1 – A palavra de Deus apresenta-nos, na primeira leitura e no Evangelho, como protagonistas, duas viúvas, trazidas para a luz, para a história, pelos enviados de Deus.
Crianças, mulheres, coxos, surdos, mudos, leprosos, publicanos, cegos, são não-gente, não têm lugar à mesa, não entram no templo, não contam como população ativa e participativa, o seu valor social e cultural é insignificante, são olhados com desdém, com indiferença, com desprezo. Deverão manter-se escondidos, nas trevas, silenciosos, sem que se note a sua presença, sem voz, sem palavra, sem caminho, sem dignidade, sem direitos (apenas deveres e obrigações).
As viúvas, mulheres sem marido, sem nome, sem estatuto social, são um estorvo, nas ruas, ou nas entradas do templo, junto à Sinagoga, ou à distância a ver o tempo passar, a pedir esmola ou à espera que alguém use de compaixão e lhes dê um resto de nada, para aguentar mais um pouco, numa existência triste, apagada, gasta em solidão, lágrimas e cansaço de existir, sentindo-se lixo dispensável, sem esperar nada do futuro, vivem o agora nos mínimos.
Como acontece em nossos dias, também naqueles lugares, as viúvas, os pedintes, fazem parte da paisagem, estão ali, são dali, sempre se encontram nos mesmos sítios. Não têm rosto próprio. O olhar ora é vazio, ora demasiado escuro, perdido. Não têm vida própria. Fazem número, mas não entram nas contagens oficiais. Já nem incomodam, porque já são da cor das pedras e dos cantos onde estendem a mão, ou já nem estendem, tornaram-se invisíveis. Só elas se veem, só elas sentem. Já poucos as ouvem pedir, as suas vozes já não reproduzem qualquer som, ou os sons são lengalenga que se repete e de tanto repetir já não desperta consciências.
Ontem como hoje, felizes das viúvas que vivem no seio de uma família mais alargada, ou até mesmo em povoações mais pequenas e habitualmente mais solidárias, mais atentas. Para o melhor e para o pior, nos meios mais pequenos todos se conhecem.
2 – A Bíblia fala das viúvas e dos órfãos como um dos grupos sociais mais vulneráveis e desprotegidos. São pessoas dependentes das circunstâncias, da ajuda dos outros, da providência divina.
Uma das leis previa que se o marido morresse sem descendência (tratando-se do filho mais velho, aquele que deveria prolongar o nome da família e a herança), o irmão ou os irmãos deveriam casar-se com a viúva. Dessa forma assegurar-se-ia o nome da família e proteger-se-ia aquela mulher que (até aí) fazia parte da família.
O evangelho narra-nos a ressurreição do filho da viúva de Naim (cf. Lc 7, 11-17). Jesus compadece-se daquela mulher, viúva e mãe de um filho só. Para lá do sofrimento horripilante de uma mãe que perde um filho, acrescia o facto de o filho ser a sua esperança de proteção, de sustento, de amparo. Viúva e sem filhos, ficaria só e sem futuro.
Nos Atos dos Apóstolos (6,1-7) justifica-se o chamamento de 7 homens honrados para se tornarem diáconos e servirem as viúvas e órfãos, diariamente. Aos Apóstolos estava reservado o anúncio da Palavra de Deus e a oração, e o serviço às pessoas mais vulneráveis. Com o crescimento da comunidade, e com a adesão dos helenistas, os apóstolos não tinham tempo para fazer bem as duas coisas. Daí a necessidade de dedicar pessoas para servirem exclusivamente as viúvas e os órfãos. Aqueles que são considerados não-gente, para Jesus Cristo são os primeiros a merecerem cuidado, atenção e ajuda. São filhos prediletos.
3 – Num tempo de grande carestia e de fortes convulsões sociais e políticas, em Israel, o profeta vê-se obrigado a sair da cidade, vai ao encontro de uma viúva. Elias não bate à porta de uma família abastada, mas de uma viúva. Tem casa, tem um filho, mas está ao abandono, está nas lonas, tem um pouco de azeite e um pouco de farinha. Com a desistência, chegará o cansaço, o desfalecimento, a morte. Já nada espera:
«Tão certo como estar vivo o Senhor, teu Deus, eu não tenho pão cozido, mas somente um punhado de farinha na panela e um pouco de azeite na almotolia. Vim apanhar dois cavacos de lenha, a fim de preparar esse resto para mim e meu filho. Depois comeremos e esperaremos a morte».
No entanto, Elias desperta a sua esperança:
«Não temas; volta e faz como disseste. Mas primeiro coze um pãozinho e traz-mo aqui. Depois prepararás o resto para ti e teu filho. Porque assim fala o Senhor, Deus de Israel: ‘Não se esgotará a panela da farinha, nem se esvaziará a almotolia do azeite, até ao dia em que o Senhor mandar chuva sobre a face da terra’».
O profeta acorda a presença de Deus nesta mulher. Ninguém como ela para perceber a indigência, a necessidade, a abertura a Deus. A morte trazer-lhes-á a paz junto de Deus.
Só uma pessoa sofrível entende verdadeiramente outra que sofre e pede ajuda. Realista, sabe que não lhe resta muito, nem ao seu filho, mas atende com generosidade e confiança ao pedido do profeta.
“A mulher foi e fez como Elias lhe mandara; e comeram ele, ela e seu filho. Desde aquele dia, nem a panela da farinha se esgotou, nem se esvaziou a almotolia do azeite, como o Senhor prometera pela boca de Elias”. E Deus não os deixa ficar mal.
4 – Aqueles que a sociedade coloca de parte são filhos de Deus de pleno direito. Jesus não segue os estereótipos sociais ou religiosos. Vem para todos. Não fica em palácios ou no templo. Vai ao encontro de pessoas de carne e osso. Aldeias e cidades. Pequenas e grandes povoações. Percorre os caminhos e as margens. Passa de uma à outra margem. Vem para a nossa margem. Passa junto de nós e traz-nos o Seu Caminho, a Sua vida. Abranda o passo para que possamos segui-l'O.
Detém-se junto daqueles que estão fora de jogo, fora da vida social, cultural, religiosa, que dependem das sobras dos outros, da ganância e da generosidade alheia. Não fora a ganância e talvez não precisassem de pedinchar. Não fora a generosidade e não sobreviriam.
No templo, Jesus fixa-se nas pessoas que deitam esmolas no tesouro e que se destinavam às obras do templo, à sustentação dos sacerdotes, escribas, levitas, líderes religiosos, e para atender aos necessitados, às viúvas e órfãos.
“Muitos ricos deitavam quantias avultadas. Veio uma pobre viúva e deitou duas pequenas moedas, isto é, um quadrante. Jesus chamou os discípulos e disse-lhes: «Em verdade vos digo: Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros. Eles deitaram do que lhes sobrava, mas ela, na sua pobreza, ofereceu tudo o que tinha, tudo o que possuía para viver».
Nas sociedades do nosso tempo, Jesus seria sempre um mau Ministro das Finanças. Ele não se impressiona com as quantias avultados que os poderosos colocam no tesouro do templo, mas com uma viúva que deita duas moedas de bronze. Uma insignificância. Aquelas moedas não fazem diferença. Não enriquecem o tesouro, não fazem história, não alteram nada. No entanto, para Jesus, aquela viúva deitou mais que todos os outros.
É uma mulher a viver das esmolas. Tem duas pequenas moedas. O normal é que as guardasse e pedisse mais algumas. Só alguém assim necessitado sabe o que custa a vida. Por isso, deita as moedas na certeza que pode contribuir para a alegria de alguém que venha a recebê-las. Ela já nada espera. Sobrevive com pouco ou nada. A sua alma é de uma grandeza admirável. Dá o melhor de si mesma, tudo o que tem. Faz toda a diferença.
Não é fácil colocar-se no lugar do outro sem ter passado pelo mesmo sofrimento. Esta viúva sabe o que é penar por duas moedas, um bocado de pão, uma tigela de sopa, por isso reparte pelos que têm menos ainda. Ela tem Deus, apesar da sua miséria material.
5 – A ganância e esta economia de mercado sem limites nem fronteiras, sem critérios humanizadores nem justiça social, não nos levará se não para o abismo, que ora destrói uns e logo há de destruir outros mais, aos milhões. Pessoas sem futuro, sem esperança e sem nome.
No entanto, como seguidores de Jesus Cristo não podemos, de modo algum, baixar os braços e entregar-nos ao acaso ou à decisão de outros. Temos de fazer alguma coisa. Redobrar esforços para criarmos e solidificarmos redes e laços de caridade, procurando que não falte o essencial às pessoas e às famílias, e envolvendo-se social e politicamente por medidas mais justas e solidárias.
Jesus ensinava a multidão, dizendo:
«Acautelai-vos dos escribas, que gostam de exibir longas vestes, de receber cumprimentos nas praças, de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas e os primeiros lugares nos banquetes. Devoram as casas das viúvas, com pretexto de fazerem longas rezas. Estes receberão uma sentença mais severa».
As palavras de Jesus põem a descoberto a exploração, mesmo quando feita sobre a capa da religião. As viúvas – símbolo de toda a pobreza – deveriam ser protegidas, mas são exploradas. Há quem atenda apenas aos meios, ao lucro, às benesses, e não às necessidades das pessoas e das famílias. Hoje como ontem. Como não nos deixarmos tocar por estas palavras de Jesus!
6 – Acentua-se o serviço sacerdotal de Jesus, que Se oferece por todos, fazendo com que os últimos estejam na primeira fila. O Seu sacerdócio não busca riquezas materiais, ou lugares de honra, palmadas nas costas, mas a salvação, a felicidade de todos.
"Cristo manifestou-Se uma só vez, na plenitude dos tempos, para destruir o pecado pelo sacrifício de Si mesmo. E, como está determinado que os homens morram uma só vez e a seguir haja o julgamento, assim também Cristo, depois de Se ter oferecido uma só vez para tomar sobre Si os pecados da multidão, aparecerá segunda vez, sem a aparência do pecado, para dar a salvação àqueles que O esperam".
Neste dia de São Martinho, deixemo-nos iluminar pela sua vida. Mostra-nos que não é a classe social que importa, mas a grandeza do coração. Que também nós saibamos levar sol a quem vive rodeado de trevas e repartir a nossa capa com os desvalidos que se cruzam connosco, acalentando a sua esperança, descobrindo o ROSTO de Jesus em todos os que se abeiram de nós.