1 – A Festa da Sagrada da Família reveste-se, cada ano que passa, de especial importância face aos ataques, à descaracterização, às dificuldades que atravessa. As famílias são o berço da sociedade, a célula primária, básica, essencial. É nas famílias que se nasce, se cresce, se aprendem os valores do respeito, da partilha, da comunhão. Aí se aprende a fragilidade e o perdão. O apoio nos momentos de desânimo, de doença, quando o emprego é precário ou inexistente. É na família que se celebra a vida, se festejam as ocasiões importantes. É aí que o nosso corpo encontra encosto e repouso, e a nossa vida pode ser acolhida em transparência, sem máscaras nem disfarces, onde podemos ser autênticos, sem medo nem vergonha.
2 – A Igreja viveu ultimamente dois Sínodos dos Bispos dedicados à Família. Realidades distintas conforme a latitude ou longitude. Em algumas zonas do universo discute-se a natalidade residual, noutras partes a falta de recursos para alimentar tantas bocas. Zonas demasiado povoadas, com muitas crianças e muitos jovens, e muita pobreza, e as políticas impositivas de controlo de natalidade e de chantagem económico-ideológica.
No Ocidente, predomina o envelhecimento da população e a desertificação das regiões periféricas. As medidas pensadas pelos líderes mundiais muitas vezes não levam em conta as necessidades das famílias mas o maior lucro possível, mesmo que à custa das pessoas e das famílias.
No Ocidente emerge uma mentalidade abortacionista. Paga-se para que as pessoas abortem. Assim era na China, em que se limitava o nascimento a um filho por casal. Este ano abriu-se a possibilidade de um segundo filho. Quando se trata de apoiar as famílias e a natalidade, não há recursos, estamos em crise. Mas financia-se o aborto como método contracetivo. Basta ver que as primeiras medidas do novo Parlamento português não foram melhorar a vida das pessoas carenciadas, mas facilitar o aborto e os casais inférteis. E não venham com a acusação ideológica de defesa da liberdade da mulher, pois logo impossibilitam os direitos da nova vida humana. Não se trata de perseguir ou condenar as mulheres que em situações-limite recorreram ao aborto! O acolhimento e o perdão são também desafio a apostar na vida. Para o Jubileu da Misericórdia, o Papa Francisco alargou a todos os sacerdotes o múnus de absolver aqueles que contribuíram para um aborto, colocando-se em situação de excomunhão. Salienta-se a misericórdia e a compreensão, mas colocando a vida como valor supremo e como ponto de partida para os demais direitos.
3 – Por outro lado, o desamparo dos mais novos e dos mais velhos.
As crianças, que são bênção, e cuja natalidade em alta revolveria muitos problemas de emprego, da segurança social, do desenvolvimento económico, são tidas como estorvo à felicidade pessoal e/ou profissional.
Segundo o Papa Francisco, e quanto aos idosos, expande-se a cultura do descarte. Não serve, deita-se fora. Enquanto eram úteis, agradecidos; quando exigem mais atenção, dispensados. Eles garantiam a comunicação dos valores, da cultura e da história, e foram simplesmente arredados das decisões mais importantes da família e da sociedade. Por vezes são como casacos nos cabides. São colocados em lares e lá permanecem sem a visita dos familiares, precisamente como os casacos nos cabides que podem atravessar uma estação inteira pendurados e esquecidos!
As sociedades que esquecem os mais novos e os idosos perdem a identidade, ficando sem o passado e sem o futuro. A aposta na natalidade garantirá a sobrevivência dos povos. O envelhecimento da população põe em risco todo o sistema económico-financeiro, quando foi este que estrangulou a capacidade das famílias gerarem mais vida. A carreira profissional, que promove, e bem, a realização das pessoas, impede a geração de filhos, por imposição da empresa, que não se dispõe a ter funcionários com licenças de maternidade e paternidade, ou dos próprios que se dedicam inteiramente às profissões para subirem sempre mais. O equilíbrio será o desejável.
4 – Os Sínodos dos Bispos permitiu aclarar diversas questões relacionadas com a família. No final, porém, a comunicação social fixou-se na discussão sobre os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, na adoção de crianças por casais homossexuais e na comunhão dos recasados.
Esta última questão será ainda aprofundada pelo Papa Francisco, com a possibilidade de atender a cada caso, sem desvalorizar o valor do Matrimónio consagrado diante de Deus. Por um lado, todos devem ser acolhidos e sentirem-se filhos da Igreja. Por outro, a importância da indissolubilidade do Matrimónio.
Fora desta questão, como é óbvio, está a situação das pessoas que vivem em união de facto ou casadas civilmente, tendo a possibilidade de celebrar o Matrimónio cristão. São os próprios que recusam os Sacramentos, pelo que não se compreende que insistam em comungar ou ser padrinhos de batismo e/ou de crisma, quando optaram por uma vivência conjugal à margem da Igreja.
A Igreja insiste na importância da família para promoção da cultura da vida, espaço favorável a proteger a vida e a dignidade das pessoas em diferentes situações de saúde, de deficiência, de idade, de vulnerabilidade no emprego, na habitação, na alimentação.
5 – Deus criou-os homem e mulher, para crescerem e multiplicar-se, para serem família, ajudando-se mutuamente. Osso dos meus ossos, carne da minha carne. Semelhantes a Deus, semelhantes entre si, capazes de amar e ser amados, e de responder. Só me pode responder alguém que me seja igual, nem abaixo nem acima, mas semelhante.
Também desde o início que em muitas situações ganhou o egoísmo, levando a ruturas e conflitos. A inveja, o ciúme e a ira de Caim contra o seu irmão Abel, eliminando-o para que não haja alguém que, em seu entender, lhe possa fazer-lhe sombra ou limitar os seus "direitos". Desaparecendo o irmão, a fraternidade, desaparece também a felicidade, tornamo-nos errantes. Não é Deus que nos exclui, somos nós que cavamos a nossa sepultura ao afastar-nos dos outros.
Ben Sirá lembra a vontade original de Deus: "Deus quis honrar os pais nos filhos… Quem honra seu pai obtém o perdão dos pecados e acumula um tesouro quem honra sua mãe… Filho, ampara a velhice do teu pai e não o desgostes durante a sua vida… sê indulgente para com ele e não o desprezes, tu que estás no vigor da vida, porque a tua caridade para com teu pai nunca será esquecida e converter-se-á em desconto dos teus pecados".
O cuidado e o amor devotado pelos pais aos filhos deve ser correspondido pelo cuidado, respeito e amor dos filhos em relação aos pais sobretudo quando estes avançam para uma fragilidade física, pela idade e/ou pela doença.
São Paulo, por sua vez, alarga o mandamento aos maridos e às mulheres, mantendo-o em relação aos pais e aos filhos, pela submissão no amor, na delicadeza e no serviço mútuo, mas também a todos nós, imitando Jesus: «Revesti-vos de sentimentos de misericórdia, de bondade, humildade, mansidão e paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente… Tal como o Senhor vos perdoou, assim deveis fazer vós também. Acima de tudo, revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição. Tudo o que fizerdes, por palavras ou por obras, seja tudo em nome do Senhor Jesus...».
6 – A Encarnação de Deus, a vinda de Jesus para junto de nós, a assunção da nossa condição mortal e finita, identificando-Se connosco e connosco vivendo, caminhando, volta a ensinar-nos o caminho da fraternidade, da partilha, da comunhão, pelo perdão e pelo amor, colocando os outros em primeiro lugar, servindo-os. A quadra de Natal recorda-nos esta família de Nazaré, cujo ambiente promove o diálogo, o respeito pelas diferenças e pela missão de cada um, e sobretudo, o acolhimento da vontade de Deus.
Não é uma família extraordinária e, muito menos, extraterrestre. É uma família simples, pobre ou remediada, de uma pequena cidade-aldeia, de Nazaré. Não vive num palácio. São José trabalha a pedra, a madeira e em tudo o que é necessário às construções daquele tempo. Maria cuida da casa, dos animais, recolhe o leite, fabrica o queijo, fia a lã, trata das roupas, amassa a farinha e coze o pão. E, como em qualquer família judaica, Maria tem o cuidado por Jesus, lhe ensinar a rezar, a ler, a comportar-se. Sendo rapaz, a partir dos 7/8 anos, passa a acompanhar o pai, ajudando-o e aprendendo a mesma profissão. Filho de um carpinteiro, carpinteiro será.
A religião marca o ritmo das famílias e das aldeias. Como sublinha São Lucas, a Sagrada Família ia todos os anos a Jerusalém pela festa da Páscoa. É nesse contexto que "perdem” Jesus. É a idade em que os rapazes eram/são iniciados na vida adulta: vão ao Templo e, pela primeira vez, leem a Sagrada Escritura em público. O entusiasmo de Jesus fá-l'O permanecer mais tempo junto dos doutores da Lei, tentando compreender melhor a sua missão e identidade, e pondo em evidência as suas intuições.
7 – Indo em caravana, com os membros da família alargada e com as pessoas da mesma cidade, protegendo-se mais facilmente dos salteadores, era possível que as crianças, nas correrias e brincadeiras, se afastassem dos pais. No regresso de Jerusalém, Maria e José "perdem-se" de Jesus. Terá ficado com as outras crianças? Não saberá das preocupações dos seus pais? Durante o dia da caminhada, as crianças mais crescidas poderiam ir juntas. No final do dia, a família reúne-se para a refeição e para descansar. É então que se apercebem que Jesus não voltou e procuram-n'O entre familiares e conhecidos.
Onde O haveriam de encontrar? No Templo entre os doutores da Lei, que se admiram com a sua sabedoria. Quando O encontram, Maria pergunta-Lhe: «Filho, porque procedeste assim connosco? Teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura». Jesus respondeu-lhes: «Porque Me procuráveis? Não sabíeis que Eu devia estar na casa de meu Pai?».
Sobrevém o clima de diálogo. Maria pergunta a Jesus se tinha consciência de que Ela e São José estavam preocupadíssimos. Jesus responde-lhes com outra pergunta e que aponta para a Sua identidade original e para a missão que terá de assumir.
Visualiza-se a delicadeza de Maria e de José. Maria guarda estes acontecimentos e palavras no coração e certamente também José. Logo o evangelista nos lembra que "Jesus ia crescendo em sabedoria, em estatura e em graça, diante de Deus e dos homens".
Por aqui se vê como a família de Nazaré também tem a sua dose de dificuldades, por ocasião do nascimento de Jesus, na fuga para o Egipto e agora na "perda" de Jesus. Como é que se terão sentido Maria e José e os outros familiares a procurar em todas as encruzilhadas por Ele?
8 – O texto do Evangelho diz-nos, entre muitas coisas, algo essencial: se nos perdermos de Jesus, como aconteceu com Maria e José, e por mais caminho que tenhamos percorrido, é imprescindível que regressemos a todos os lugares onde O pudermos encontrar. Não adianta correr se não sabemos para onde vamos.
Peçamos com fé: "Senhor, Pai santo, que na Sagrada Família nos destes um modelo de vida, concedei que, imitando as suas virtudes familiares e o seu espírito de caridade, possamos um dia reunir-nos na vossa casa para gozarmos as alegrias eternas".
Maria e José estão atentos à vontade de Deus, fazendo com que Jesus esteja no centro das suas preocupações e das suas vidas, por maiores que sejam as dificuldades e os desafios. Assim ter de ser connosco.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia: Sir 3, 3-7. 14-17a; Sl 127 (128); Col 3, 12-21; Lc 2, 41-52.