecido, é o fundador do movimento Comunhão e Libertação e em algumas páginas é visível essa pertença, com a preocupação de que o carisma esteja aberto à Igreja, como um todo, e à sociedade. Sublinha ele que se o movimento estiver preocupado em defender-se e promover-se perde sentido e verdade. O livro conta com a colaboração de mais dois sacerdotes: Stefano Alberto e Javier Prades que recolheram textos, ordenando-os de forma sistemática para que resultasse num livro com princípio, meio e fim.
Vivemos uma época em que o "eu" ocupa uma lugar cimeiro, contrapondo-se ao "tu", excluindo um "nós". Os outros surgem como concorrentes ou empecilhos ao meu poder. Quando eu sou a medida das coisas e do mundo, então tudo se torna relativo até se tornar vazio ou até desaparecer. Ora, como sustenta o autor, há um Acontecimento que me precede, que nos procede, para nós cristãos, Jesus Cristo, um Acontecimento que se faz encontro. No encontro a vida acontece, altera-se, muda-se para sempre.
Logo a abrir o primeiro capítulo, o autor diz claramente que "o cristianismo é o anúncio de que Deus Se fez homem, nascido de uma mulher, num determinado lugar e num determinado tempo... Deus deu-Se a conhecer revelando-e, tomando Ele a iniciativa de colocar-se como fator da experiência humana, num instante decisivo para toda a vida humana". Deus torna-Se acessível, em Cristo podemos encontrá-l'O. É a experiência de João e André, e depois Pedro e outros apóstolos. Pedro, como João e André é surpreendido por Jesus: Tu és Simão... serás Pedra. É a "simpatia" de Jesus que atrai, chama, provoca, constitui-se em companhia, para depois enviar.
"O Cristianismo é um acontecimento: tudo o resto é consequência... Deus também poderia ter escolhido como caminho para Se comunicar aos homens o caminho de uma inspiração direta, de maneira a que cada um tivesse de seguir aquilo que Deus sugeria ao seu pensamento e ao seu coração. Um caminho, esse, que em nada seria mais fácil e seguro, sempre exposto à flutuação de sentimentos e pensamentos. mas a modalidade que Deus escolheu para nos salvar é um acontecimento".
Um acontecimento é algo palpável, é-nos exterior, irrompe na nossa vida, na história, pode ter um início, um caminho. É experimentável. O sentido da fé parte, então de um acontecimento, de um encontro, engloba a razão. "A fé cristã é a memória de um facto histórico no qual o Homem disse de si mesmo uma coisa que os outros aceitaram como verdadeira e que agora, graças à forma excecional como esse Facto ainda me alcança, aceito também. Jesus é um homem que disse: «Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida». É um Facto que aconteceu na história: um menino nascido de mulher, inscrito no registo civil de Belém... a fé é um ato da razão movida pela excecionalidade de uma presença, que leva o homem a dizer: «Este fala a verdade, não iz mentiras, aceito aquilo que Ele diz»". Sendo um Facto, possibilita o encontro. O encontro por sua vez é um facto histórico, pois acontece num momento preciso da vida, assinala o início de um caminho, sujeito às coordenadas espácio-temporais.
"O encontro feito hoje é verdadeiro porque Ele, Jesus Cristo, nascido da Virgem Maria, morreu e ressuscitou, subiu ao céu e investe a realidade com o seu Espírito. Este encontro é válido graças a um Facto acontecido há dois mil anos. A Fé é a consciência de uma presença que começou no passado: por isso o encontro ativa a memória... O encontro presente faz descobrir o acontecimento original que, por sua vez, funda, decide da verdade do encontro presente, explica-o... A memória é a história entre a origem e o agora... Jesus Cristo está presente aqui e agora: Ele permanece na história através da sucessão ininterrupta dos homens que pela ação do seu Espírito, Lhe pertencem, quais membros do Seu Corpo, prolongamento no tempo e no espaço da Sua presença. O Batismo é o gesto com que Cristo morto e ressuscitado agarra nas suas mãos os homens que o Pai Lhe deu e os leva para dentro de Si".

Luigi Maria Epicoco - O QUE ÉS PARA MIM

LUIGI MARIA EPICOCO (2019). O que és para mim. Palavras sobre a intimidade. Lisboa: Paulus Editora. 104 páginas.
       Este pequeno livro foi recomendado pelo Papa Francisco a sacerdotes e bispos.
       Italiano, o padre Luigi Epicoco escreveu alguns apontamentos para os exercícios espirituais de alguns sacerdotes americanos, já que não lhe era possível naquele momento deslocar-se à América. O livro resulta destas meditações, tendo em cada uma delas um texto bíblico e algumas questões/desafios para a reflexão e vida de cada um. Embora os destinatários sejam antes de mais os consagrados, é um belíssimo texto de reflexão para todos, para crentes cristãos, podendo ser um bom texto para aqueles que andam em busca de Algo ou de Alguém.
       As reflexões deram origem a dois outros livros: "Somente os doentes que curam" (já o sugerimos como leitura aqui na Voz de Lamego) e "A Estrela no caminho, o Menino", para leitura futuro quando estiver disponível.
      Cinco meditações: primeira pausa ou realismo de misericórdia; segunda pausa ou do pão e do silêncio: terceira pausa ou do tesouro escondido; quarta pausa ou do êxodo da competência ao abandono confiante; quinta pausa ou da parábola do Pai reencontrado.
  1. Na primeira pausa somos desafiados a colocar Deus em primeiro lugar, amor único e exclusivo, que não faz concorrência, antes alimenta o amor aos outros. "Um cristão é aquele que faz a sua vida em intimidade com Deus e vive tudo e só por Deus, com Deus e em Deus, o que quer que faça e em qualquer circunstância em que se encontre". Reconhecer que só Deus é Deus, para não converter ninguém em ídolo, numa perfeição que não existe.
  2. Na segunda etapa da viagem, a certeza de que Deus caminha connosco em todos os momentos, também quando as trevas nos assolam. Como acontece com os discípulos de Emaús, Cristo faz-Se ver especialmente na Eucaristia. "O nosso Amado faz-Se, de novo, pão e vinho, corpo e sangue. E, de novo, estamos ali, naquele cenário, sob a cruz, diante do sepulcro vazio... comemos aquela bússola e tornamo-nos direção. O caminho está em nós, em nós a verdade, em nós a vida. Já não são só os nossos olhos a ver, mas é todo o nosso ser a viver daquilo que apenas tínhamos visto". Por outro lado, "desde que Cristo encarnou, cada fragmento da realidade é, potencialmente, um lugar de encontro com o Senhor".
  3. A viagem continua.O reino de Deus que Jesus nos traz não é apenas para o além."Esta existência não pode ser apenas um vazio à espera de ser preenchido, porque esta vida não pode conter toda a plenitude da vida eterna, uma vez que é, ela própria, um tempo limitado, um recipiente demasiado pequeno para conter o céu... O cristianismo não é uma dieta que possamos começar na segunda-feira da próxima semana. O cristianismo ou é verdadeiro agora ou nunca será verdadeiro".
  4. A pausa leva-nos a colocar-nos diante de Deus com a nossa vulnerabilidade. "Amamos verdadeiramente quando nos entregamos com a nossa fragilidade à pessoa que amamos. Uma pessoa que se defende é uma pessoa que estudo de tal modo o seu inimigo que imagina o movimento seguinte... Aquele a quem nos deveríamos entregar na nossa vulnerabilidade torna-se naquele de quem nos defendemos. Procuramos, deste modo, conhecer o outro não para amar mas para dele nos defendermos... É a confiança em nós próprios e no próximo aquilo que nos falta... um inseguro é alguém que não tem disponibilidade para se ocupar do outro, porque passa a maior parte do tempo a tentar permanecer à tona".
  5. A última incursão leva-nos a refletir sobre o Pai que vai ao encontro de Jesus para que liberte o seu filho (cf. Mt 17, 14-21). Os discípulos não conseguem libertar aquela crianças do demónio que a atormenta. O pai vai até Jesus. Ser pai é ter a noção dos seus limites. Faz tudo o que pode, quando não pode pede ajuda. Um pai não vive em lugar do filho e nem é a única resposta credível para o filho. "Às vezes falta-nos a inteligência, porque nos falta a humildade. Às vezes falta-nos, mesmo, esta simplicidade: o pedir".

Nuno Tovar de Lemos, sj - Eugénia Kraft

NUNO TOVAR DE LEMOS, s.j. (2019). Eugénia Kraft. Braga, Editorial Frente e Verso. 224 páginas.

Trinta anos para escrever um livro.
Muito tempo para refletir, ponderar, amadurecer ideias e conceitos, para acolher contributos, experiências, para viver histórias, para testemunhar a vida, os sonhos, a evolução dos tempos, o amor, a amizade, a solidariedade, o sentido da vida, mas mudanças.
É assim que o sacerdote jesuíta, Pe. Nuno Tovar de Lemos, no posfácio, fala da cronologia de um livro que foi escrevendo, partilhando páginas, acolhendo sugestões, deitando fora páginas, limando a linguagem e a narrativa. O ponto de partida permaneceu: o personagem principal, Tiago, vai perder todas as memórias. Uma doença rara, da qual só percebe a palavra Kraft, atribuindo-lhe, então, um nome próprio, Eugénia. Eugénia significa "bom nascimento", quando o fio condutor deste romance é recomeço(s). Ao longo de trinta anos o texto é refeito por completo, à exceção do ponto de partida.
A personagem principal, Tiago, vai ao médico, um neurologista, para saber o resultado dos exames, nomeadamente TAC's que fez à cabeça, depois de ter descoberto um alto na cabeça, seis meses antes, pelo barbeiro. O neurologista informa-o de uma doença que não mata, mas que provocará a perda de memória, mais de 40 anos de vida que passam à história. Será como acordar de manhã em Tóquio sem saber como foi lá parar, sem conhecer ninguém, sem saber como lá chegou e tendo que explorar tudo como se fosse a primeira vez.
Haverá, contudo, uma informação básica que não perderá, a memória associada às funções básicas e primárias. Será bastante ignorante mas basicamente autossuficiente. A partir daqui decide colocar por escrito vivências, informações que irá precisar para saber quem é, quais os amigos que tem, o que faz, o que lhe pertence, números de contas e os momentos mais importantes da sua vida. Quando a "Eugénia" chegar, terá de começar de novo a construir memórias. O que será essencial nessa nova fase da vida? Então, ao rever aquilo que quer guardar começa já a mudar, a perceber quem são os verdadeiros amigos a preservar, com quem pode contar. E se a "eugénia" não aparecer? Há 20% de hipótese de tal não suceder. De qualquer forma o melhor é contar com isso! E porque esperar dois meses, porque não mudar já? "Um começo novo. Este recomeço há de certamente implicar aceitar perder muitas coisas para serem possíveis outras novas: novas ideias, novas maneiras de estar na vida, novos gostos, novos objetivos, novas maneiras de olhar para mim, novas compreensões acerca do que é a vida e o que estamos cá a fazer".
Uma das vivências que não pode esquecer: a Flowers. Legalmente ainda é a sua mulher, embora estejam separados. Na nova vida, precisa de alguém. Egoísmo, talvez! Mas talvez esteja no momento de corrigir o que falhou, a vida mais ou menos superficial, as saídas noturnas e as bebedeiras. A reaproximação a Flowers vai levá-lo a perceber a amizade e o amor, mas também o que é a fé e o amor aos outros.

Algumas expressões para refletir:
"o amor não era uma bengala onde nos apoiamos mas umas asas que nos permitem voar mais alto"
"Não é tapando buracos que se recomeça. Uma outra relação pode, eventualmente, ajudar a dar um impulso inicial de confiança mas recomeçar é um assunto estritamente pessoal. Recomeçar. acho eu, implica aprender a abraçar a própria solidão e a aprender a viver assente sobre os próprios pés em vez de se tentar agarrar a outra pessoa para poder ficar de pé. Mesmo que se tenha um companheiro ou companheira, há muitas coisas na vida que temos de viver sozinhos... a solidão é  abraço entre nós e a verdade".
"Quando uma pessoa está a nadar num rio e é apanhada num remoinho, não deve tentar nada para a superfície porque não conseguirá sair e vai esgotar as suas forças. O que a pessoa deve fazer - curiosamente - é nadar para o fundo. Porquê? Porque a porta de saída está precisamente no vértice do cone invertido, no fundo do remoinho".
"Vou abraçar a minha solidão e tirar partido dela sem andar a mendigar migalhas afetivas de outras pessoas"
"É muito mau adiar coisas importantes. Achamos que temos sempre tempo. Claro, há sempre tantas coisas a fazer que o tempo não chega. Mas o tempo chega sempre para aquilo a que damos prioridade. O problema não é a falta de tempo; o problema é termos prioridades trocadas."
"Não só por amor das pessoas a quem te dás mas por amor de alguém invisível que te ama como ninguém. E imagina que sabes que em cada gesto de amor na terra está a antecipar um abraço eterno no Céu. E uns dias são fáceis, outros difíceis; uns dias consegues, outros não consegues; uns dias percebes, outros não percebes. Mas sabes que é por aí o caminho e sentes a paz das coisas certas. E depois, quando caia, Alguém te levanta para que possas recomeçar a viagem e voltar a amar".
"Quando tempo é preciso para uma pessoa ser alguém? O tempo que precisar para aceitar que não é ninguém".
"Mais vale um garrafa cheia que uma pessoa vazia"
Deus... "diz-te para olhares para a frente, que o melhor está para vir; convida-te a seguires a tua consciência e não as expetativas dos outros ou o 'politicamente correto'; inspira-te grandes ideais que te fazem sonha alto. Aponta-te alternativas originais, sempre. E quando ficas enredado na culpa dá-te o perdão, que é a força para recomeçares... tudo na fé tem a ver com recomeçar, desde o batismo".
Não interessa "tanto se as coisas estão a ser fáceis ou difíceis mas se estamos a avançar na direção certa ou na direção errada. A maior parte das pessoas vive como se não houvesse meta, vive como uma criança de dois anos atrás de uma bola. A criança, cada vez que chega á bola, chuta numa direção qualquer, arbitrária. Sem uma meta, no fim, a bola andou aos ziguezagues"
"o que nos dá mais força não é o amigo de ferro mas aquele que partilha connosco as suas lágrimas"
"A fé que tens nos outros vem da fé que sentes que Deus tem em ti"
"Não tenho receio de morrer. Apenas um grande receio de viver sem amor".
"Vamos fugir... Vamos aproveitar. Viver cada instante como se fosse o último...
Acho que devemos fazer exatamente o oposto: viver cada dia normalmente. Não alterar nada. Viver cada instante como se fosse o do meio, não o último. E depois viver o que vier com a mesma confiança. O último já não será cá... devemos viver bem cada minuto sem estarmos a pensar se é o último ou não... em qualquer circunstância, em qualquer dia da nossa vida, devemos aproveitar bem todas as oportunidades sem nos deixarmos levar pela rotina".

"Se vivesse a caminhar p'ra Santiago...

talvez não carregasse tantos bens materiais nas malas do meu coração
e amasse mais a simplicidade de vida, a sobriedade e a partilha;

talvez não me perguntasse tanto se a vida está a ser está  ser fácil ou difícil
mas sim se estou a dar passos na direção certa ou na direção errada;

talvez não pusesse a minha segurança em nenhum abrigo, pois tudo é frágil,
mas em cada estrada buscasse Presença que me conduz;

talvez nunca mais olhasse outra pessoa pensando no que me pode dar
mas perguntasse sempre como posso ser um bom companheiro de viagem;

talvez não perdesse a cabeça com os fracassos nem me autocoroasse com os sucessos,
mas tudo agradecesse humildemente a Deus e com tudo aprendesse a caminhar melhor;

talvez não me defendesse dos outros nem me deixasse possuir por ninguém
mas todos procurasse amar com inteligência, devoção e liberdade;

talvez não ficasse agarrado às paisagens - bonitas ou feias - porque todas passam,
mas recordasse cada dia o Santuário Final para onde me dirijo e ao qual já pertenço;

e assim, cada passo, anteciparia o gozo de chegar ao Fim,
de Te encontrar no Céu e de me deixar abraçar por Ti, Senhor meu Deus. 

São Vicente Ferrer, o Anjo do Apocalípse

São Vicente Ferrer, o Anjo do Apocalípse

(texto de Almas Castelos

São Vicente Ferrer nasceu em 1350, em Valência na Espanha. Estudou filosofia, teologia, exegese bíblica e sabia falar hebraico. Foi um religioso da ordem dos dominicanos.

Certo dia, estando em Avignon (França), caiu gravemente doente a ponto de quase falecer. Foi quando teve a visão de Nosso Senhor Jesus Cristo, acompanhado de São Domingos e São Francisco, conferindo-lhe a missão de pregar pelo mundo. Assim, repentinamente, recuperou a saúde.

Sua oratória, brilhante e cheia de fogo, mantinha entretanto a lógica imperturbável das argumentações escolásticas. Mas a atração que as pessoas sentiam por suas palavras era devida principalmente a dois fatores: a percepção da presença de Deus nele e o enlevo, cheio de consolações, ocasionado pela graça divina.

Ao chegar perto de uma cidade, a população vinha ao seu encontro, e todos disputavam um lugar próximo dele. E só escapava de ser esmagado porque andava no meio de pranchões sustentados por homens possantes. Em várias cidades, enquanto durava sua pregação, os negócios paravam, as lojas fechavam, as audiências dos próprios tribunais eram suspensas.

São Vicente trabalhou ardentemente pela conversão dos judeus e dos maometanos. Há historiadores que afirmam que converteu 25.000 judeus e 8.000 mouros. Exagero? Com milagres tão abundantes e portentosos, a pergunta não deve se pôr a um espírito sério e objetivo.

No Domingo de Ramos de 1407, na igreja de Ecija (Espanha), uma dama judia, rica e poderosa, que seguia seus sermões por curiosidade e desafio, sem ocultar os sarcasmos que fazia a meia voz, atravessou de improviso a multidão para sair. Não conseguia conter-se de raiva. O povo, explicavelmente, ficou indignado. "Deixai-a sair, disse o Santo, porém afastai-vos do pórtico", o qual caiu sobre ela, matando-a.

"Mulher, em nome de Cristo, volte à vida!", ordenou ele, e assim se fez. Após um tal milagre, não é de causar estranheza que essa senhora tenha prontamente se convertido à verdadeira Religião...

Naquela cidade, uma procissão anual passou a comemorar a morte, ressurreição e conversão da judia.

Quando se encontrava na Bretanha (França), percebeu que sua vida estava chegando ao fim, por causa de uma chaga que lhe envenenara a perna.

Depois de dez dias de agonia, assistido pelos amigos, pelos irmãos dominicanos e pelas damas da corte da Duquesa da Bretanha, entregou sua bela e combativa alma a Deus, com 69 anos de idade e várias décadas de luta no cumprimento de sua missão. Era o dia 5 de abril de 1419.

O processo de canonização começou no dia seguinte à sua morte e Roma reconheceu como fidedignos 873 milagres. Foi elevado à honra dos altares em 1455 pelo Papa Calisto III, o qual recebera, muito antes de ocupar a Sé de Pedro, uma profecia do Santo. Com efeito, durante uma das pregações que este último fez em Valência, entre a multidão dos que se aproximavam de São Vicente Ferrer para se encomendar às suas orações, prestou atenção em um sacerdote, que lhe pedia também a caridade de uma prece, ao qual o grande taumaturgo dirigiu as seguintes palavras: "Eu te felicito, meu filho. Tendes presente que és chamado a ser um dia a glória de tua pátria e de tua família, pois serás revestido da mais alta dignidade a que pode chegar um homem mortal. E eu mesmo serei, após minha morte, objeto de tua particular veneração".
_______________________

Fontes de referência:

* Frei Vicente Justiniano Antist, Vida de San Vicente Ferrer, in Biografía y Escritos de San Vicente Ferrer, BAC, Madrid, 1956.
* Ludovico Pastor, Historia de los Papas, vol. II, Ediciones G. Gili, Buenos Aires, 1948.
* José Leite S.J., Santos de Cada Dia, vol. I, Editorial A.O., Braga, 1987.
* Matthieu-Maxime Gorce, Saint Vincent Ferrier, Librairie Plon, Paris, 1924.
* Henri Gheon, San Vicente Ferrer, Ediciones e Publicaciones Espanholas S.A., Madrid, 1945.

(Trechos do que foi escrito por Roberto Alves Leite na Revista Catolicismo de abril de 1997)

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Tu, meu Deus, a Quem busco


Tu meu Deus a quem busco
sede de ti tenho na alma
qual terra seca, qual terra seca sem água.

Porque o Teu amor é melhor que a vida
meus lábios querem cantar para Ti
e assim quero com a vida bem dizer-Te
e levantar as mãos abertas para Ti.

Quantas vezes de noite, quando o sono se vai, penso em Ti
e tranquilo me encontro à Tua sombra
como uma criança, minha alma se aperta contra Ti
e segura a Tua mão me sustém.

Uma só coisa Te peço, Senhor, uma coisa estou buscando:
viver em Tua casa para sempre e conhecer-Te.
Tu sabes quem eu sou. Tu sabes o que eu tenho, o que eu anseio,
o que eu não sou, o que eu não tenho.

Música interpretada por Carolina Canelas, voz e órgão, e Cláudia Canelas, na voz. A autoria da letra/música é-nos desconhecida.

domingo, 17 de maio de 2020

Homilia de Bento XVI na Beatificação de João Paulo II

Amados irmãos e irmãs,

Passaram já seis anos desde o dia em que nos encontrávamos nesta Praça para celebrar o funeral do Papa João Paulo II. Então, se a tristeza pela sua perda era profunda, maior ainda se revelava a sensação de que uma graça imensa envolvia Roma e o mundo inteiro: graça esta, que era como que o fruto da vida inteira do meu amado Predecessor, especialmente do seu testemunho no sofrimento. Já naquele dia sentíamos pairar o perfume da sua santidade, tendo o Povo de Deus manifestado de muitas maneiras a sua veneração por ele. Por isso, quis que a sua Causa de Beatificação pudesse, no devido respeito pelas normas da Igreja, prosseguir com discreta celeridade. E o dia esperado chegou! Chegou depressa, porque assim aprouve ao Senhor: João Paulo II é Beato!

Desejo dirigir a minha cordial saudação a todos vós que, nesta circunstância feliz, vos reunistes, tão numerosos, aqui em Roma vindos de todos os cantos do mundo: cardeais, patriarcas das Igrejas Católicas Orientais, irmãos no episcopado e no sacerdócio, delegações oficiais, embaixadores e autoridades, pessoas consagradas e fiéis leigos; esta minha saudação estende-se também a quantos estão unidos connosco através do rádio e da televisão.

Estamos no segundo domingo de Páscoa, que o Beato João Paulo II quis intitular Domingo da Divina Misericórdia. Por isso, se escolheu esta data para a presente celebração, porque o meu Predecessor, por um desígnio providencial, entregou o seu espírito a Deus justamente ao anoitecer da vigília de tal ocorrência. Além disso, hoje tem início o mês de Maio, o mês de Maria; e neste dia celebra-se também a memória de São José operário. Todos estes elementos concorrem para enriquecer a nossa oração; servem-nos de ajuda, a nós que ainda peregrinamos no tempo e no espaço; no Céu, a festa entre os Anjos e os Santos é muito diferente! E todavia Deus é um só, e um só é Cristo Senhor que, como uma ponte, une a terra e o Céu, e neste momento sentimo-lo muito perto, sentimo-nos quase participantes da liturgia celeste.

«Felizes os que acreditam sem terem visto» (Jo 20, 29). No Evangelho de hoje, Jesus pronuncia esta bem-aventurança: a bem-aventurança da fé. Ela chama de modo particular a nossa atenção, porque estamos reunidos justamente para celebrar uma Beatificação e, mais ainda, porque o Beato hoje proclamado é um Papa, um Sucessor de Pedro, chamado a confirmar os irmãos na fé. João Paulo II é Beato pela sua forte e generosa fé apostólica. E isto traz imediatamente à memória outra bem-aventurança: «Feliz de ti, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos Céus» (Mt 16, 17). O que é que o Pai celeste revelou a Simão? Que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus vivo. Por esta fé, Simão se torna «Pedro», rocha sobre a qual Jesus pode edificar a sua Igreja. A bem-aventurança eterna de João Paulo II, que a Igreja tem a alegria de proclamar hoje, está inteiramente contida nestas palavras de Cristo: «Feliz de ti, Simão» e «felizes os que acreditam sem terem visto». É a bem-aventurança da fé, cujo dom também João Paulo II recebeu de Deus Pai para a edificação da Igreja de Cristo.

Entretanto perpassa pelo nosso pensamento mais uma bem-aventurança que, no Evangelho, precede todas as outras. É a bem-aventurança da Virgem Maria, a Mãe do Redentor. A Ela, que acabava de conceber Jesus no seu ventre, diz Santa Isabel: «Bem-aventurada aquela que acreditou no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor» (Lc 1, 45). A bem-aventurança da fé tem o seu modelo em Maria, pelo que a todos nos enche de alegria o facto de a beatificação de João Paulo II ter lugar no primeiro dia deste mês mariano, sob o olhar materno d’Aquela que, com a sua fé, sustentou a fé dos Apóstolos e não cessa de sustentar a fé dos seus sucessores, especialmente de quantos são chamados a sentar-se na cátedra de Pedro. Nas narrações da ressurreição de Cristo, Maria não aparece, mas a sua presença pressente-se em toda a parte: é a Mãe, a quem Jesus confiou cada um dos discípulos e toda a comunidade. De forma particular, notamos que a presença real e materna de Maria aparece assinalada por São João e São Lucas nos contextos que precedem tanto o Evangelho como a primeira Leitura de hoje: na narração da morte de Jesus, onde Maria aparece aos pés da Cruz (Jo 19, 25); e, no começo dos Actos dos Apóstolos, que a apresentam no meio dos discípulos reunidos em oração no Cenáculo (Act 1, 14).

Também a segunda Leitura de hoje nos fala da fé, e é justamente São Pedro que escreve, cheio de entusiasmo espiritual, indicando aos recém-baptizados as razões da sua esperança e da sua alegria. Apraz-me observar que nesta passagem, situada na parte inicial da sua Primeira Carta, Pedro exprime-se não no modo exortativo, mas indicativo. De facto, escreve: «Isto vos enche de alegria»; e acrescenta: «Vós amais Jesus Cristo sem O terdes conhecido, e, como n’Ele acreditais sem O verdes ainda, estais cheios de alegria indescritível e plena de glória, por irdes alcançar o fim da vossa fé: a salvação das vossas almas» (1 Ped 1, 6.8-9). Está tudo no indicativo, porque existe uma nova realidade, gerada pela ressurreição de Cristo, uma realidade que nos é acessível pela fé. «Esta é uma obra admirável – diz o Salmo (118, 23) – que o Senhor realizou aos nossos olhos», os olhos da fé.

Queridos irmãos e irmãs, hoje diante dos nossos olhos brilha, na plena luz de Cristo ressuscitado, a amada e venerada figura de João Paulo II. Hoje, o seu nome junta-se à série dos Santos e Beatos que ele mesmo proclamou durante os seus quase 27 anos de pontificado, lembrando com vigor a vocação universal à medida alta da vida cristã, à santidade, como afirma a Constituição conciliar Lumem gentium sobre a Igreja. Os membros do Povo de Deus – bispos, sacerdotes, diáconos, fiéis leigos, religiosos e religiosas – todos nós estamos a caminho da Pátria celeste, tendo-nos precedido a Virgem Maria, associada de modo singular e perfeito ao mistério de Cristo e da Igreja. Karol Wojtyła, primeiro como Bispo Auxiliar e depois como Arcebispo de Cracóvia, participou no Concílio Vaticano II e bem sabia que dedicar a Maria o último capítulo da Constituição sobre a Igreja significava colocar a Mãe do Redentor como imagem e modelo de santidade para todo o cristão e para a Igreja inteira. Foi esta visão teológica que o Beato João Paulo II descobriu na sua juventude, tendo-a depois conservado e aprofundado durante toda a vida; uma visão, que se resume no ícone bíblico de Cristo crucificado com Maria ao pé da Cruz. Um ícone que se encontra no Evangelho de João (19, 25-27) e está sintetizado nas armas episcopais e, depois, papais de Karol Wojtyła: uma cruz de ouro, um «M» na parte inferior direita e o lema «Totus tuus», que corresponde à conhecida frase de São Luís Maria Grignion de Monfort, na qual Karol Wojtyła encontrou um princípio fundamental para a sua vida: «Totus tuus ego sum et omnia mea tua sunt. Accipio Te in mea omnia. Praebe mihi cor tuum, Maria – Sou todo vosso e tudo o que possuo é vosso. Tomo-vos como toda a minha riqueza. Dai-me o vosso coração, ó Maria» (Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 266).

No seu Testamento, o novo Beato deixou escrito: «Quando, no dia 16 de Outubro de 1978, o conclave dos cardeais escolheu João Paulo II, o Card. Stefan Wyszyński, Primaz da Polónia, disse-me: “A missão do novo Papa será a de introduzir a Igreja no Terceiro Milénio”». E acrescenta: «Desejo mais uma vez agradecer ao Espírito Santo pelo grande dom do Concílio Vaticano II, do qual me sinto devedor, juntamente com toda a Igreja e sobretudo o episcopado. Estou convencido de que será concedido ainda por muito tempo, às sucessivas gerações, haurir das riquezas que este Concílio do século XX nos prodigalizou. Como Bispo que participou no evento conciliar, desde o primeiro ao último dia, desejo confiar este grande património a todos aqueles que são, e serão, chamados a realizá-lo. Pela minha parte, agradeço ao Pastor eterno que me permitiu servir esta grandíssima causa ao longo de todos os anos do meu pontificado». E qual é esta causa? É a mesma que João Paulo II enunciou na sua primeira Missa solene, na Praça de São Pedro, com estas palavras memoráveis: «Não tenhais medo! Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo!». Aquilo que o Papa recém-eleito pedia a todos, começou, ele mesmo, a fazê-lo: abriu a Cristo a sociedade, a cultura, os sistemas políticos e económicos, invertendo, com a força de um gigante – força que lhe vinha de Deus –, uma tendência que parecia irreversível. Com o seu testemunho de fé, de amor e de coragem apostólica, acompanhado por uma grande sensibilidade humana, este filho exemplar da Nação Polaca ajudou os cristãos de todo o mundo a não ter medo de se dizerem cristãos, de pertencerem à Igreja, de falarem do Evangelho. Numa palavra, ajudou-nos a não ter medo da verdade, porque a verdade é garantia de liberdade. Sintetizando ainda mais: deu-nos novamente a força de crer em Cristo, porque Cristo é o Redentor do homem – Redemptor hominis: foi este o tema da sua primeira Encíclica e o fio condutor de todas as outras.

Karol Wojtyła subiu ao sólio de Pedro trazendo consigo a sua reflexão profunda sobre a confrontação entre o marxismo e o cristianismo, centrada no homem. A sua mensagem foi esta: o homem é o caminho da Igreja, e Cristo é o caminho do homem. Com esta mensagem, que é a grande herança do Concílio Vaticano II e do seu «timoneiro» – o Servo de Deus Papa Paulo VI –, João Paulo II foi o guia do Povo de Deus ao cruzar o limiar do Terceiro Milénio, que ele pôde, justamente graças a Cristo, chamar «limiar da esperança». Na verdade, através do longo caminho de preparação para o Grande Jubileu, ele conferiu ao cristianismo uma renovada orientação para o futuro, o futuro de Deus, que é transcendente relativamente à história, mas incide na história. Aquela carga de esperança que de certo modo fora cedida ao marxismo e à ideologia do progresso, João Paulo II legitimamente reivindicou-a para o cristianismo, restituindo-lhe a fisionomia autêntica da esperança, que se deve viver na história com um espírito de «advento», numa existência pessoal e comunitária orientada para Cristo, plenitude do homem e realização das suas expectativas de justiça e de paz.

Por fim, quero agradecer a Deus também a experiência de colaboração pessoal que me concedeu ter longamente com o Beato Papa João Paulo II. Se antes já tinha tido possibilidades de o conhecer e estimar, desde 1982, quando me chamou a Roma como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, pude durante 23 anos permanecer junto dele crescendo sempre mais a minha veneração pela sua pessoa. O meu serviço foi sustentado pela sua profundidade espiritual, pela riqueza das suas intuições. Sempre me impressionou e edificou o exemplo da sua oração: entranhava-se no encontro com Deus, inclusive no meio das mais variadas incumbências do seu ministério. E, depois, impressionou-me o seu testemunho no sofrimento: pouco a pouco o Senhor foi-o despojando de tudo, mas permaneceu sempre uma «rocha», como Cristo o quis. A sua humildade profunda, enraizada na união íntima com Cristo, permitiu-lhe continuar a guiar a Igreja e a dar ao mundo uma mensagem ainda mais eloquente, justamente no período em que as forças físicas definhavam. Assim, realizou de maneira extraordinária a vocação de todo o sacerdote e bispo: tornar-se um só com aquele Jesus que diariamente recebe e oferece na Igreja.

Feliz és tu, amado Papa João Paulo II, porque acreditaste! Continua do Céu – nós te pedimos – a sustentar a fé do Povo de Deus. Muitas vezes, do Palácio, tu nos abençoaste nesta Praça! Hoje nós te pedimos: Santo Padre, abençoa-nos! Amen.

PAPA BENTO XVI
Vaticano, 1 de maio de 2011