(foto: Kymagem)
«Eis que faço novas todas as coisas» (Apocalipse 21,5), diz Deus. De
tal modo novas, diz Deus, que ninguém pode dizer: «Já o sabia» (Isaías
48,7).
Eis então Jesus a entrar com os seus discípulos em Cafarnaum, na
sinagoga deles, e ensinava e ordenava tudo de forma nova. Tão nova que
inutilizava todas as comparações e catalogações. Não era membro de
nenhuma confraria, academia, partido, ordem profissional ou
instituição, que à partida lhe conferisse algum crédito, alguma
autoridade. Nenhum crédito, nenhum currículo, nenhum diploma, o
precedia. A sua autoridade começava ali, no próprio acto de dizer ou
de fazer. E as pessoas de Cafarnaum foram tomadas de tanto espanto,
que tiveram de constatar logo ali que saía dos seus lábios e das suas
mãos um mundo novo, belo e bom, ordenado segundo as pautas da Criação.
Um vendaval manso de graça e de bondade encheu Cafarnaum, e
transvazava como um perfume novo de amor e de louvor por toda a região
da Galileia e da missão. Saltava à vista que Cafarnaum não podia
conter ou reter tamanha vaga de perfume e lume novo.
As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que diziam os escribas, e como
diziam os escribas. Não eram senão repetidores, talvez mesmo apenas
repetentes de pesadas e cansadas doutrinas que se arrastavam na
torrente de uma velha e gasta tradição. Os escribas diziam, diziam,
diziam, recitavam o vazio (Salmo 2,1), compraziam-se na sua própria
boca, nas suas próprias palavras (Salmo 49,14), e nada, nada, nada
acontecia: nenhum calafrio na alma, nenhum rio nascia no deserto,
ninguém estremecia ou renascia. Mas Jesus começou a falar, e as
pessoas de Cafarnaum sentem um frémito, um estremecimento novo (Isaías
66,2 e 5), assalta-as uma comovida emoção, uma lágrima de alegria lhes
acaricia o coração. Era como se acabassem de escutar aquela palavra
única que há tanto tempo se procura, palavra criadora que nos vai
direitinha ao coração, a ternura de quem leva uma criança pela mão!
As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que eram, e como se faziam os
exorcismos. Estavam muito em voga naquele tempo. Eram longos,
estranhos, complicados, cheios de fórmulas mágicas e ritos esotéricos.
Mas Jesus diz uma palavra criadora: «Cala-te e sai desse homem», e
tudo fica de imediato resolvido!
Abre-se um debate. O primeiro de muitos que o Evangelho de Marcos vai
abrir. «O que é isto?», perguntam as pessoas de Cafarnaum, que nunca
tinham visto tanto e tão novo e tão prodigioso ensinamento.
Mas é apenas o começo da jornada deste maravilhoso ANUNCIADOR do
Evangelho de Deus (Marcos 1,14). Logo a abrir o seu Evangelho, Marcos
ensina-nos que a jornada iniciada naquele primeiro sábado em Cafarnaum
salta os clichés habituais, e vai de madrugada a madrugada, de modo a
deixar já bem à vista aquela outra sempre primeira madrugada da
Ressurreição! Jesus começa de manhã na sinagoga; caminha depois 30
metros para sul, e entra, pelo meio-dia, na casa de Pedro e levanta da
febre para o serviço do Evangelho a sogra de Pedro; à tardinha, já sol-
posto, primeiro dia da semana, toda a cidade de Cafarnaum está reunida
diante da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele
os seus doentes; de madrugada, muito cedo, Jesus sai sozinho para
rezar, e os discípulos correm a procurá-lo para o trazer de volta a
Cafarnaum, pois, dizem eles, todas as pessoas o querem ver e ter.
Ninguém o quer perder.
Desconcertante reviravolta. Jesus diz aos seus discípulos atónitos:
«VAMOS a outros lugares, às aldeias vizinhas, para que TAMBÉM ali
ANUNCIE (kêrýssô) o Evangelho» (Marcos 1,38). Com este grávido dizer,
Jesus deixa claro que ANUNCIAR o Evangelho enche por completo o seu
programa e o seu caminho. Com aquele «vamos» [«vamos a outros
lugares»], Jesus desinstala e agrafa a si os seus discípulos para este
trabalho de ANÚNCIO do Evangelho seja a quem for, seja onde for. Com
aquele «também» inclusivo [«para que também ali anuncie o Evangelho»],
Jesus classifica como ANÚNCIO do Evangelho todos os afazeres da
inteira jornada de Cafarnaum: ensinar, libertar, acolher, curar,
recriar: é esta a toada do ANÚNCIO do Evangelho.
ANUNCIAR (kêrýssô) é então o afazer de Jesus. E qual é a primeira nota
que soa quando Jesus se diz com o verbo
ANUNCIAR? É, sem dúvida, a sua
completa vinculação ao Pai, de quem é o arauto, o mensageiro, o
ANUNCIADOR. Pura transparência do Pai, de quem diz e faz o que ouviu
dizer (João 7,16-17; 8,26.38.40; 14,24; 17,8) e viu fazer (João 5,19;
17,4). Recebendo todo o amor fontal do Pai, bebendo da torrente
cristalina do amor fontal do Pai (Salmo 110,7; cf. 1 Reis 17,4),
Jesus, o Filho, é pura transparência do Pai, e pode, com toda a
verdade dizer a Filipe: Filipe, «quem me vê, vê o Pai» (João 14,9). É
mesmo aqui que reside a sua verdadeira AUTORIDADE e a verdadeira
NOVIDADE do seu MODO novo de dizer e de fazer, que se chama ANUNCIAR.
A primeira nota de todo o ANUNCIADOR ou Arauto ou Mensageiro não
assenta na capacidade deste, mas na sua fidelidade Àquele que lhe
confia a mensagem que deve anunciar. É em Seu nome que diz o que diz,
que diz como diz. No Enviado é o Rosto do Enviante que se deve ver em
contra-luz ou filigrana pura. No Enviado ou Mensageiro ou Anunciador é
verdadeiramente Deus que visita o seu povo.
Pertinho de Deus, cheio de Deus, Jesus leva Deus aos seus irmãos. É
esta a Autoridade de Jesus. Ele é o profeta «como Moisés», mais do que
Moisés, com a boca repleta das palavras de Deus (Deuteronómio 18,18).
E não só a boca, mas também as mãos e o coração. Bem diferente dos
escribas e dos falsos profetas e do povo rebelde no deserto. Estes
dispensam a Palavra de Deus. O que querem ter na boca é pão e carne. O
que recolheu menos, no deserto, diz-nos o extraordinário relato do
Livro dos Números 11,31-35, recolheu 4500 kg de carne de codorniz. E
começaram a meter a carne à boca com tamanha avidez, que morreram de
náusea. Foram encontrados mortos, ainda com a carne entre os dentes,
por mastigar (Números 11,33). Vê-se que é urgente libertar o coração,
as mãos, a boca. Vive-se da Palavra. Morre-se de náusea.
(foto: Kymagem)
Caríssimos irmãos mais pequeninos, jovens amigos, caríssimos pais,
caríssimos idosos e doentes, caríssimos catequistas, acólitos,
leitores, cooperadores na missão da evangelização e da caridade,
ilustres autoridades, caríssimos seminaristas, caríssimos religiosos e
religiosas, caríssimos diáconos e sacerdotes, Senhores Bispos, Senhor
D. Jacinto, Senhor Núncio Apostólico, Senhor Cardeal Patriarca, e
todos vós que comigo pisais hoje este chão de generoso vinho e de
amendoeiras em flor.
(foto: Kymagem)
Numa página sublime do Livro dos Números (17,17-26), Deus ordena a
Moisés que recolha as varas de comando dos chefes das doze tribos de
Israel, para, de entre eles, escolher um que exerça o sacerdócio em
Israel. Em cada vara foi escrito o nome da respectiva tribo. Por ordem
de Deus, o nome de Levi foi substituído pelo de Aarão. As doze varas
foram colocadas, ao entardecer, na presença de Deus, na Tenda do
Encontro. Na manhã seguinte, todos puderam ver que da vara de Aarão
tinham desabrochado folhas verdes, flores em botão, flores abertas e
frutos maduros (Números 17,23). Dos frutos é dito o nome: amêndoas!
Vara de amendoeira em flor e fruto, que, por ordem de Deus, ficará
para sempre na sua presença, diante do Propiciatório (cf. Hebreus
9,4), entre Deus e o povo, para impedir que o pecado do povo chegue a
Deus, e para facilitar que o perdão de Deus chegue ao povo. Já ninguém
estranhará agora que o candelabro (menôrah) que, noite e dia,/ ardia/
na presença de Deus, estivesse ornamentado com flores de amendoeira
(Êxodo 25,31-35; 37,20-22). E também já ninguém estranhará que a
tradição judaica tardia refira que a vara do Messias havia de ser de
madeira… de amendoeira.
Aí estão as coordenadas exactas do lugar do sacerdote e do bispo:
entre Deus e o povo. Mais concretamente: pertinho de Deus, mas de um
Deus que faz carícias ao seu povo, um Deus que ama e que perdoa;
pertinho do povo, o suficiente para lhe entregar esta carícia de Deus.
Queridos filhos e irmãos, pais e mães que Deus me deu nesta dorida e
querida Diocese de Lamego. Quero muito ver o vosso rosto. Já sabeis
que trago notícias de Deus. E que conto muito com cada um de vós, para
levar a todos os lugares e a todas as pessoas desta bela Diocese este
vendaval de graça e de bondade que um dia Jesus desencadeou em
Cafarnaum.
Seja Louvado Nosso Senhor Jesus Cristo!
+
António Couto, Bispo de Lamego
(A homilia, deste dia, encontra-se também no blogue de D. António:
Mesa de Palavras.