1 – O Jubileu da Misericórdia está agrafado ao Evangelho de São Lucas, conhecido também como Evangelho da Misericórdia. O Evangelho transparece a ternura, a docilidade, a proximidade de Jesus com os pecadores, os pobres, os doentes, os enjeitados deste mundo, leprosos, mulheres, crianças, servos, publicanos, estrangeiros. Nas palavras e nos gestos, na postura e nos prodígios, Jesus orienta a Sua vida e missão para reabilitar, curar, envolver, incluir, salvar. O mistério da Encarnação garante-nos a presença de Deus no meio de nós. Da eternidade para o tempo, do Céu para o mundo, para redimir a humanidade, reconciliando-a pelo perdão e pelo amor.
Estamos no centro do Evangelho, com este grupo de três parábolas. Outras parábolas nos falam da misericórdia: dois devedores perdoados das suas dívidas (Lc 7, 41-43); o Bom Samaritano, que socorre o homem caído à beira do caminho (Lc 10, 25-37); o pobre Lázaro, que nos desafia a agir com compaixão, aqui e agora, onde se inicia o caminho para o Céu... amanhã é sempre tarde (Lc 16, 19-31); Misericórdia no prisma da oração perseverante, na súplica da viúva pobre diante do iníquo Juiz (Lc 18, 1-8); o fariseu soberbo e o publicano justificado pela humildade (Lc 18, 9-14). Mais que pelo mérito, a justificação vem-nos da misericórdia divina que nos reabilita além da nossa miséria.
Primeira condição para sermos redimidos: abertura à graça de Deus. As parábolas explicitam o agir de Jesus; veja-se, por exemplo, a compaixão para com a viúva de Naím que levava o filho único a sepultar (Lc 7, 11-17) ou para com a multidão fatigada e faminta, multiplicando os pães (Lc 9, 11b-17). Só para dar dois exemplos do cuidado e da resposta concreta que Jesus que dá.
2 – "Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és". Junta-te aos bons e serás como eles, junta-te aos maus e serás pior que eles! Qualquer um de nós está certo destes princípios. Facilmente nos colocaríamos do lado dos escribas e fariseus, contestando a promiscuidade de Jesus, que convive e come com publicanos e pecadores! Jesus anda em "más" companhias. Vai correr mal!
Aqueles que prevenimos, contestam-nos dizendo que conhecem bem os amigos e se sentem capazes de os mudar. Jesus também se justifica, mas remetendo-nos para o proceder de Deus, que usa de misericórdia para com todos e faz festa pelo reencontro dos que se perderam.
Conta-lhes, e a nós também, uma parábola, desdobrável em três. «Quem de vós, que possua cem ovelhas e tenha perdido uma delas, não deixa as outras noventa e nove no deserto, para ir à procura da que anda perdida, até a encontrar? Quando a encontra, põe-na alegremente aos ombros e, ao chegar a casa, chama os amigos e vizinhos e diz-lhes: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida’. Eu vos digo: Assim haverá mais alegria no Céu por um só pecador que se arrependa, do que por noventa e nove justos, que não precisam de arrependimento. Ou então, qual é a mulher que, possuindo dez dracmas e tendo perdido uma, não acende uma lâmpada, varre a casa e procura cuidadosamente a moeda até a encontrar? Quando a encontra, chama as amigas e vizinhas e diz-lhes: ‘Alegrai-vos comigo, porque encontrei a dracma perdida’. Eu vos digo: Assim haverá alegria entre os Anjos de Deus por um só pecador que se arrependa».
O Pastor deixa tudo e vai procurar a ovelha perdida. Ao encontrá-la, coloca-a aos ombros e alegra-se, fazendo festa com os amigos. É fundamental cuidar para que nenhuma ovelha se perca. O ambiente é adverso, o deserto. As complicações da vida, exterior e interior, podem conduzir ao desnorte e à perdição. Mas também podemos perder-nos dentro de casa, dentro da Igreja, no caminho da fé. A mulher perde a dracma em casa. Quando encontra a moeda perdida, faz festa com as amigas. Deus sempre faz festa, no nosso regresso! Antes, precisamos de arrumar a casa, acender a lâmpada da fé, de varrer tudo o que é poeira e estorvo, desviar os empecilhos, para então encontrarmos a moeda perdida.
3 – Na terceira parábola, a mais refletida, Jesus fala num Pai que ama até ao limite e dois filhos que não se reconhecem como irmãos e lidam com o Pai como Patrão. O Pai procura salvá-los pelo amor. Os filhos relacionam-se em dinâmica de poder, disputando para ver quem é o melhor. Um acomoda-se em casa do Pai-patrão, vai herdar um imenso património. Outro pede-lhe em vida o que lhe pertenceria pela morte, quer ser patrão de si mesmo, autodeterminando-se e assumindo-se "sem pai", já que o considera morto pelo pedido da herança que lhe toca.
O pai reparte os bens pelos seus filhos. Poderia não o fazer, pois só a morte o exigiria. Mas abaixa-se à vontade dos filhos. Por amor. A sua tristeza é evidente. Não se revolta. Não contesta os filhos. Continua a amá-los com amor materno. Parte-se-lhe o coração. Mas não desiste. Deus nunca desiste de nós. Espera, espreita o horizonte contando que o filho regresse. Quando isso acontece, não se faz rogado, "ainda ele estava longe, quando o pai o viu: enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos".
O filho continua a fixar-se em si mesmo e não no Pai. Quer ser acolhido como empregado. O que o faz regressar é a miséria em que caiu. Para o pai é suficiente um esboço de arrependimento: "Pai, pequei contra o Céu e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho". Está tão feliz que nem espera pelas justificações do filho: "Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha. Ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o. Comamos e festejemos, porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado". A misericórdia de Deus cancela as nossas dívidas, o nosso pecado; só não atua se não lhe abrirmos qualquer brecha.
4 – A festa começa e, quando tudo parece bem, eis que vem o filho mais velho e faz a sua birra. Ciumento e invejoso, não vê o irmão que regressa vivo, mas um concorrente – esse teu filho – a disputar as graças do patrão! "Há tantos anos que eu te sirvo, sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos. E agora, quando chegou esse teu filho, que consumiu os teus bens com mulheres de má vida, mataste-lhe o vitelo gordo".
O filho mais velho reclama direitos. Sempre certinho, cumpridor, mas sem experimentar a alegria da proximidade com o pai. Não partilha alegrias, só trabalho. Não saboreia a vida, só obrigações. A relação com o Pai não assenta na familiaridade e na alegria, mas em deveres.
Para o Pai, em todas as situações, prevalece o amor, a compaixão, a proximidade. Não há nada mais importante que os filhos. Podem maltratá-lo, esbanjar os bens, acusarem-no. O importante é que os filhos se sintam em casa e que estejam bem e sejam felizes. «Filho, tu estás sempre comigo e tudo o que é meu é teu. Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado».
Todos os filhos contam. E contam tudo. O Pai "obriga-nos" a olhar para o outro como irmão. Se é Pai de todos, somos todos irmãos. Devemos tratar-nos como tal.
5 – A Misericórdia de Deus não tem limites. Melhor, o único limite é a nossa liberdade. Podemos escolher viver à margem de Deus, longe de casa e de costas voltadas para os irmãos.
O povo de Deus experimenta a misericórdia de Deus, mas rapidamente se esquece do Seu cuidado e do Seu amor. Faz lembrar alguns animais domésticos, mal enchem a pança logo se afastam de casa. Aquele povo, liberto do Egipto, ensoberbece-se, fazem um deus à sua imagem!
Diz Deus a Moisés: «Tenho observado este povo: é um povo de dura cerviz. Agora deixa que a minha indignação se inflame contra eles e os destrua. De ti farei uma grande nação».
A oração ajuda-nos a perceber a vontade de Deus. De modo nenhum Deus quer a morte do pecador, mas antes que se converta e viva. A oração de Moisés revela a sensibilidade e o cuidado para com os seus irmãos, invocando a benevolência de Deus: «Por que razão, Senhor, se há de inflamar a vossa indignação contra o vosso povo, que libertastes da terra do Egipto com tão grande força e mão tão poderosa? Lembrai-Vos dos vossos servos Abraão, Isaac e Israel, a quem jurastes pelo vosso nome, dizendo: ‘Farei a vossa descendência tão numerosa como as estrelas do céu e dar-lhe-ei para sempre em herança toda a terra que vos prometi’». Deus não desiste de nós. Nunca. Mais facilmente desistimos uns dos outros.
6 – Deus não cessa de nos amar. Só amando é possível tornar completa a vida e projetá-la até à eternidade. O amor pleniza-nos e eterniza os nossos sonhos e as nossas escolhas.
Deus envia-nos Jesus. A eternidade entra no tempo, o divino humaniza-se, o Céu toca a terra, Deus faz-Se um de nós. Para nos salvar a partir de dentro. Sem imposições. Por amor. O apóstolo é testemunha desta graça de Deus. Perseguidor, blasfemo, pecador, alcançou a misericórdia de Deus. "A graça de Nosso Senhor superabundou em mim". Com efeito, continua o apóstolo, "Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores e eu sou o primeiro deles. Mas alcancei misericórdia, para que, em mim primeiramente, Jesus Cristo manifestasse toda a sua magnanimidade…".
Humildemente, seguindo a interpelação do apóstolo, confiemo-nos ao olhar compassivo de Deus nosso Pai: "Criador e Senhor de todas as coisas, lançai sobre nós o vosso olhar; e para sentirmos em nós os efeitos do vosso amor, dai-nos a graça de Vos servirmos com todo o coração".
Na proximidade de Deus, acolhidos na casa paterna, na alegria do Seu banquete, prontifiquemo-nos a contagiar outros para este reino de alegria e de paz, de justiça e de amor.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (C): Ex 32, 7-11. 13-14; Sl 50 (51); 1 Tim 1, 12-17; Lc 15, 1-32.