1 – “Só sei que nada sei”. Célebre aforismo do não menos célebre filósofo grego Sócrates. Quanto mais sei, mais sei que nada sei. Partir do pressuposto que estamos a caminho, predispõe-nos a aprender, a descobrir; o que sabemos, por mais que nos pareça, é sempre muito pouco para aquilo que não conhecemos ou para aquilo que podemos aprender. É chamada a dúvida metódica. A dúvida como método de procurar, de não se satisfazer com o aprendido, de não desistir de conhecer e saber mais.
A fé e a confiança em Deus implicam-nos a buscá-l'O sempre mais. Em Jesus, Deus revela-Se em plenitude, mas continua a ser mistério que nos salva, nos redime e sobre o qual não temos controlo. É como areia nas mãos, temos que as manter um tanto ou quanto abertas, se as fechamos a areia esvai-se. A fé não responde a todas as perguntas e não resolve todas as dificuldades. Muitas vezes, mais que resposta, a fé é pergunta, questionamento, é caminho. É o vislumbre de luz que nos ajuda a atravessar as trevas. Se Jesus vai connosco tudo é mais fácil. Pode acontecer-nos, como Maria e José, quando subiram com Jesus ao Templo, por ocasião do seu 12.º aniversário, que no caminho percebamos que Ele não segue connosco. Nessa ocasião é preciso a pobreza, a humildade e o desprendimento para refazer o caminho, voltar a atrás até encontrar Jesus. A fé é graça, é dom, mas não é um dado adquirido ou uma conquista definitiva. "Deus não mora na superfície" (Tomáš Halík). Tantas as situações em que Deus não é fácil. A fé não é fácil quando a vida é difícil, injusta, contraditória, incompreensível.
Importa não desistir de procurar. O caminho faz-se caminhando. Há que perceber que quando nos enchemos de nós, esvaziamos a presença dos outros, impedimos que Ele nos preencha e dê sentido à nossa vida. A arrogância, a prepotência, a presunção distanciam-nos da verdade, bloqueiam o caminho, estupidificam a vida.
2 – As Bem-Aventuranças constituem uma das páginas mais belas, mais conhecidas e refletidas do Evangelho. São uma espécie de Evangelho em miniatura, pois nelas está contido o essencial da mensagem de Jesus. Ele que era rico fez-Se pobre para nos enriquecer com a Sua pobreza, com o Seu amor, com a Sua vida. N'Ele tudo nos fala de Deus, as palavras, os gestos, os encontros. O serviço, a compaixão, a ternura, o perdão. Jesus está onde pulsa a vida. Faz-Se um de nós, um connosco. Com Ele ninguém está a mais. Com Ele, as margens tendem a fluir para o centro e a encontrar o caminho!
Bem-aventurados os pobres em espírito, os humildes, os que choram, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os que promovem a paz, os que sofrem perseguição por amor da justiça... porque deles é o reino dos Céus... Este não está sujeito à usurpação pelo dinheiro, pela violência, pelo poder. É dom de Deus. O mundo constrói-se pelo amor, pelo serviço, pela persistência, pela justiça e pela verdade. É daqueles que não desistem de fazer o bem, de procurar o melhor para todos, de darem as mãos e o coração e construírem pontes. O reino de Deus é daqueles que não se deixam abater pela maledicência, pela perseguição, pelo poder e respondem com bondade, com serviço e docilidade.
Desengane-se quem pense que Jesus sanciona, aqui ou em qualquer lugar do evangelho, a miséria ou as injustiças. Pelo contrário, também aqui lança um forte grito de denúncia para quem humilha, violenta, agride, pois deles não será o Reino dos Céus. Este é precisamente para aqueles que o constroem pela paciência, pela compaixão, pela humildade, pela abertura aos outros e a Deus.
Entre os chefes das nações, a disputa sobre quem é o maior e tem mais poder. Não seja assim entre vós. Quem entre vós quiser ser o maior seja o servo de todos. Eu não vim para ser servido mas para servir e dar a vida por todos. O que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos é a Mim que o fazeis. Os pobres, os injustiçados, os que vivem à margem (uns porque se autoexcluíram, outros porque foram excluídos), são um desafio à compaixão. Para O imitarmos, para O seguirmos, não podemos passar ao largo e manter-nos à distância, alheados dos sofrimentos dos nossos irmãos, prostrados pela vida, como o sacerdote e o levita da parábola do bom samaritano, cuja identidade pátria e religiosa não são empecilho para se aproximar, para ver, para cuidar, para garantir a vida daquele homem que foi assaltado, agredido, roubado e deixado quase morto. Somos responsáveis uns pelos outros, desde sempre, em todas as situações. Deus perguntar-nos-á pelos nossos irmãos, como perguntou a Caim sobre o seu irmão Abel. Pedir-nos-á contas pelo destino dos outros.
3 – O profeta Sofonias aponta para o Senhor Deus, para o Seu proceder, para os Seus mandamentos., desafiando sobretudo os humildes a procurarem a justiça e a humildade. A vontade de Deus é clara: «o resto de Israel não voltará a cometer injustiças, não tornará a dizer mentiras, nem mais se encontrará na sua boca uma língua enganadora».
A lógica das bem-aventuranças já está presente na primeira leitura. O reino de Deus, o resto de Israel, será dos pobres e dos humildes, daqueles que buscam e se comprometem a construir, com Deus, um povo justo, verdadeiro e humilde.
4 – Fiz-me tudo para todos, para ganhar alguns para Cristo. Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. Para mim viver é Cristo. São expressões bem conhecidas do Apóstolo por excelência. Paulo, aguerrido perseguidor, torna-se um fervoroso seguidor. Há muito que estava muito perto de Jesus. Tão perto que nem se apercebeu que já O respirava, já vivia em função d'Ele e dos Seus feitos, das Sua manifestações e da obra que ia Ele realizando através dos apóstolos. Percebeu que segui-l'O era a sua salvação e a razão maior para a sua vida.
Não pensemos que Paulo era uma pessoa de trato fácil. Manteve sempre um espírito combativo, orientado para Cristo, mas não deixando de agitar as águas, respondendo, contraponto, oportuna e inoportunamente anunciando o Evangelho. Nem a prisão o silenciou. Quando não pela presença ou pela voz, pelas cartas e pelos emissários que envia às diversas comunidades. Percebe-se que alguns dos seus companheiros são mais diplomáticos e tentam apaziguar conflitos e dissensões. Tem uma personalidade forte, mas deixa-se moldar pelo Evangelho.
Nesta missiva aos Coríntios, vê-se bem a insistência e a persistência do Apóstolo e o seu espírito guerreiro. Dentro da comunidade havia partidários de Pedro e de Paulo, de Apolo e de Cristo, como víamos na semana passada. O Apóstolo relembra-lhes que não há nada além de Cristo. Desta feita, mostra à saciedade que Deus Se revela prevalentemente nos humildes e nos simples. «Não há muitos sábios, naturalmente falando, nem muitos influentes, nem muitos bem-nascidos». Com esta constatação, Paulo sublinha a missão daqueles que procuram viver o Evangelho com simplicidade de coração, dizendo claramente que «Deus escolheu o que é louco aos olhos do mundo para confundir os sábios; escolheu o que é fraco, para confundir o forte; escolheu o que é vil e desprezível, o que nada vale aos olhos do mundo, para reduzir a nada aquilo que vale, a fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus. É por Ele que vós estais em Cristo Jesus, o qual Se tornou para nós sabedoria de Deus, justiça, santidade e redenção».
São Paulo conclui exortando: «Quem se gloria deve gloriar-se no Senhor». O discípulo missionário não se comunica, comunica Cristo. Não deve, por conseguinte, fazer sombra, procurando exibir os seus dotes de linguagem ou de poder, mas há de transparecer Jesus, pela humildade, pela verdade e pela compaixão.
No final podemos sair maltratados, odiados e perseguidos, mas certos que essa não será a última palavra da vida. Jesus segue connosco e anima-nos a prosseguir. «Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa».
Pe. Manuel Gonçalves