1 – «Escutai-Me e procurai compreender. Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro. O que sai do homem é que o torna impuro; porque do interior do homem é que saem as más intenções: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem do interior do homem e são eles que o tornam impuro».
Jesus é perentório: não são as circunstâncias que nos circundam que moralizam as nossas ações, mas o nosso interior, as nossas escolhas. É célebre a expressão de Ortega Y Gasset: somos nós e as nossas circunstâncias. Verdade seja dita que tudo à nossa volta nos influencia, positiva e/ou negativamente. A nossa disposição altera-se se está sol ou chuva., se dormimos bem ou mal, se alguém nos chateou momentos antes, se o pequeno-almoço não nos caiu bem. Uma infinidade de circunstâncias pode alterar o nosso humor e fazer precipitar alguma atitude ou palavra. E ninguém se livra das circunstâncias.
Contudo, as circunstâncias exteriores não fazem o carácter de uma pessoa. Somos mais que as nossas circunstâncias. Por outro lado, as nossas limitações colocam-nos em linha com as possibilidades de errar e/ou pecar. Por outro e como seres racionais, somos responsáveis por controlar/humanizar o que dizemos e o que fazemos. Um exemplo caricato: algumas pessoas bebem uns copos ou uns shots para depois dizerem "umas verdades" ou fazerem "umas maldades". Têm desculpa porque beberam?! Que não bebam!
2 – A questão levantada por alguns fariseus e alguns escribas (doutores da Lei) não tem qualquer conotação moral, pelo menos para nós. À primeira vista não passa de uma questão de higiene. Lavar as mãos antes de comer é uma recomendação para todos. Os discípulos de Jesus devem ser exímios em tudo o que os torne mais saudáveis e mais humanos.
Para os judeus trata-se de uma tradição e de uma prática religiosa. Ao longo do tempo, os 10 mandamentos deram lugar a uma "catrefada" de preceitos. Quase tudo é revestido de preceito religioso. As leis habitualmente tem uma punição associada. No judaísmo as leis tem uma leitura religiosa, como garantia para ser cumpridas.
“Os fariseus e os judeus em geral não comem sem ter lavado cuidadosamente as mãos, conforme a tradição dos antigos. Ao voltarem da praça pública, não comem sem antes se terem lavado. E seguem muitos outros costumes a que se prenderam por tradição, como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre".
As questões legais sobre a pureza cultual escraviza as pessoas. As mulheres eram as mais sacrificadas, pois todos os meses tinham dias em que eram consideradas impuras e que não podiam conviver socialmente e muito menos aproximar-se do Templo. Após o parto, a mulher tinha que ir ao Templo para se purificar. A sua impureza cultural estende-se a todos os que com ela convivem diretamente. Faz impressão hoje avaliar assim uma tradição. Não nos passa pela cabeça que um acontecimento "natural" possa excluir, ainda que momentaneamente, as pessoas do convívio social e muito menos da prática religiosa.
3 – Lavar ou não lavar as mãos antes das refeições?! É uma regra simples de higiene e de saúde. Os discípulos comem sem lavar as mãos! Quando muito poderia provocar algum retraimento ou asco daqueles que estavam à mesa com eles.
Percebe-se bem que foi um pretexto, mais um, para alguns fariseus e escribas insinuarem acerca da conduta de Jesus e dos seus discípulos. Mesmo que fosse apenas uma questão higiénica, ao dizerem-Lhe que os discípulos não tinham esse cuidado, estariam a dizer-Lhe que eram uns foras-da-lei, uns maltrapilhos desleixados, que não faziam esforço para se integrarem na sociedade. E se são assim tão descuidados e não convivem bem em sociedade, como se pode esperar alguma coisa do Seu Mestre, que vê e nada diz, nada faz?
Se pensarmos que só no séculos XIX é que alguns médicos começaram a lavar e a recomendar lavar as mãos por ocasião dos partos, dá para perceber como os judeus, também nesta questão, estavam muito à frente, sendo cuidadosos com a saúde.
Acrescente-se outra nota de reflexão: ao entrarmos nas nossas Igrejas fazemos a ablução com a água benta. Partimos do dia-a-dia para evocar a nossa ligação à Deus, reconhecendo a nossa indigência e acolhendo a misericórdia de Deus. Também os judeus como os muçulmanos têm alguns gestos que acentuam o limite que os faz entrar num espaço sagrado. As abluções são comuns a diferentes religiões, antes de entrar no templo ou de ler os Escritos sagrados.
4 – «Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos, e comem sem lavar as mãos?» Jesus não se faz rogado e diz-lhes: «Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim. É vão o culto que Me prestam, e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’. Vós deixais de lado o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens».
Em diversas ocasiões, Jesus chamará à atenção para zelos que não convertem, preceitos que não humanizam, leis que não aproximam e que já perderam o sentido. Quantas vezes nos agarramos a tradições anquilosadas? Sempre foi assim, assim será sempre! E o porquê desta ou daquela tradição? Seja na Igreja ou na sociedade, um dos critérios para validar uma tradição é a bondade da mesma, e se aproxima pessoas e as humaniza.
Na parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37), Jesus coloca em causa a pureza cultual que esquece a caridade. O sacerdote e o levita que veem aquele homem meio-morto estendido na estrada e não o ajudam porque ficavam impuros ao tocarem-lhe. Para eles o mais importante era a pureza cultual, mesmo abandonando uma pessoa de carne e osso, lugar-tenente de Deus.
5 – A lei tem a preocupação de regular comportamentos, protegendo as pessoas da lei do mais forte. A perspetiva será sempre proteger os mais frágeis.
Moisés comunica ao Povo os preceitos de Deus, para que o povo viva como povo: «Agora escuta, Israel, as leis e os preceitos que vos dou a conhecer e ponde-os em prática, para que vivais e entreis na posse da terra que vos dá o Senhor, Deus de vossos pais. Não acrescentareis nada ao que vos ordeno, nem suprimireis coisa alguma... eles serão a vossa sabedoria e a vossa prudência aos olhos dos povos».
A Lei tem um rosto e um fundamento. Moisés relembra que a Lei é sobretudo a presença próxima e amistosa de Deus: «Qual é, na verdade, a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto de nós o Senhor, nosso Deus, sempre que O invocamos? E qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que hoje vos apresento?».
A justiça dos preceitos assenta precisamente na proximidade de Deus.
6 – A segunda leitura, de São Tiago, que ora iniciamos, vai mostrar-nos com clareza a plenitude da Lei, o amor concretizado em obras, no compromisso com os mais desprotegidos. A fundamentação é a aventada já anteriormente: Deus.
Diz-nos o apóstolo: "Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descem do Pai das luzes… Foi Ele que nos gerou pela palavra da verdade… Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes… A religião pura e sem mancha, aos olhos de Deus, nosso Pai, consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo".
É Deus que nos gera pela palavra da verdade. Mais importante que conhecer a palavra, em nós plantada, é praticá-la. São Tiago dá exemplos concretos: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tripulações não se deixando arrastar pela corrente, qual "maria vai com as outras". Naquele tempo, as viúvas e os órfãos constituíam o grupo mais frágil, mais exposto, mais desfavorecido. Faziam parte das periferias existenciais com as quais os cristãos têm de estar comprometidos.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (B):
Textos para a Eucaristia (B):
Deut 4, 1-2. 6-8; Sl 14 (15); Tg 1, 17-18. 21b-22. 27; Mc 7, 1-8. 14-15. 21-23.
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