1 – «Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e aos entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque isso foi do teu agrado» (Mt 11, 25-26; cf. Lc 10, 21). Felizes os pobres em espírito, os mansos, os humildes de coração, os pacificadores, os misericordiosos, porque terão um coração capaz de ver a Deus, de descobrir nos outros uma bênção, e, abertos à esperança no futuro com Deus, disponíveis para transformar o mundo em que vivem, a começar por eles mesmos (cf. Mt 5, 1-12).
Quando olhamos para o nosso tempo facilmente concluímos, com pesar na maioria das vezes, que o mundo é dos espertos, dos poderosos, daqueles que estão sempre a congeminar ardilosamente como enganar o próximo, subtraindo-se à justiça dos homens e ao compromisso social de contribuir com impostos para o bem comum, fugindo aqui, contornando a lei acolá, arranjando estratégias cada vez mais subtis. Lamentamos que ande meio mundo a enganar outro meio, e se calhar este meio mundo enganador já ultrapassa o meio mundo enganado. E nós de que lado estamos? Já ouvi pessoas a lamentar o facto de não terem mentido, omitindo e/ou enganando, porque estariam em melhores condições de vida ou teriam obtido uma benesse que dessa forma não obtiveram. Sempre lhes digo que não há como uma consciência tranquila!
O Natal, com as diversas celebrações litúrgicas, incluindo a festa da Sagrada Família e a solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, aponta-nos numa direção que vai além dos nossos interesses pessoais, melhor, fazem com que os nossos interesses pessoais se vão identificando com o bem do próximo, reconhecendo nos mais frágeis a presença de Deus, assimilando o exemplo de Jesus.
As figuras do Natal sublinham (não a ostentação e o poder, mas) a pobreza, a humildade, a alegria, a capacidade de acolher o outro. Maria e José, família simples, desconhecida, e que se converte em lugar de revelação e mistério de Deus. Simeão e a profetisa Ana, dois velhos (ou idosos como muitos preferem), de quem já nada se espera, mas que, inspirados por Deus, pelo Seu Espírito, vivem na esperança da Salvação. Os seus corações podem não esperar nada do mundo, mas esperam de Deus, estão atentos, rezam, louvam, reconhecem Deus n'Aquele Menino, e anunciam-n'O a quem quer ouvir. E recuando um pouco mais poderíamos falar de um outro casal, Zacarias e Isabel, desenganados da vida, mas que se deixam surpreender por Deus.
2 – Não existe uma condição prévia para Deus nos amar, nos visitar e querer habitar em nós. Ele precede-nos nos Seus desígnios de amor. Ama-nos primeiro. E nunca a partir da nossa bondade ou maldade. Simplesmente nos ama como filhos. Se existe algum precedente, da nossa parte, é precisamente o da humildade, da pobreza, que não aquela que reduz as pessoas a números dispensáveis ou que as leva a mendigar por pão e por atenção, mas a pobreza como opção de vida, como abertura ao Transcendente, como disponibilidade para amar, para transformar o mundo, para nos deixarmos cativar por Ele e por tudo o que à nossa volta é fruto do amor de Deus, a natureza, os animais e sobretudo os outros.
A opção preferencial pelos mais pobres não é um chavão da Teologia da Libertação nem um desiderato da América Latina, é, antes, um compromisso de todos os cristãos que querem seguir Jesus Cristo, numa dinâmica universal de inclusão. A Salvação há de chegar a todos, a começar pelos excluídos, pelos famintos, pelas pessoas e famílias a viver em situações degradantes, desempregados, toxicodependentes, meninos da rua, pessoas abandonadas, mulheres maltratadas, esquecidas, violadas, crianças sem teto e sem proteção familiar ou social, exploradas, destruídas. Quando o não fizermos por nós, porque nos faz bem, ou pelos outros, o bem que lhe fazemos, façamo-lo por Jesus Cristo, deixando que em nós venha ao de cima a nossa vocação primordial de sermos imagem e semelhança de Deus. Tudo o que fizermos ao mais pequeno dos irmãos é ao próprio Cristo que o fazemos (cf. Mt 25, 31-46).
O Papa Francisco, na Sua Mensagem para o Dia Mundial da Paz parte desta premissa: "Já não escravos, mas irmãos" (cf. Flm 15-16). Em Jesus Cristo, Deus revela-Se como Pai. Se Ele é Pai, nós somos irmãos.
Aos Gálatas, que hoje escutámos, São Paulo prossegue: «Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sujeitos à Lei e nos tornar seus filhos adotivos. E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: 'Abá! Pai!'. Assim, já não és escravo, mas filho. E, se és filho, também és herdeiro, por graça de Deus». A verdadeira paz conquista-se pelo amor, que pressupõe a justiça, a igualdade, a fraternidade, no respeito pelas diferenças como contributo positivo para a única família de Deus.
3 – No início de um novo ano, a Igreja propõe-nos – como Igreja nos propomos – olhar para Maria e consagrarmo-nos com Ela a Deus, imitando-A no acolher da vontade de Deus, de tal forma humildes e pobres que Deus caiba em nós, que Deus possa nascer em nós e apressadamente, como Ela em direção à montanha, visitando a Sua prima Isabel, possamos levar a todos a Alegria que nos habita: Deus em nós. Sejamos rosto e presença e vida de Cristo para este tempo. E dessa forma a paz estará mais próxima.
Despojado de tudo, mas com muito calor, Jesus tem por companhia Maria e José, e os animais. Está quentinho numa manjedoura. Aconchegado. Ah, como é belo este quadro do presépio. Ah, como é fácil de ver que não são as muitas comodidades que possuímos que nos fazem vibrar de alegria, que nos fazem sentir úteis e amados. Aquele Menino tem poucas coisas, está despido, envolto em panos, mas acariciado pelo essencial, pelos seus pais. D'Ele emana uma LUZ, um brilho, uma áurea, que nos leva à contemplação, a fazer como os Pastores, reconhecendo n'Ele o próprio Deus e com alegria desbobinarmos tudo o que Deus nos revelou pelos antigos e que nos revela hoje pela palavra, pelos Sacramentos, por cada gesto de amizade e de ternura que nos fazem ou que fazemos aos outros.
Aqueles pastores engrossam o número dos que não contam. São escravos, ainda não irmãos. Trabalham em situações muito precárias, independentemente do sol ou da chuva. Ainda não são irmãos, mas escravos. Mas é a eles que Deus Se revela, reconhecendo-os já como filhos amados. «Os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura. Quando O viram, começaram a contar o que lhes tinham anunciado sobre aquele Menino. E todos os que ouviam admiravam-se do que os pastores diziam... Os pastores regressaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, como lhes tinha sido anunciado».
O verdadeiro encontro com Jesus provoca alegria, enche-nos de paz, para logo nos enviar a anunciar esta Boa Notícia a todas as nações. A alegria extravasa, explode, comunica-se. Ninguém faz festa sozinho. Se a solidão, o sofrimento, a desânimo, precisam de partilha e compreensão, a alegria precisa igualmente de ser acolhida, partilhada, celebrada.
4 – A condição prévia para reconhecer e acolher Deus é, definitivamente, esta pobreza que nos faz olhar com o coração e perscrutar os sinais que vêm de Deus. Os pastores estão despertos e fazem-nos estar despertos para partir de imediato à procura do Messias, à procura do Deus que Se esconde n'Aquela criança e em tantos pequeninos do nosso tempo. E por contágio nos fará espalhar tamanha alegria.
Pobreza de Maria e de José que acolhem Aquele que vem de Deus – «Maria conservava todos estes acontecimentos, meditando-os em seu coração» –, e no-l'O apresentam para que O possamos encontrar e O possamos adorar, como os Pastores e como os Magos vindos de longe.
E cruzando o nosso com olhar daquele Menino-Deus, sejamos portadores da Sua bênção para todos. É uma interpelação presente ao longo da História da Salvação, como se pode ver na primeira leitura: «O Senhor te abençoe e te proteja. O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável. O Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz». Assim fala Deus a Moisés garantindo-lhe a ele e a todo o povo: «Invocarão o meu nome sobre os filhos de Israel e Eu os abençoarei».
Que outra coisa poderemos desejar neste novo ano senão a Paz e o Bem que nos chegam de Deus e que não se consomem na nossa fragilidade? Encontrando Jesus no nosso coração, meditando nos acontecimentos destes dias, com Maria, façamos com que através de nós se engrandeça no mundo a presença de Deus. Confiemo-nos por inteiro Àquele que nos pode salvar, até da morte. «Deus Se compadeça de nós e nos dê a sua bênção, resplandeça sobre nós a luz do seu rosto. Na terra se conhecerão os seus caminhos e entre os povos a sua salvação».
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia: Num 6, 22-27; Sl 66; Gal 4, 4-7; Lc 2, 16-21.