sábado, 28 de fevereiro de 2015

Domingo II da Quaresma - ano B - 1 de março de 2015

       1 – Fomos com Jesus ao deserto, para rezar, para nos encontrarmos connosco e com Deus, para criarmos maior disposição para acolher Deus e mais tempo para os outros. Os desertos da nossa vida põem-nos à prova. Na intimidade com Deus, vencida a tentação do desânimo, do egoísmo, da facilidade, a tentação de dispensarmos os outros e o próprio Deus, ficamos mais fortes, mais ágeis, mais humildes; esvaziamo-nos de nós para nos preenchermos com o Espírito Santo que conduziu Jesus ao deserto e ao longo de toda a sua vida.
       Hoje o convite é para subirmos com Jesus à montanha, como discípulos. Naquele tempo, Jesus levou Pedro, Tiago e João. Hoje toma-nos pela mão, a cada um de nós, para O seguirmos. São Marcos coloca-nos em movimento. É preciso SAIR da nossa comodidade, da cidade, da aldeia, dos nossos afazeres, e CAMINHAR, e não apenas em terreno plano, mas SUBIR à montanha. É-nos exigida valentia. Sermos mornos (nem quentes nem frios, nem vou lá nem faço míngua) não é suficiente para seguir Jesus. Com Ele, não há mínimos garantidos, há sempre caminho a fazer, poderemos sempre identificar-nos mais e mais com o Seu amor.
       Depois de ter anunciado aos seus discípulos a paixão cruenta, Jesus envolve-os nesta manifestação de luz, deslumbramento, antecipando e visualizando a ressurreição, vida nova. A transfiguração é uma AMOSTRA da RESSURREIÇÃO. Também para nós. No meio das dificuldades e dos desertos precisamos de luz que nos indique o caminho, que nos recoloque em dinâmica de esperança, precisamos que nos digam que a vida tem sentido, e que melhores dias estão para vir, apesar de tudo!
       2 – Jesus abre-lhes o coração, transfigura-Se diante deles, diante de nós. A conversar com Ele, a Lei e os Profetas, representados por Moisés e Elias. A eternidade torna-se mais visível. Resplandece a esperança. Está-se bem naquele lugar, naquele momento. Então Pedro, assumindo a liderança de entre os apóstolos, diz a Jesus: «Mestre, como é bom estarmos aqui! Façamos três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
       Estão como que fora de si, a sonhar acordados. Sentem-se bem, confortáveis, envolvidos, parece que o tempo parou, SUBIRAM com Jesus. Como no batismo, do Céu vem uma voz: «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O». Há, porém, algumas diferenças significativas. No Batismo, a voz do Pai dirige-se a Jesus: És o meu filho muito amado (cf. Mc 1, 7-11). Agora dirige-se a Pedro, Tiago e João, e a cada um de nós, garantindo Jesus como Filho, mas agrafando-nos à Sua missão: escutai-O. Por aqui se vê a prioridade e a urgência da escuta. Antes de sermos missionários, evangelizadores, somos ouvintes, discípulos, aprendizes. Com o tempo, seremos discípulos missionários, quanto mais escutarmos mais testemunharemos Jesus.
       Eis que acordamos do sonho. Precisamos de DESCER com Jesus. Foi para isso que Ele veio. Desceu das alturas para viver como um de nós, connosco, no meio do mundo e da história, entranhado na nossa vida, ajudando-nos a olhar para o Pai. Ele é o Caminho que nos conduz a Deus, a Verdade e a Vida. N’Ele temos acesso ao Pai, quem O vê, vê o Pai (cf. Jo 14, 1-9).
       O relato da transfiguração é também uma parábola da vivência da nossa fé. Orientamos a vida, com as suas esperanças e as suas tristezas, para a celebração da Eucaristia, na qual nos encontramos com Jesus, morto e ressuscitado, ou na qual Ele nos encontra, pelo Seu Espírito Santo. Neste encontro poderemos transfigurar a nossa vida. Mas não acaba aí. A Eucaristia, se a vivemos com autenticidade, faz-nos DESCER ao encontro dos outros, sobretudo dos mais necessitados de pão e de atenção.
       3 – A ordem dada aos apóstolos, para que não dissessem nada a ninguém até à ressurreição dos mortos, levanta também o véu sobre o que lá vem. Estão para chegar tempos difíceis. Provação. Dúvida. Perseguição. E a morte do Filho do Homem. Mas não será o fim, pois Ele se levantará da morte para a vida. É tão surpreendente esta boa nova que os discípulos se interrogam sobre o que será a ressurreição dos mortos. São apanhados de surpresa. E nós também!

       4 – A vida de Jesus, a Sua morte e ressurreição, firma definitiva e plenamente a Aliança de Deus com a humanidade. Víamos no domingo passado que a Aliança de Deus confiada a Noé é unilateral, Deus promete a Sua bênção e proteção sobre a humanidade e não exige nenhuma contrapartida. Obviamente, como diria o Papa Bento XVI, até o amor oblativo de Deus aguarda uma resposta, mesmo que não parta dessa premissa, mas da vontade originante.
       Em Abrão antecipa-se a entrega do Filho de Deus. Abraão oferece a Deus o seu bem mais precioso, o seu amado Filho. Deus recusa o sacrifício de Abraão. Aceita o gesto, mas não a morte. A morte de alguém não aplaca a ira de Deus, porque em Deus prevalece o amor, a bondade e a misericórdia. «Porque obedeceste à minha voz, na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra». A oferenda de Abraão vale-lhe a bênção de Deus, extensível a toda a humanidade.
       Deus aceitará a vida de Jesus como oferenda, entregue voluntariamente para salvação da humanidade. Será também a morte de um inocente, mas desta feita não de um filho alheio mas do próprio filho. Não por interposta pessoa – é Abraão que oferece o filho – mas pelo próprio – Jesus responde com a Sua vida, pessoalmente.
       Com a morte e sobretudo com a ressurreição de Jesus, por Ele anunciada, sela-se a Aliança nova e definitiva. E «se Deus está por nós, quem estará contra nós? Deus, que não poupou o seu próprio Filho, mas O entregou à morte por todos nós, como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas? Quem acusará os eleitos de Deus, se Deus os justifica? E quem os condenará, se Cristo morreu e, mais ainda, ressuscitou, está à direita de Deus e intercede por nós?»

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano B): Gen 22, 1-18; Sl 115 (116); 2 Rom 8, 31b-34; Mc 9, 2-10.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Cadeira de São Pedro, Apóstolo

Nota Histórica:
       A festa da Cadeira de São Pedro era já celebrada neste dia em Roma no século IV, para significar a unidade da Igreja, fundada sobre o Príncipe dos Apóstolos.
       Jesus perguntou: "E vós, quem dizeis que Eu sou?".
       Então, Simão Pedro tomou a palavra e disse: "Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo".
       Jesus respondeu-lhe: "Feliz de ti, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que to revelaram, mas sim meu Pai que está nos Céus. Também Eu te digo: Tu és Pedro; sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos Céus: tudo o que ligares na terra será ligado nos Céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos Céus" (Mt 16, 13-19).

       A celebração de hoje concentra-se à volta de São Pedro. É a parte pelo todo, a cadeira pelo Apóstolo. A "Cadeira" simboliza o ensinamento, a cátedra. Quem nela se senta, tem autoridade sobre os outros discípulos, o poder de confirmar na fé e de dar razões da esperança cristã.

Mensagem de D. António Couto para a Quaresma 2015


QUARENTA DIAS DE ORAÇÃO E 24 HORAS DE PERDÃO


1. Na sua mensagem para esta Quaresma, o Papa Francisco lança um forte apelo contra a indiferença generalizada e globalizada, que se instala no nosso coração e o anestesia e endurece, tornando-nos insensíveis. A indiferença é, diz o Papa, uma reclusão mortal em nós mesmos, e desafia, por isso, as nossas paróquias e comunidades a serem ilhas de misericórdia no meio deste vasto mar de indiferença. E contra a dureza enrugada do nosso coração, o Papa propõe a beleza e leveza, sem rugas, da graça e do perdão, uma Igreja maternal, vigilante, compassiva e comovida, com «um coração que vê», como uma mãe sempre atenta, uma mão sempre estendida para manter entreaberta a porta do amor e do perdão, a porta de Deus (Salmo 106,23).


2. Para tornar as coisas mais palpáveis e visíveis, o Papa propõe mesmo a realização de um «Dia do Perdão», 24 horas de reconciliação, a levar a efeito na Igreja inteira nos dias 13 e 14 de Março, de meia tarde a meia tarde, sob o lema: «Deus, rico de misericórdia» (Efésios 2,4). Peço, por isso, encarecidamente, a todos os sacerdotes que convoquem as comunidades paroquiais para este exercício de renovação das pautas do coração através da oração, da escuta atenta e qualificada da Palavra de Deus, da vivência da Eucaristia, do Sacramento da Reconciliação e da prática da caridade. Não deixemos de dar corpo e alma a este «Dia do Perdão», para o qual o Papa Francisco nos convoca.


3. Façamos, amados irmãos e irmãs, do tempo da Quaresma um tempo de diferença, e não de indiferença. Dilatemos as cordas do nosso coração até às periferias do mundo, e que o nosso olhar seja de graça para os nossos irmãos de perto e de longe. Façamos um exercício de verdade. Despojemo-nos, não apenas do que nos sobra, mas também do que nos faz falta. Dar o que sobra não tem a marca de Deus. Jesus não nos deu coisas, algumas coisas para o efeito retiradas da algibeira, mas deu por nós a sua vida inteira. Dar-nos uns aos outros e dar com alegria deve ser, para os discípulos de Jesus, a forma, não excecional, mas normal, quotidiana, de viver (Atos 20,35; cf. Tobias 4,16). Como em anos anteriores, peço aos meus irmãos e irmãs das 223 paróquias da nossa Diocese de Lamego para abrirmos o nosso coração a todos os que sofrem aqui perto e lá longe.

4. Neste sentido, vamos destinar uma parte da nossa esmola quaresmal para o Fundo Solidário Diocesano, para aliviar as dores dos nossos irmãos e irmãs de perto que precisam da nossa ajuda. Olhando para os nossos irmãos e irmãs de longe, vamos destinar outra parte do esforço da nossa caridade para apoiar os 25 Centros de Recuperação Nutricional (CRN) da Guiné Bissau. Esta mão de amor estendida até à Guiné Bissau traduz-se no apoio concreto a 60.000 crianças (dos 0 aos 6 anos), enquadradas em 10.000 famílias e 320 comunidades. Lembro que a mortalidade infantil (dos 0 aos 5 anos) atinge, na Guiné Bissau, a cifra altíssima de 27,4%, muito devido à subnutrição e parcos cuidados de higiene e de saúde. Estes 25 Centros de Recuperação Nutricional, geridos por Congregações Religiosas com a coordenação da Cáritas da Guiné Bissau, representam um pouco mais de esperança para as crianças guineenses. A Fundação Fé e Cooperação (FEC), que foi instituída em 1990 pela Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) e pela Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP), e que este ano celebra 25 anos de existência, diálogo, fé e cooperação, encontra-se também a trabalhar no terreno guineense, dando apoio a estes 25 Centros de Recuperação Nutricional. Serão os membros desta instituição da Igreja Católica que levarão a nossa esmola para as crianças da Guiné Bissau, e velarão pela sua eficaz aplicação. Esta finalidade da nossa Renúncia ou Caridade Quaresmal será anunciada em todas as Igrejas da nossa Diocese no Domingo I da Quaresma, realizando-se a Coleta no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor.

5. Com a ternura de Jesus Cristo, saúdo, no início desta caminhada quaresmal de 2015, todas as crianças, jovens, adultos e idosos, catequistas, acólitos, leitores, salmistas, membros dos grupos corais, ministros da comunhão, membros dos conselhos económicos e pastorais, membros de todas as associações e movimentos, departamentos e serviços, todos os nossos seminaristas, todos os consagrados (em ano a eles consagrado), todos os diáconos e sacerdotes que habitam e servem a nossa Diocese de Lamego ou estão ao serviço de outras Igrejas. Saúdo com particular afeto todos os doentes, carenciados e desempregados, e as famílias que atravessam dificuldades. Uma saudação muito especial a todos aqueles que tiveram de sair da sua e da nossa terra, vivendo a dura condição de emigrantes.

Lamego, 18 de Fevereiro de 2015, Quarta-feira de Cinzas
Na certeza da minha oração e comunhão convosco, a todos vos abraça o vosso bispo e irmão,

+ António.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Domingo I da Quaresma - ano B - 22 . fevereiro . 2015

       1 – "O Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto. Jesus esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás. Vivia com os animais selvagens e os Anjos serviam-n’O. Depois de João ter sido preso, Jesus partiu para a Galileia e começou a pregar o Evangelho, dizendo: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
       O primeiro Domingo da Quaresma traz-nos o episódio das Tentações de Jesus. As versões lucana (Lc 4, 1-13, ano C) e mateana (Mt 4, 1-11, ano A) desdobram-se em três tentações distintas: usar o milagre para se impor; utilizar o poder em benefício próprio; dobrar-se diante do poder para dominar o mundo. Facilidade, egoísmo, fama. As tentações a que Jesus está sujeito são as mesmas tentações do povo de Deus ao longo do deserto. O povo cedeu. Jesus ajuda a superar as tentações em entrega confiante a Deus.
       São Marcos, o evangelista da primeira hora, mais simples, mais direto, narra apenas as tentações sem especificar quais. Diz-nos, no entanto, o essencial acerca das mesmas, o contexto e o significado. Jesus, verdadeiro homem, é tentado como qualquer um de nós. As nossas tentações são visualizáveis em Jesus, porque em tudo Se identificou connosco. Os desertos da nossa existência podem tornar-se tempo de dúvida, de provação, de amadurecimento, de purificação dos nossos propósitos e compromissos. Quarenta anos: a Quaresma do povo da Primeira Aliança para entrar na Terra da Promessa. Jesus é a Promessa que se cumpre para nós. Quarenta dias em que Se prepara para Se dar totalmente a nós, sem reservas, sem medos e sem hesitação.
       O alimento de Jesus é a realização da vontade do Pai. Eu venho, Senhor, para fazer a Vossa vontade. Não quisestes sacrifícios, mas fizeste-me um corpo (cf. Heb 10, 1-10). A tentação acompanhá-l'O-á ao longo da vida, como a nós. Mas há em Jesus uma força maior: a presença de Deus. Com efeito, é o Espírito Santo que O conduz ao deserto. É o mesmo Espírito que Se manifesta no Batismo. O tentador é forte, mas Deus assiste Jesus com os Seus santos Anjos.
       2 – Deus assiste-nos do mesmo jeito que a Jesus: próximo, Pai, benevolente, respeitando as nossas opções, desafiando-nos a dar o melhor de nós e a acolher os outros como irmãos. É Deus Quem nos guia, assim o queiramos nós. É possível que as tentações nos acerquem. É possível seguir Jesus, fazer como Ele, deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus.
       Se o Seu alimento – a vontade do Pai – o livra do mal e das manifestações diabólicas, também a nós nos dará a força e a caridade para, em cada dia, encontrarmos razões que nos atraiam para o bem e para a verdade, pois Ele é o nosso Caminho e a nossa Vida.
       Vale a pena reler algumas palavras do Papa Francisco na sua Mensagem para esta Quaresma, e das quais faz eco D. António Couto, Bispo de Lamego, ao dirigir-se à Diocese, convocando-nos a marcar a diferença num mundo em que a indiferença pelos outros se globaliza.
       Diz o Papa: "Dado que a indiferença para com o próximo e para com Deus é uma tentação real também para nós, cristãos, temos necessidade de ouvir, em cada Quaresma, o brado dos profetas que levantam a voz para nos despertar. A Deus não Lhe é indiferente o mundo, mas ama-o até ao ponto de entregar o seu Filho pela salvação de todo o homem. Na encarnação, na vida terrena, na morte e ressurreição do Filho de Deus, abre-se definitivamente a porta entre Deus e o homem, entre o Céu e a terra".
       E continua Francisco, avivando as condições para superarmos as tentações: "Se humildemente pedirmos a graça de Deus e aceitarmos os limites das nossas possibilidades, então confiaremos nas possibilidades infinitas que tem de reserva o amor de Deus. E poderemos resistir à tentação diabólica que nos leva a crer que podemos salvar-nos e salvar o mundo sozinhos. Para superar a indiferença e as nossas pretensões de omnipotência, gostaria de pedir a todos para viverem este tempo de Quaresma como um percurso de formação do coração, a que nos convidava Bento XVI (Carta Encíclica Deus caritas est, 31)".
       3 – Outro Papa, o primeiro, São Pedro, recorda-nos o mistério de amor, de entrega, de oblação de Jesus em nosso favor: «Cristo morreu uma só vez pelos pecados – o Justo pelos injustos – para vos conduzir a Deus. Morreu segundo a carne, mas voltou à vida pelo Espírito».
       Com efeito, a vinda de Jesus marca um tempo novo, de graça e de salvação, em que a Aliança de Deus com o Seu povo é finalizada, levada à plenitude. Como nos diz São Pedro, já "nos dias de Noé, Deus esperava com paciência, enquanto se construía a arca, na qual poucas pessoas, oito apenas, se salvaram através da água". Agora, na água do Batismo, Deus nos "salva pela ressurreição de Jesus Cristo, que subiu ao Céu e está à direita de Deus, tendo sob o seu domínio os Anjos, as Dominações e as Potestades".
       Deus faz Aliança com o Seu Povo. É uma Aliança unilateral. Deus compromete-Se com a humanidade e não faz depender a Aliança da resposta que possamos dar-Lhe. Vislumbra-se a Sua paternidade. Ama-nos primeiro. Precede-nos. O Seu amor é gratuito, sem condições. Se acolhermos este amor primeiro tornarmo-nos com-criadores, instrumentos da salvação e de esperança para outros.
       Eis a Palavra de Deus dirigida a Noé: «Estabelecerei a minha aliança convosco, com a vossa descendência e com todos os seres vivos que vos acompanham: as aves, os animais domésticos, os animais selvagens que estão convosco, todos quantos saíram da arca e agora vivem na terra. Estabelecerei convosco a minha aliança: de hoje em diante nenhuma criatura será exterminada pelas águas do dilúvio e nunca mais um dilúvio devastará a terra».
       A água não mais servirá para o extermínio, mas, pelo Batismo, conduzir-nos-á ao Corpo de Cristo, que é a Igreja, a última Arca da Aliança, onde Jesus Se dá até à eternidade, na Palavra, proclamada, na vivência dos Sacramentos, especialmente na Eucaristia, e na prática do bem, construindo a família de Deus, solidários com todos os nossos irmãos, feridos pelo pecado, pelo sofrimento e/ou pela fragilidade. Podemos fazer a diferença, se não nos tornarmos insensíveis e indiferentes uns aos outros.

       4 – As tentações estarão sempre à espreita. As tentações acompanham Jesus até à Cruz. Mais forte que o tentador, a presença de Deus e a vontade de em tudo viver e transparecer os desígnios de Deus.
       Por conseguinte, peçamos ao Senhor que o Seu Espírito nos alerte constantemente e, com o salmista rezemos: «Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos, / ensinai-me as vossas veredas. / Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me, / porque Vós sois Deus, meu Salvador».

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano B): Gen 9, 8-15; Sl 24 (25); 1 Pedro 3, 18-22; Mc 1, 12-15.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Descobrir HILDEGARDA DE BINGEN - Doutora da Igreja

CRISTINA SICCARDI (2013). Descobrir Hildegarda de Bingen. Mística, artista, mulher de ciência. Prior Velho: Paulinas Editora. 232 páginas.
       Doutora da Igreja proclamada pelo Papa Bento XVI, foi o reconhecimento de uma santa cuja a fama granjeou ainda em vida, tendo-se tornado verdadeira profetisa, pregadora, catequista, instruindo reis e imperadores, Papas e Bispos, sacerdotes e religiosas, leigos, comunidades conventuais ou paroquiais.
       Em 10 de maio de 2012, por vontade do papa Bento XVI, Hildegarda foi canonizada; a 7 de outubro de 2012, domingo dedicado à Rainha do Santo Rosário, festividade instituída por São Pio V para comemorar a vitória de Lepanto, em 1571, contra a frota turca, Bento XVI propôs Santa Hildegarda como Doutora da Igreja Universal. Na mesma ocasião, declarou também São João de Ávila como Doutor da Igreja.
       A autora faz referência a algumas das intervenções do Papa Bento XVI e que poderá ler nos seguintes links:
       «Luz do seu povo e do seu tempo», assim a definia João Paulo II, em 1979, por ocasião do 800º aniversário da morte da Mística alemã.
"2. Hildegarda nasceu em 1089 em Bermersheim, perto de Alzey, de pais de linhagem nobre e ricos proprietários de terras. Aos oito anos foi aceite como oblata na abadia beneditina de Disibodenberg, onde em 1115 emitiu a profissão religiosa. Com a morte de Jutta de Sponheim, por volta de 1136, Hildegarda foi chamada a suceder-lhe como magistra. De saúde física frágil, mas vigorosa no espírito, comprometeu-se profundamente por uma renovação adequada da vida religiosa. Fundamento da sua espiritualidade foi a regra beneditina, que indica o equilíbrio espiritual e a moderação ascética como caminhos para a santidade. Depois do aumento numérico das monjas, devido sobretudo à grande consideração pela sua pessoa, por volta de 1150 fundou um mosteiro na colina chamada Rupertsberg, nas proximidades de Bingen, para onde se transferiu juntamente com vinte irmãs de hábito. Em 1165 instituiu outro em Eibingen, na margem oposta do Reno. Foi abadessa de ambos" (Carta Apostólica de Bento XVI).
       A biografia apresenta-nos as diversas etapas da vida de Hildegarda, com as primeiras visões, os seus escritos, a fundação do mosteiro de Rupertsberg, os contactos com bispos, sacerdotes, com o Papa, com o imperador; as suas obras teológicas, mas também sobre as plantas medicinais, a genialidade desta santa, na música, na botânica, na oralidade.
       Viveu numa época de grande turbulência na Igreja, em que os Bispos e o Papado estava por demais vinculados a disputas de poderes e de lugares, tendo mesmo havido nesta ocasião dois Papas em simultâneo. São Bernardo de Claraval terá um papel importante na vida de Hildegarda, nomeadamente intercedendo por ela junto do Papa, para que colocasse por escrito as suas visões.
       Como profetisa, a Sibila do Reno é autorizada e convidada a pregar em público, diante de senhores e de servos. Frontal, denuncia aqueles que se servem da Igreja, os que são dúbios, os que procuram apenas os interesses pessoais. Remete sempre para a Santíssima Trindade. O desiderato é viver sob o auspício de Deus.

É Carnaval, ninguém leva a mal?!


A diversão, as festas, os momentos de lazer, fazem parte do nosso quotidiano. Por um lado permitem-nos descansar da rotina diária – que também é precisa, só assim faz sentido sair da rotina –, e por outro lado aproximam-nos dos outros, se aproveitarmos para conviver, para aprender, para acolher, para potenciar outros talentos.

Os tempos de descontração são bom lenitivo nas dificuldades e nas canseiras.

Seja Carnaval seja outra qualquer festa, ainda que pagã, pode ser aproveitada pelos crentes, pelos cristãos, para evangelizar.

Até para brincar é preciso ser sério.

Há quem não saiba brincar.
Há quem brinque quando não é ocasião para tal.
Há ocasiões propícias para brincar.

Quem brinca não precisa de deixar de ser sério.
Quem é pouco sério, falseia também a brincadeira e a diversão.
Quem aproveita a brincadeira para ser desonesto, perverte a beleza e a saúde da diversão.

Também nas brincadeiras dá para conhecer as pessoas.
Pode acontecer que alguns se escondam por detrás das máscaras – para tal nem precisam do Carnaval para o fazer –, para fazer mal, para prejudicar, para agredir, para ofender pessoas que à luz do dia, e sem máscaras, não o fariam. Há quem se esconda atrás da autoridade, ou da bebida, ou use terceiros para agredir e utilize o boato e o anonimato para difamar. Também isso são máscaras
A coerência de vida também passa por aqui: procurar ser iguais a nós próprios no trabalho, no lazer, nos momentos sérios da vida e nos momentos de descontração.

Quem é maltratado pode não saber quem está por detrás da máscara.
Quem faz mal, ainda que protegido pela máscara, e tiver (alguma) consciência, saberá que fez mal, agiu à falsa fé, usou a hipocrisia e a cobardia para esconder as suas debilidades físicas e/ou afetivas.

Estas palavras não são para terceiros. É para todos. Podemos passar por algum momento de fraqueza em que nos escondamos do olhar dos outros…
Estamos todos a caminho.
Quem puder e/ou quem quiser aproveite o Carnaval para se divertir não à custa dos outros, mas com os outros e para os outros. À custa dos outros, brincávamos quando éramos crianças…
São oportunas a palavras do Apóstolo São Paulo:
«Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus» (1 Cor 10, 31). Quando nos estão a ver ou quando ninguém está por perto, agir com a mesma honestidade!
Texto para a VOZ DE LAMEGO, n.º 4301, ano 85/14, de 17 de fevereiro de 2015

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Domingo VI do Tempo Comum - ano B - 15.fev.2015

       1 – «Se quiseres, podes curar-me». O primeiro passo para a cura é o desejo de ser curado. A doença é, certamente, uma experiência de fragilidade, de impotência e, muitas vezes, de desencanto. Na presença de pessoas doentes, vem ao de cima, muitas vezes, o protesto contra a vida e contra Deus. Nunca é fácil lidar com a doença dos nossos familiares e amigos e sobretudo quando é prolongada e já não existem possibilidades de cura. Havendo esperança de melhoras, de estabilização ou de cura, então é possível aceitar as dores, os incómodos, os tratamentos. Não havendo, tudo se torna mais difícil, para o próprio e para quem está à volta.
       Outra das consequências da doença, crónica ou prolongada, além do desgaste físico e emocional, é o isolamento e a solidão. Os amigos vão desaparecendo progressivamente. Por esquecimento. Por cansaço. Por não quererem ver ou já não terem paciência para escutar os lamentos. Ou simplesmente por medo, porque se reveem em situações semelhantes.
       Uma pessoa (e a sua família) surpreendida por uma doença incurável poderá sentir-se revoltada e transparecer azedume para com aqueles que estão mais próximos. À doença acrescenta-se a solidão. A pessoa doente não faz vida social, deixa de conviver, pela (in)disposição, ou, em alguns casos, porque a própria doença desaconselha os ajuntamentos. E a falta de vontade; não quer ouvir ninguém; não quer ouvir as mesmas perguntas de sempre nem os olhares compadecidos!
       2 – Imaginemos agora uma doença infectocontagiosa!
       A Bíblia preserva o medo de contágio e as prescrições para evitar qualquer tipo de contacto com um leproso, dando à lei um carácter divino. «Quando um homem tiver na sua pele algum tumor, impigem ou mancha esbranquiçada, que possa transformar-se em chaga de lepra, devem levá-lo ao sacerdote Aarão ou a algum dos sacerdotes, seus filhos. O leproso com a doença declarada usará vestuário andrajoso e o cabelo em desalinho, cobrirá o rosto até ao bigode e gritará: ‘Impuro, impuro!’. Todo o tempo que lhe durar a lepra, deve considerar-se impuro e, sendo impuro, deverá morar à parte, fora do acampamento».
       A lei defende os sãos, mas condena ao isolamento e à exclusão os leprosos.
       Há pouco mais de 50 anos, existiam leprosarias e aldeias isoladas e situações em que os animais tinham um melhor tratamento. Lembremos a parábola de Lázaro, contada por Jesus.
       A propósito seria interessante ler a biografia do Padre Damião, o Santo de Molokai, ou algum dos filmes que se fizeram sobre ele; o galardoado filme Ben-Hur (adaptação do livro com o mesmo nome), e que mostra o tratamento dado aos leprosos, votados ao completo esquecimento, ou o romance de Victoria Hislop, “A Ilha” (Spinalónga), recordando como os leprosos eram obrigados a viver em ilhas, isolados da civilização, com acessos difíceis.
       3 – Se um leproso vem ter com Jesus é porque já ouviu falar d'Ele, já alguém lhe anunciou Jesus. Novamente a dinâmica da evangelização e da intercessão. Sorrateiramente, este homem aproxima-se. Confia no que lhe disseram, mas também no que o seu íntimo lhe diz. Arrisca muito, arrisca tudo, sujeita-se a ser escorraçado, apedrejado e morto.
       «Se quiseres, podes curar-me». O leproso faz a sua profissão de fé de forma simples, humilde e direta. São Marcos deixa-nos ver de perto a postura de Jesus. Há oito dias, víamos que Ele pega na mão da sogra de Simão Pedro e levanta-a. Esta semana, a mesma delicadeza, proximidade, sem meias nem peias, simplesmente, compadecido, Jesus estende a mão, toca-lhe e diz: «Quero: fica limpo». E como no momento da criação, também aqui a palavra de Deus tem efeito: aquele homem fica limpo da lepra.
       Quantas pessoas precisam apenas de um toque, um aperto de mão, um abraço, uma afaço, um beijo, um sorriso, para se sentirem humanas e se sentirem salvas! Ao vermos fístulas numa pessoa, a nosso instinto é, quase sempre, de defesa, desviamos o olhar e mantemo-nos com uma distância de segurança. Jesus arrisca tudo, como aquele homem arriscou tudo.
       4 – Aquele que é abençoado por Deus, quem se encontrou com Jesus, transborda em testemunho a alegria e a bênção desse encontro. A sogra de Pedro, uma vez curada, levanta-se e serve-os, a Jesus e aos discípulos. Hoje, este homem que fica curado, e apesar da recomendação de Jesus – «Não digas nada a ninguém, mas vai mostrar-te ao sacerdote e oferece pela tua cura o que Moisés ordenou, para lhes servir de testemunho» – logo apregoa o que lhe aconteceu. E desta forma a fama de Jesus se espalha, com o risco de O procurarem para ver milagres (o espetáculo) e não para serem curados (conversão, fé, mudança de vida).

       5 – Jesus não se deixa amedrontar pela doença e muito menos por uma tradição que exclui pessoas. Para Jesus, doentes ou sãos, santos ou pecadores, homens ou mulheres, adultos ou crianças, todos são filhos de Deus. Prioridades? Os mais frágeis.
       A lepra foi um flagelo até há bem pouco tempo. Atualmente a cura é possível e está acessível. A vida do Pe. Damião de Malokai traz muitas histórias que falam de abandono, exclusão, famílias desfeitas, em que algum dos seus membros é forçado a embarcar para fora da pátria. Leprosarias, sanatórios, ilhas. Condições desumanas, degradantes.
       O proceder de Jesus não é fácil para nós, que nos queremos proteger. Por um lado, a vida merece que nós cuidemos dela. Por outro, na maioria das vezes as pessoas não têm culpa da doença, ou do flagelo. Bem basta a doença quanto mais a solidão. E um dia destes somos nós!
       Jesus atua de forma diferente. Aquele que se dispõe a dar a vida até à última gota de sangue não recua perante as dificuldades. Se Jesus agiu deste modo, os seus discípulos seguirão no Seu encalço, procedendo do mesmo modo. Como nos recorda São Paulo: "Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus. Portai-vos de modo que não deis escândalo nem aos judeus, nem aos gregos, nem à Igreja de Deus. Fazei como eu, que em tudo procuro agradar a toda a gente, não buscando o próprio interesse, mas o de todos, para que possam salvar-se. Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo".

       6 – Se o apóstolo é um exemplo vivo para àquelas comunidades, hoje encontramos outros. Como víamos antes, Damião de Malokai, que vai viver no meio dos leprosos, leva o amor de Jesus Cristo, a fé, a Palavra de Deus e luta para que haja condições, como habitações condignas, escola, hospitais, medicamentos e assistência médica, cuidados de higiene, aliviando o sofrimento, devolvendo a dignidade humana, integrando, quanto possível, as pessoas com lepra, fazendo-as sentir-se úteis uns para os outros. Acabará por morrer de lepra, mas com a certeza de ter cumprido o mandato de Cristo. Foi beatificado por João Paulo II a 3 de junho de 1995 e canonizado por Bento XVI a 11 de outubro de 2009.
       E, como não falar da dedicação de Raoul Follereau a favor dos leprosos? E da Associação por ele criada – Amigos de Raoul Follereau – para sensibilizar e ajudar as vítimas desta doença?
       Em Portugal, o Padre Américo é expressão da entrega e dedicação de Jesus, junto dos mais pobres, de crianças abandonadas, meninos de rua, sem pai nem mãe nem casa. A Obra da Rua, ou do Gaiato, continua a acolher crianças carenciadas, a educá-las e a integrá-las na sociedade.
       Madre Teresa de Calcutá que dedicou grande parte da sua vida a cuidar dos mais pobres dos pobres, na Índia; recolhia as pessoas que encontrava na berma da estrada, abandonadas para morrer, algumas com doenças infeciosas, tratava delas como se estivesse a cuidar de Jesus. Foi beatificada por João Paulo II no dia 19 de outubro de 2003.
       E quantas pessoas encontramos nas nossas comunidades paroquiais que são autênticos anjos junto dos doentes, nas palavras que encontram para consolar, nos silêncios que respeitam a dor, na serenidade com que acariciam?!

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano B): Lev 13, 1-2. 44-46; Sl 31 (32); 1 Cor 10, 31– 11, 1; Mc 1, 40-45.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Domingo V do Tempo Comum - ano B - 8.fev.2015

       1 – Pregar. Anunciar. Evangelizar. «Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, porque foi para isso que Eu vim». Ide e fazei discípulos. Ide e anunciai o Evangelho a toda a criatura. "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para anunciar a boa nova aos pobres. Enviou-me a proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos, a restituir a liberdade aos oprimidos, a proclamar o ano da graça do Senhor" (Lc 4, 16-30). Em diferentes momentos, nos quatro evangelhos, Jesus sublinha a MISSÃO de ANUNCIAR a Boa Nova. O chamamento dos Apóstolos tem como preocupação inicial "treiná-los" para os ENVIAR em missão, para que levam o Evangelho a toda a parte.
       Fazer a vontade do Pai é revelar o Seu Amor a toda a criatura. Quando Se encontra com as multidões, quando sente compaixão por aquelas pessoas, antes ou depois de realizar prodígios, Jesus ENSINA, parte para outras margens, vai a outras povoações. E como o Pai O envia também Ele envia os Seus discípulos (cf. Jo 20, 21).
       Paulo VI, na sobejamente conhecida Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi, diz categoricamente: "Evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar, ou seja, para pregar e ensinar, ser o canal do dom da graça, reconciliar os pecadores com Deus e perpetuar o sacrifício de Cristo na santa missa, que é o memorial da sua morte e gloriosa ressurreição" (n.º 14).
       Expressões e compromissos que os Seus sucessores acentuarão em diversas ocasiões e documentos. Um desafio constante no Pontificado de João Paulo II que compromete a Igreja com a Nova Evangelização. O Papa Francisco, partindo do Documento da Aparecida, e na Sua primeira Exortação Apostólica, sintoniza-nos com a urgência da Alegria do Evangelho, lembrando-nos que somos discípulos missionários. A Igreja encontrar-se-á na medida em que estiver em saída, levando Cristo, indo à procura de todas as ovelhas perdidas.
       2 – O anúncio do Evangelho – Palavra de Deus encarnada, Jesus Cristo – é acompanhado de libertação, de acolhimento, de inclusão, de vida nova. A Boa Notícia que Jesus nos traz – Deus ama-nos como filhos – faz-nos família, sara as nossas feridas, expulsa os demónios que nos atormentam, cura os nossos ódios e desejos de vingança, liberta-nos para nos amarmos uns aos outros, apostando no perdão e no serviço.
       Saindo da Sinagoga, Jesus faz-se acompanhar de Tiago e João e vai a casa de Simão e de André, que estão preocupados pois a sogra de Simão Pedro está doente, com febre. Logo lhe falam dela. Veja-se a dinâmica e a importância da intercessão. A delicadeza de Jesus é notória: toma-a pela mão e levanta-a. Como em outras situações, aqueles que se sentem salvos por Deus predispõem-se de imediato para o serviço. É o que faz a sogra de Pedro: curada, responde com serviço.
       Ao cair da tarde, já depois do sol-posto, isto é, quando se inicia um novo dia, como a vida em gestação no ventre materno até ser dia, trazem a Jesus todos os doentes e possessos, com a cidade inteira reunida para O ver e O ouvir. Jesus cura muitas pessoas e liberta os que são atormentados pelos demónios, para que vivam na claridade do amanhecer que vai surgir.
       São Marcos coloca-nos dentro deste filme, guia-nos ao encontro de Jesus.
       Sem muito tempo para descansar, ainda manhã cedo, Jesus levanta-se e retira-se para orar. A intimidade com o Pai – em diálogo permanente mas com tempos determinadas para melhor absorver o Espírito – é o Seu alimento. Quanto mais perto de Deus, mais perto dos homens. Quanto maior a intimidade com Pai, mais desprendimento para cuidar dos irmãos.
       Quando os discípulos despertam e se apercebem que Jesus já não está no meio deles, saem à procura d'Ele. Para nós: se nos apercebemos que Jesus não está no meio de nós há que O procurar, indo ao Seu encontro.
       3 – «Todos Te procuram» – dizem os discípulos a Jesus. Saliente-se, mais uma vez, a intercessão. Os discípulos levam a Jesus a preocupação das pessoas. Por outro lado, TODOS Te procuram, inclui-nos e reforça a necessidade da evangelização dos cristãos e da Igreja. O "todos" que os discípulos levam a Jesus refere-se por certo às pessoas daquela cidade e que se tinham juntado diante da casa de Pedro. Mas logo Jesus alarga a referência a "TODOS": «Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, a fim de pregar aí também, porque foi para isso que Eu vim».
       Jesus relembra o Seu propósito: IR a outros lugares PREGAR. E foram, por toda a Galileia. A Galileia é uma terra de passagem, uma via de comunicação, que gera encontro com pessoas de diversas nacionalidades, comerciantes e mendigos, judeus e gentios, sublinhando a universalidade da evangelização.
       São Paulo, na segunda leitura hoje proclamada, chão da Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, deixa claro qual a sua missão como Apóstolo, vivendo-a não como opção, mas como vocação, compromisso, identidade cristã:
«Anunciar o Evangelho não é para mim um título de glória, é uma obrigação que me foi imposta. Ai de mim se não anunciar o Evangelho! Desempenho apenas um cargo que me está confiado... Livre como sou em relação a todos, de todos me fiz escravo, para ganhar o maior número possível. Com os fracos tornei-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, a fim de ganhar alguns a todo o custo. E tudo faço por causa do Evangelho, para me tornar participante dos seus bens».
       A sua e a nossa missão primeira: EVANGELIZAR. Em todo o tempo, em todas as ocasiões, oportuna e inoportunamente, como diz a Timóteo: "Proclama a palavra, insiste em tempo propício ou fora dele, convence, repreende, exorta com toda a compreensão e competência" (2 Tim 4,2). A pregação provoca movimento, ação, saída, ir ao encontro, procurar o outro e entrar em comunhão com ele. Por Cristo, "fiz-me tudo para todos".

       4 – Em Job, o sofredor inocente, encontramo-nos com a nossa dor. Há tantas coisas que não compreendemos, desencontros, dúvidas, interrogações, há tantas noites mal dormidas, e tantos dias sem sol.
       Lido neste desabafo, Job merece-nos compaixão: «Como o escravo que suspira pela sombra e o trabalhador que espera pelo seu salário, assim eu recebi em herança meses de desilusão e couberam-me em sorte noites de amargura. Se me deito, digo: ‘Quando é que me levanto?’. Se me levanto: ‘Quando chegará a noite?’; e agito-me angustiado até ao crepúsculo. Os meus dias passam mais velozes que uma lançadeira de tear e desvanecem-se sem esperança. – Recordai-Vos que a minha vida não passa de um sopro».
       Bateu no fundo. Job, homem justo e piedoso, aos olhos dos homens e de Deus, come o pão que o diabo amassou. Mas no final sobrevém a justiça de Deus, a confiança n'Aquele que tudo pode e que não abandona aqueles que ama. O diálogo de Job com Deus é um grito lancinante que clama por justiça ou pelo menos pela resposta de Deus. Com ele aprendamos a levar a Deus tudo o que nos inquieta, o que nos faz bem e aquilo que nos desanima. Jesus assume o sofrimento de Job, carrega a Cruz para nos mostrar o abraço de Deus, que também no sofrimento nos atrai para Si. O Evangelho de Jesus liberta, traz-nos amor, presença, companhia, vida nova, afasta os demónios que nos dividem, expulsa de nós os instintos que criam divisão.
       Deixemos que Jesus nos tome pela mão, como fez à sogra de Pedro. E como ela, levantemo-nos para servir os irmãos, no anúncio do Evangelho e na prática da caridade.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano B): Job 7, 1-4. 6-7; Sl 146 (147); 1 Cor 9, 16-19. 22-23; Mc 1, 29-39.