1 – Só a humildade nos alcança a misericórdia e a verdadeira sabedoria, que para nós cristãos, vem e está em Deus e nos é dada em Jesus Cristo, a Palavra, a Sabedoria por excelência. A soberba e a prepotência encerram-nos dentro de nós, como se estivéssemos em um castelo sem portas nem janelas, sem luz, sem dia, sem possibilidades de sair para apanhar ar fresco, ou nos deixarmos inundar pela claridade do sol. Se nos colocamos na atitude de dispensarmos tudo e todos, considerando-nos a nós mesmos como referência, perfeitos e acabados, melhores que todos os outros, como se fôramos deuses, ficaremos para sempre na ignorância que gera arrogância. Os outros são um inferno (Sartre), um estorvo, uma insignificância, uma nulidade, e nós a medida de todas as coisas.
Joseph Ratzinger (Bento XVI), na sua Introdução ao Cristianismo (1968), contrapunha esta ideia: “o inferno é a solidão experimentada por aquele que não quer aceitar nada, que se recusa a ser mendigo, para se enclausurar em si mesmo”.
A palavra de Deus aguça o nosso espírito, desperta a nossa mente e o nosso coração. A plenitude da Palavra é Jesus Cristo, Rosto e Presença do Deus eterno. É Palavra dada, que Se faz carne, Corpo, Pessoa, entre nós, um de nós, Deus connosco. É AMOR que nos guia para o Pai, assumindo-nos como irmãos, entregando-nos a Sua vida, dando-nos a Vida eterna.
Sendo de condição divina, não Se arroga esse direito, identifica-Se connosco. Abaixa-Se para nos elevar. Faz-Se pobreza, despojamento, profundamente humano, para nos engrandecer com a Sua riqueza. É em atitude de HUMILDADE que assume realizar a vontade do Pai. Ele fala e age e vive não a partir de Si mesmo mas do Pai, e por nós homens e para nossa salvação. “O Filho, por si mesmo, não pode fazer nada… Eu não posso fazer nada” (Jo 5, 19.30).
Como discípulos, não se espera outra opção que não seja o caminho de conversão, de abertura, de mudança de vida, de disponibilidade e disposição para permanentemente configurarmos a nossa vida com a Sua vida de inteira doação. Aprendizes. Alunos. Prontos para acolher o bem que dos outros nos vem e tudo o que de bom e belo nos chega do Outro.
2 – Diante do Senhor não nos adianta ser o que não somos. Ele conhece-nos intimamente. Não precisamos de justificações, pois só a Sua misericórdia justifica a nossa vida. A oração abre-nos o coração para a escuta de Deus, para o acolhimento da sua vontade, predispondo-nos a alterar os aspetos da vida que ainda nos distanciam d’Ele e dos outros.
Deus não quer que sejamos outros que não nós mesmos, com a nossa fragilidade e o nosso pecado. Não para nos humilhar. Não para nos espezinhar. Não para nos prender na miséria. Precisamente o contrário. Em Cristo, Deus assume a nossa debilidade para nos elevar, para nos envolver a viver mais humanamente. Enquanto verdadeiramente humano, Jesus introduz-nos no verdadeiramente divino.
Conta Jesus mais uma parábola. Ao templo, à Igreja, acorrem dois homens. Um fariseu, um homem bem visto, considerado social e politicamente. Já se sente justificado. “Eu sou bom, Senhor, sou melhor que todos os outros. Cumpro todas as minhas obrigações e ainda me sobra tempo. Os outros são maus, bêbados, prevaricadores. Ainda bem que não sou um deles”.
O outro, um cobrador de impostos, publicano, inimigo da gente boa, excluído do jet-set social, religioso, político. Abre o seu coração para Deus. Não precisa de fingir. Mantém-se em atitude suplicante, humildemente à distância, sabendo da sua pequenez e do seu pecado, mas aberto à confiança num Deus compassivo e bom: «Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador». O reconhecimento do nosso pecado coloca-nos na esteira da conversão. Se já nos consideramos o máximo, porquê abrirmo-nos à graça de Deus?
Jesus apresenta este último como o modelo do discípulo. Aqueles que se exaltam serão humilhados. Aqueles que se humilham serão exaltados. O fariseu não se quer misturar. Está muito à frente. Curiosamente, Jesus vem misturar-se com os pecadores, vem para ser um de nós, não à distância do Céu, mas a partir da terra dos homens, deste chão que nos irmana.
Olhemos para Maria, a cheia de graça. Não é Ela que assim se apresenta. É Deus que A reconhece. A sua postura é a da pobreza: «O Senhor… pôs os olhos na humildade da sua serva». «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38.48).
3 – Nos regimes comunistas, sob a égide da luta de classes, procurava-se substituir os patrões, colocando no seu lugar os trabalhadores. Para elevar uns, destronavam-se os outros. Teoricamente a luta de classes visava a eliminação das mesmas. Na prática foi um desastre completo. Faltava-lhe a CARNE, o Amor, Alguém que superasse todo o egoísmo humano.
O cristianismo, defendendo a participação de todos, a igualdade de oportunidades, no reconhecimento da fraternidade, na opção preferencial pelos mais pobres, está a quilómetros de distância do socialismo marxista, pois não se trata de substituir uns pelos outros, mas encontrar um justo equilíbrio na distribuição de bens, assente na partilha solidária, promovendo os mais frágeis para que sejam incluídos na convivência salutar da sociedade, da política, da religião. Isto é, não é preciso anular uns para promover outros, embora se exija uma maior responsabilização, maior equidade, e uma repartição mais efetiva de bens materiais e culturais, procurando que todos estejam bem, vivam dignamente, como irmãos, como família.
Na verdade, “o Senhor é um juiz que não faz aceção de pessoas. Não favorece ninguém em prejuízo do pobre… Atende a prece do oprimido. Não despreza a súplica do órfão nem os gemidos da viúva… a oração do humilde atravessa as nuvens e não descansa enquanto não chega ao seu destino”. Confiamos como o salmista: “O Senhor está perto dos que têm o coração atribulado… os justos clamaram e o Senhor os ouviu…”
Deus a todos atende, mas são os doentes que precisam de médico, não os sãos. Daí que Deus, e nós deveremos seguir a mesma opção, se debruce sobretudo em direção aos mais pobres, às pessoas mais fragilizadas, com menos meios, a viver em défice de dignidade.
4 – A lógica é a da sempre. Na oração e na vida. Na fé e em tudo o que nos liga aos outros, diante de Deus. Humildade. Abertura. Serviço. Amor. Partilha de bens e de dons. Comunhão de irmãos em Cristo Jesus. Ele estará connosco. Até ao fim dos tempos. Sempre que estivermos ao serviço dos irmãos, sempre que em Seu nome nos reunirmos e fizermos o bem.
O apóstolo São Paulo, dirigindo-se de novo a Timóteo, apresenta-se de consciência tranquila. Não se desviou de Jesus e do Seu caminho de serviço, no anúncio do Evangelho.
“Quanto a mim, já estou pronto para oferecer-me como sacrifício… Combati o bom combate, terminei a corrida, permaneci fiel. A partir de agora, já me aguarda a merecida coroa, que me entregará, naquele dia, o Senhor, justo juiz, e não somente a mim, mas a todos os que anseiam pela sua vinda… O Senhor esteve comigo e deu-me forças, a fim de que, por meu intermédio, o anúncio fosse plenamente proclamado e todos os gentios o escutassem. Assim fui arrebatado da boca do leão. O Senhor me livrará de todo o mal e me levará a salvo para o seu Reino celeste. A Ele, a glória, pelos séculos dos séculos. Ámen!”
Também a oração de Paulo é confiante. Deus é um Deus que escuta a nossa prece e vem em auxílio da nossa fraqueza.
Textos para a Eucaristia (ano C): Sir 35, 15b-17.20-22a; Sl 33 (34); 2 Tim 4, 6-8.16-18; Lc 18, 9-14