1
– Sabe-nos
bem melhor aquilo que nos sai da pele! Esta afirmação vale, sobretudo, depois
do esforço e do empenho que colocámos numa tarefa e quando alcançámos o que
pretendíamos. A priori, e diante das dificuldades que divisamos, preferiríamos
situações mais fáceis, que tudo se resolvesse sem dor, que tudo surgisse como
que por magia, sem sujarmos as mãos.
Aos
outros, quando entreveem dificuldades no caminho que têm pela frente, e face à
nossa experiência, logo dizemos que sem esforço, sem trabalho, não há
recompensa e que esta será tanto mais compensadora quanto mais exigiu compromisso,
dedicação e trabalho.
Há uma
impressão muito popular e arreigada, de que aquilo que se recebe de mão-beijada
quase sempre é desbaratado, pouco valorizado e, muitas vezes, não é
suficientemente agradecido. Ou, como quem diz, gastamos a rodos quando não
somos nós ganhá-lo e quando não sabemos o quanto nos custou. Conseguimos ouvir
os pais a reclamar com os filhos pela facilidade em gastarem o que não tiveram
esforço em conseguir.
Algo de
semelhante sucede no plano da fé. Tudo seria mais fácil se a fé fosse
demonstrável nas suas verdades e intuições fundamentais. A fé servida à medida
de cada um, com provas irrefutáveis, sem possibilidades de engano, desvio ou
dúvida. Nem sempre a fé é fácil. Em momentos de treva, nas tempestades da vida,
no sofrimento inocente, nas catástrofes naturais, nas doenças incuráveis, nas
mortes repentinas e em tenra idade, questiona-se a bondade de Deus.
2 – No primeiro
Domingo da Quaresma, o Evangelho traz-nos as tentações de Jesus, este ano na
versão mateana. As tentações e fragilidades expressam a humanidade de Jesus,
sujeito às limitações e condicionantes humanas. Por outro lado, as tentações de
Jesus fazem-nos visualizar as tentações que nos apoquentam e com as quais, nem
sempre, conseguimos lidar. São Lucas e são Mateus condensam as tentações a
três; são Marcos refere-as sem número. São colocadas no início da vida pública,
no retiro que Jesus faz, no deserto, durante quarenta dias. Porém, as tentações
estão presentes ao longo de toda a vida, como se pode ver no momento da oração
de Jesus no Jardim das Oliveiras e no alto da Cruz. A tentação da desistência
ou do questionamento de Deus.
Jesus,
diz-nos o evangelho, foi conduzido pelo Espírito ao deserto. É o primeiro
aspeto a ter em conta. Pode parecer que o centro sejam as tentações, mas o
relevante é a presença constante do Espírito na vida de Jesus. O Espírito de
Deus que é visível no Batismo em forma de pomba e audível também a voz do Pai.
O tentador
aproximou-se e disse-lhe: «Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se
transformem em pães»... Então o Diabo conduziu-O à cidade santa, levou-O ao
pináculo do templo e disse-Lhe: «Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo,
pois está escrito: ‘Deus mandará aos seus Anjos que te recebam nas suas mãos,
para que não tropeces em alguma pedra’»... De novo o Diabo O levou consigo a um
monte muito alto, mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a sua glória, e
disse-Lhe: «Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares».
Jesus
responde, decidido: «Está escrito: ‘Nem só de pão vive o homem, mas de toda
a palavra que sai da boca de Deus’... Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor
teu Deus’... Vai-te, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus
e só a Ele prestarás culto’. Então o Diabo deixou-O e aproximaram-se os Anjos e
serviram-n'O».
O caminho
de Jesus é do amor, da compaixão, do serviço aos irmãos. Não usa a sua
divindade em proveito próprio, para se exibir e impor, para dominar os outros.
Ele que Se revela como caminho, verdade e vida, percorre um caminho de entrega,
que comporta riscos e que implica sacrifício.
3 – A primeira
leitura traz-nos a narração da queda dos nossos primeiros pais. Não é, todavia,
uma história pessoal, circunscrita a um tempo e exclusiva de duas pessoas. É a
nossa história. Pertencemo-nos, somos do mesmo pó e em nós está presente o
mesmo espírito com que Deus nos chamou à vida. Fácil é vermos o mal que os
outros nos fazem ou ao mundo. Difícil é percebermos que estamos no mesmo barco
e também nós somos agentes na construção de um mundo humano e solidário, ou
carrascos da história pela nossa inação, indiferença, pelas nossas escolhas egoístas.
As
tentações afetam-nos a todos. A uns mais que outros. Umas mais do que outras.
Deus criou
o ser humano e predispôs de todas as condições para que fosse feliz, para que
não lhe faltasse nada de essencial. «Fez nascer na terra toda a espécie de
árvores, de frutos agradáveis à vista e bons para comer, entre as quais a
árvore da vida, no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal».
Tudo foi criado para usufruto e cuidado do ser humano. De tudo quanto Deus criou,
só um alerta, uma proibição: «Podemos comer o fruto das árvores do jardim;
mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus avisou-nos:
‘Não podeis comer dele nem tocar-lhe, senão morrereis’».
O fruto
proibido é o mais apetecido! O provérbio virá daqui. Com efeito, um imenso
jardim, com muitas árvores, com muitas frutas, acessível para todos! A tentação
é revestida de provocação, de desafio e de promessa. Nada pode estar interdito!
Até mesmo a condição divina! O simbolismo daquela única árvore, garante que
todos estão sob a soberania de Deus. Quando alguém toca nesse fruto, isto é,
quando assume o lugar de Deus, a consequência é colocar os outros como servos,
súbditos, objetáveis na medida em que se submetem aos caprichos do "chefe"...
4 – Adão e
Eva seguiram os impulsos mais básicos, recusando qualquer intromissão na sua
liberdade, ainda que fossem criados livres. A liberdade, contudo, é também uma
responsabilidade. Não estamos sozinhos no Paraíso. O nosso Bispo, D. António,
diz-nos que o pecado não está em comer do fruto daquela árvore, mas em
recolhê-lo para que ninguém mais possa ter acesso e usufruir do que Deus criou
para todos. Tudo podemos, dirá são Paulo, mas nem tudo nos convém!
O que Deus
coloca como interdito? Aquilo que nos afasta dos outros, endeusando-os ou
instrumentalizando-os! Na verdade, Deus criou-nos livres e deu-nos o encargo de
cuidar da criação inteira. Cuidar não é usurpar ou destruir, não é arrebanhar
para si, mas criar as condições para que todos tenham acesso.
Os
primeiros pais centram-se em si mesmos e nas suas necessidades. Jesus, no
Evangelho, mostra como vencer as tentações, colocando Deus no centro, agindo,
não em benefício próprio, mas em favor dos outros. Ele gasta-Se, entrega-Se,
vive, e morre, para que tenhamos vida e vida em abundância.
Na segunda
Leitura, são Paulo relaciona e coloca em confronto a escolha de Adão, e de
todos os que se querem tornar deuses pela força, pela imposição, pela
idolatria, e de Jesus, e de todos os que se assemelham a Deus, dando-se e
promovendo a vida, construindo a fraternidade.
«Se pelo
pecado de um só todos pereceram, com muito mais razão a graça de Deus, dom
contido na graça de um só homem, Jesus Cristo, se concedeu com abundância a
todos os homens. E esse dom não é como o pecado de um só: o julgamento que
resultou desse único pecado levou à condenação, ao passo que o dom gratuito,
que veio depois de muitas faltas, leva à justificação... De facto, como pela
desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores, assim também, pela
obediência de um só, todos se tornarão justos».
5 – Por
mais controlo que queiramos ter sobre a vida, o tempo, os outros, cedo ou tarde
nos daremos conta que não é possível um controlo absoluto e permanente. Ao
nosso alcance as escolhas que fazemos, certos de que não possuímos os dados
todos a cada momento e que nem tudo é linear. A vida é muito mais, imensamente
mais do que aquilo que conseguimos visualizar, imaginar ou controlar. Por
vezes, como dirá são Paulo, fazemos o que não queremos e não fazemos o que queremos.
A vida é um mundo complexo e misterioso.
Pelo
caminho, experimentamos a dúvida e a hesitação, os contratempos e os
desencontros. Mas não estamos sós, não caminhamos sozinhos. Contamos com os
outros, com as indicações no caminho, com os mandamentos, normas e preceitos!
Contamos com Deus, que segue connosco, se deixarmos e Lhe abrirmos o nosso
coração e a nossa vida. Ele vem em nosso auxílio se a Ele recorrermos.
O salmista
ajuda-nos, na nossa súplica, a reconhecer a nossa indigência e a dispor-nos a
acolher a santidade de Deus: «Compadecei-Vos de mim, ó Deus, pela vossa
bondade, pela vossa grande misericórdia, apagai os meus pecados. / Pequei
contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos. / Criai em mim,
ó Deus, um coração puro e fazei nascer dentro de mim um espírito firme. Não
queirais repelir-me da vossa presença e não retireis de mim o vosso espírito de
santidade. / Dai-me de novo a alegria da vossa salvação e sustentai-me com
espírito generoso. Abri, Senhor, os meus lábios e a minha boca cantará o vosso
louvor».
A oração
de coleta, no início da Eucaristia, pode bem ser uma oração para toda a
Quaresma: «Concedei-nos, Deus todo-poderoso, que, pelas práticas anuais do
sacramento quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo e
demos testemunho dele com uma vida digna».
O
acolhimento do mistério de Deus, compromete-nos com os outros, na fidelidade a
Jesus, procurando viver ao Seu jeito, amando e cuidando de todos, especialmente
dos mais frágeis. A transformação do mundo, a paz e a justiça também dependem
de nós, da nossa oração e da nossa conversão, e da tradução real e concreta,
tanto quanto nos seja possível, do que somos, cristãos, no que fazemos, a
prática do bem, sem tréguas.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos
para a Eucaristia (A): Gn 2, 7-9 – 3, 1-7; Sl 50 (51); Rm
5, 12-19; Mt 4, 1-11