Com os dados dos Evangelhos, mas também com a experiência humana, é uma possibilidade bem real que Judas tenha sido um dos discípulos mais próximos de Jesus. O próprio nome de Jesus e de Judas são muito similares. Judas poderá remeter para Judá, filho de Jacob, e tribo de Israel com o mesmo nome. Na história de José do Egipto, Judá intervém para que o irmão não seja morto.
Judas é alguém de confiança dentro do grupo, mas que tropeça na noite e se precipita na entrega do Seu Mestre.
O drama de Judas não está apenas no trair da confiança, mas na consequente culpabilização. Não supera o sentimento de culpa, ainda que se vislumbre o seu arrependimento – entreguei um homem inocente. A noite é mais forte, as trevas paralisam-no, não deixam penetrar a luz de Jesus Cristo.
Segundo Augusto Cury, o célebre psiquiatra brasileiro, se houvesse um departamento de recursos humanos na escolha dos discípulos é possível que só Judas fosse escolhido. É um homem culto, dotado, capaz de organizar a atividade missionária de Jesus. Afinal é ele quem administra os dinheiros. Em contrapartida, os demais apóstolos são pessoas do mais normal que se pode encontrar.
Tal como Jesus, ou José de Arimateia, Judas é judeu, da Judeia (os outros apóstolos são galileus, da região da Galileia, ainda que a religião seja a mesma). Sublinhe-se, porém, que Jesus é identificado com Nazaré, cidade da Galileia.
Tem responsabilidade de cuidar do dinheiro e de preparar logisticamente a pregação e o avanço de Jesus. Nenhum dos outros suspeitou de Judas, só depois de trair Jesus é que leva com as culpas todas. O beijo dado por Judas a Jesus, é o Beijo de um amigo próximo... o meter a mão no mesmo prato, ou comer do mesmo bocado de pão revela uma grande cumplicidade e amizade... os judeus só se sentam à mesa com quem se dão bem. Partilhar do mesmo prato, do mesmo pão, revela uma predileção insuspeita... mesmo quando Jesus diz a Judas: faz o que tens a fazer, ou fá-lo depressa, ninguém suspeita, de contrário, os discípulos já não o deixariam sair da sala, julgaram que era mais uma missão que Jesus lhe dava... e no Horto deixam-nos aproximar. Veja-se o episódio em que é cortada orelha a um dos soldados! Muito mais agressivos seriam para com Judas. Nem pensar. Pedro, o apóstolo espontâneo, reativo, se suspeitasse que Judas iria aprontar, levantar-se-ia e faria pior que ao soldado Malco.
Já que foi o traidor (que viria a ser o traidor), aproveita-se e, a posteriori, coloca-se nele todas as infelizes, gestos, palavras e intenções. Nenhum dos discípulos desconfia de Judas, é um homem de confiança. Todos confiam nele. Jesus confia nele. Os discípulos não estranham a proximidade a Jesus, pois ele deveria ser dos mais íntimos.
Mesmo no evangelho de são João – que centra em Judas todas as reações negativas – se vê que Judas é um homem respeitável. Há intervenções que João atribui a Judas mas os outros evangelistas atribuem a todo o grupo. A contestação acerca do desperdício do perfume de alto preço com que Maria/mulher anónima, de Betânia, unge os pés de Jesus, é comum aos discípulos, só no quarto e evangelho se nomeia Judas (cf. Mc 14, 3-8; Mt 26, 6-13; Lc 7, 36-50, e Jo 12, 1-11).
As trevas inundam o olhar e o coração de Judas. Nunca saberemos toda a motivação que o levou a entregar o Mestre, que ele admirava e seguia. Apóstolo de confiança, responsável pela bolsa comum, segundo os evangelhos, era também ele que distribuía esmola pelos mais necessitados. Segundo alguns, a entrega de Jesus procurava acelerar a "hora de Cristo", para que na eminência da morte, Jesus reagisse. Neste caso não seria falta de fé no Messias, mas a pressa em ver a salvação de Israel. A pressa dos homens sempre acaba por estragar a paciência amorosa de Deus.
JUDAS ENTREGA JESUS POR AMOR. Segundo Ariel Valdés, a razão mais plausível para Judas entregar Jesus é por amor. Judas senta-se, provavelmente ao lado de Jesus, lugar de honra, o pão oferecido por Jesus a Judas revela estima, afeto, proximidade, o que se faz com um convidado de honra. "Judas era um homem nacionalista e violento, com sonhos de poder e de grandeza. E não tinha a menor dúvida que o seu amigo Jesus poderia tornar esse sonho realidade" (ARIEL VALDÉS).
Por outro lado, São Mateus refere que o preço da entrega são umas míseras 30 moedas de prata (cf. Mt 26, 14-15. Tenha-se em atenção o propósito mateano de conciliar as profecias com a pessoa de Jesus, como Messias esperado). É o preço de um escravo. É o preço a pagar por escravo morto acidentalmente (cf. Ex 21,32). Sendo Judas um exímio gestor (e na possibilidade de ser ladrão, como afirma são João), não perderia a oportunidade para rentabilizar os créditos.
Judas precipita-se, quer fazer as coisas à sua maneira, o seu pecado é este. Jesus faz as coisas ao jeito do Pai, mesmo que Lhe custe a vida. Judas, acreditando em Jesus, quer que Ele siga por outro caminho, mais rápido, mais espetacular, forçando, se necessário, os seus ouvintes a aderir e a segui-l'O. Já que Jesus não se decide, Judas dá uma ajuda: perante a prisão e na eminência da morte, Jesus recorreria ao seu poder divino e revolveria de uma vez para sempre as indecisões e indefinições.
Episódio sintomático: Jesus envia discípulos à frente para preparem hospedagem. Os samaritanos não os acolhem porque iam para Jerusalém. Reação pronta de João e de Tiago: «Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma?» (Lc 9, 54-55). Por aqui se vislumbra a ilusão dos apóstolos e como levaram tempo a compreender a missão de Jesus e o Seu Evangelho de amor, paciência, conciliação.
Por outro lado, a disputa até ao fim dos melhores lugares no reino que está para chegar (cf. Mc 9, 33-37), mostra a imaturidade dos seguidores de Jesus, na expetativa que Jesus protagonizasse um messianismo político, militar, juntando pessoas, organizando-as e destituindo do poder as autoridades romanas mas também as judaicas, colocando em lugares estratégicos os que O acompanham de perto.
João e Tiago pedem a Jesus para se sentarem um à direita e outro à esquerda. É uma questão tão mesquinha e, simultaneamente, tão humana, que os outros discípulos também querem o lugar. São Mateus, para salvaguardar estes dois discípulos, coloca o pedido na boca da mãe, ainda que a reposta de Jesus seja para eles, deixando antever precisamente a origem do pedido (cf. Mt 20, 20-28; Mc 10, 35-45).
Ora, a preocupação de Judas não difere muito, ainda que haja uma clara alusão não tanto ao poder político ou militar, mas sobretudo ao poder religioso e divino.
Além disso, numa perspetiva complementar, a figura do discípulo amado só aparece em São João. Os Sinópticos (Marcos, Mateus, Lucas) não falam em discípulo amado, mas nos três discípulos mais íntimos de Jesus. Na Transfiguração seguem com Jesus, Pedro, Tiago e João; no Horto das Oliveiras, todos os discípulos seguem Jesus, mas ao afastar-se leva conSigo Pedro, Tiago e João e, só então, Se afasta um pouco mais para rezar.
Tradicionalmente o discípulo amado é identificado com o próprio São João e, por essa razão, não é nomeado, pois não ia falar de si próprio. Sendo um discípulo (ou discípulos) a escrever(em) o Evangelho, atribuindo ao seu mestre, usa(m) da mesma preocupação, não diz(em) o nome porque se intui. Há, contudo, alguma dificuldade em identificar o apóstolo João com o autor ou autores do evangelho. João apóstolo é galileu, o autor é (os autores são) claramente naturais de Jerusalém. Escrito pelos discípulos, quereriam sublinhar a importância do seu mestre. Se eu narro um acontecimento colocarei em destaque, pela positiva, quem me diz mais. Isso não retira crédito ou verdade à minha narração, sabendo-se sempre que cada texto, notícia, relato, leva a interpretação de quem escreve.
Olhando para os Sinópticos, há dentro dos 12, alguns mais próximos. Seriam quatro e não três, contando com Judas, ou, como fizeram depois da morte e ressurreição de Jesus que escolheram Matias para ocupar o lugar vago de Judas, também aqui poderiam ter aproximado um dos três para preencher a vaga de Judas! São suposições, mas podem ajudar-nos a entender melhor a dinâmica dos evangelhos e do seguimento.
No final, Jesus fica só com as mulheres. Todos fugiram (cf. Mc 14, 50). O quarto evangelho refere o discípulo amado junto a Maria, Mãe de Jesus. É testemunho presencial ou um desafio a não fugirmos da Cruz? E a acolhermos Maria por Mãe?
O enforcamento – sobre o qual ninguém terá uma juízo definitivo, só Deus (refira-se que o Concílio de Trento declara que quem afirmar que Judas foi para o Inferno seja declarado anátema) – poderá ser expressão do desespero – Judas reconhece o mal feito, mas não há nele luz/humildade/discernimento suficiente para corrigir, como fez Pedro, que se arrepende e refaz o caminho do seguimento – ou pressa em chegar junto de Jesus. Jesus morreu, ao matar-se, Judas juntar-se-á rapidamente ao Seu Mestre e Senhor. A biografia de alguns santos – São Paulo, Santo Inácio de Antioquia, Santa Teresa do Menino Jesus, Santa Eufémia – evidenciam a valentia diante da morte, pois esta permitirá rapidamente o encontro definitivo com Jesus.
Segundo Orígenes, baseando-se no final do Evangelho de Mateus, defende que "quando Judas se deu conta do que tinha feito, apressou-se a suicidar-se, esperando encontrar-se com Jesus no mundo dos mortos, e ali, com a alma a nu, pedir-lhe perdão" (ARIEL VALDÉS).
Pela experiência humana: quando o nosso melhor amigo se converte em inimigo – risco frequente – arranjamos justificações para dizermos que nos enganámos, ou que nos enganou durante algum tempo, mas que havia sinais à nossa frente, que não quisemos ver. Conseguimos demonstrar, avivando palavras, gestos, acontecimentos do passado, a sua falsidade, desonestidade, o seu egoísmo, a sua ganância. É sempre difícil que, após uma rutura – numa amizade ou num casal, numa empresa ou numa associação – sublinhar que foram diferenças que provocaram o afastamento e que a responsabilidade foi das duas partes. (Também aqui importa não generalizar, por vezes uma das partes fez tudo sem a ajuda de ninguém).
Para nós cristãos, mas também na convivência humana e social, a certeza da nossa fragilidade, a importância de não deixarmos que as trevas, ou a pressa de fazermos tudo à nossa maneira, ocupe o nosso coração. A Luz e o Amor de Jesus ajudou os discípulos a ultrapassarem o medo, a angústia, as trevas, a negação, a fuga. Em Judas, as trevas foram avassaladoras, ainda que tivesse um lampejo de arrependimento: entreguei um homem inocente... Há horas em que o demónio é mais forte... e quantos demónios podemos alimentar dentro de nós?
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ARIEL ÁLVAREZ VALDÉS. Porque atraiçoou Judas a Jesus?, in Bíblica, n.º 291, março-abril 2004.
Sobre o discípulo amado veja-se o artigo publicado na Bíblica, n.º 303, março-abril 2016, ARIEL VALDÉS, Quem era o "Discípulo Amado" de Jesus?.
Depois de seguir a tradição, que aponta João Apóstolo como autor do 4.º Evangelho e portanto o discípulo amado, o autor defende que as características do Apóstolo, com forte carácter, impetuoso, pronto a mandar fogo do céu contrasta abertamente com a delicadeza do Discípulo Amado, próximo, afável. Ainda que a conversão, e o encontro com o Ressuscitado tenha moldado os apóstolos de Jesus. Solução: «"Se o evangelista não nos dá o seu nome, não devemos tentar perguntar quem é", afirmava santo Agostinho» (VALDÉS). Assim sendo, cada um de nós pode ser o discípulo amado se na sua conduta imitar o seu jeito de seguir Jesus e estar perto d'Ele sobretudo nos momentos mais dolorosos. Valeria também ler ou reler Bento XVI/Ratzinger, na obra Jesus de Nazaré. Ratzinger não entra em discussões tão específicas, mas aponta o discípulo amado como modelo a seguir.