sábado, 28 de janeiro de 2012

IV Domingo do Tempo Comum (ano B) - 29 de janeiro

       1 – "Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações". Respondemos à Palavra de Deus com a mesma Palavra de Deus, através dos salmos. E neste domingo ecoa nos nossos ouvidos esta recomendação: sermos ouvintes a partir do nosso coração. Habitualmente usamos duas palavras para o sentido da audição: ouvir e escutar. O ato de ouvir é comum ao ser humano e a outros seres vivos. Até as plantas ouvem, até as plantas têm necessidade de ser afagadas e de ouvir... Assim, na experiência doméstica de muitos, a constatação que um gato, um cão, um pássaro definham se estiverem muito tempo sem ouvir a voz dos donos. E como saltam euforicamente quando pressentem a proximidade do dono, quando ouvem o rugido da porta de entrada, ou mesmo quando ouvem o barulho do carro que estaciona.
       E por aqui também vemos como o ouvir mexe com o organismo, mexe também connosco.
       Como precisamos de ouvir ruído, um carro a passar, uma música, uma voz, alguém a conversar na rua!... ou simplesmente as vozes que saltam da televisão ou da rádio. Todos conhecemos pessoas que não gostam de ver televisão, ou nem prestam atenção ao que passa na rádio, mas que ligam os aparelhos para se sentirem menos sós. Quando a solidão ataca, ouvir uma voz pode ser acalentador!

       2 – Escutar é genuinamente humano, é prestar atenção, olhar, obedecer, é colocar-se em atitude de diálogo, de acolhimento não apenas de uma mensagem mas da pessoa que a profere. Quando a Palavra de Deus ressoa nos nossos ouvidos não pode ser apenas um ruído que perturba, mas o próprio Deus que vem habitar-nos, que desce ao nosso íntimo, ao nosso coração. Por vezes é necessário fechar os olhos (e até os ouvidos) para que a palavra de Deus possa dançar nas profundezas da nossa alma. Depois essa dança converter-se-á em alegria e há de brilhar através do nosso olhar, das nossas palavras e dos nossos gestos.
       O povo de Israel, no seu peregrinar pelo deserto, em diversos momentos, transformou a palavra de Deus em ruído exterior, sem deixar que ela tocasse as suas vidas. Em momentos de desânimo, quando a vida é mais complexa e mais dura, facilmente se esqueceram (e nos esquecemos?) das palavras de Deus, perdendo confiança e entregando-se à murmuração, como que exigindo uma intervenção permanente e milagrosa de Deus. Como se a fé em Deus (e nas Suas promessas) significasse o fim de todos os problemas e a ausência de dificuldades e da necessidade do esforço pessoal e comunitário. O salmo provoca a escuta e a mudança do coração, escutar a partir do interior, a partir da alma, para nos abrirmos ao mistério que nos chega de Deus, que pode transformar o mundo que habitamos.


       3 – Na primeira leitura, Deus fala a Moisés e por ele a todo o povo, prometendo-lhe o envio de um profeta que fale em Seu nome, para que o povo não se atemorize na Sua presença.
       «O Senhor teu Deus fará surgir no meio de ti, de entre os teus irmãos, um profeta como eu; a ele deveis escutar. Foi isto mesmo que pediste ao Senhor teu Deus no Horeb, no dia da assembleia: ‘Não ouvirei jamais a voz do Senhor meu Deus, nem verei este grande fogo, para não morrer’. O Senhor disse-me: ‘Eles têm razão; farei surgir para eles, do meio dos seus irmãos, um profeta como tu. Porei as minhas palavras na sua boca e ele lhes dirá tudo o que Eu lhe ordenar. Se alguém não escutar as minhas palavras que esse profeta disser em meu nome, Eu próprio lhe pedirei contas'».
       Com efeito, ainda que através do profeta, as palavras de Deus terão a mesma força e a mesma exigência. Deus colocará a sabedoria e as palavras nos seus enviados, para serem como que um esteio entre o povo, na fidelidade aos mandamentos, na procura constante por praticar o bem e a justiça, viver na concórdia e ajudando-se como família.
       A caminhada do deserto foi demorada e exigiu um grande esforço, não tanto pelas condições adversas, próprias da aridez e da oscilação climática (entre o calor e o frio extremos), mas sobretudo pelos recuos e avanços na vivência dos mandamentos, referência fundamental (e libertadora) para todo o povo.
       A lei, justa e esclarecida, equilibrada e para todos, é libertadora. Como alguém recorda, é como uma pequena cruz no canto de uma folha em branco, temos todo o espaço para preencher com a nossa escrita, com a nossa vida. Os dois pequenos traços cruzados dizem-nos que podemos escrever, que somos livres para agir, ainda que a folha já tenha uma marca. Se nos concentrarmos nessa marca e nos lamentarmos por a folha já se encontrar iniciada (trazemos já inscritas regras no nosso código genético), esqueceremos rapidamente que há muito mais para viver, alguém nos facilitou o caminho, sabemos por onde iniciar, de onde partir...
       A cada passo surgem vozes a murmurar e a lamentar-se pela falta de comodidade que teriam no Egito, ainda que não tivessem liberdade (tendo a folha já cheia de traços, sem espaço a preencher) e, naturalmente, a tentação de regressar a hábitos e tradições, próprias de um povo politeísta e bem mais permissivo na moral e nos costumes e pouco exigentes na defesa e valorização da vida humana.
        4 – Jesus é a palavra encarnada, o medo que os judeus tinham de escutar a voz de Deus, que vinha do alto como um estrondo, chega agora de forma indolor, quase silenciosa, entra na história (quase) anonimamente, não por entre as nuvens, mas a partir do interior da humanidade. A Palavra tem um rosto, é uma Pessoa, faz-Se carne em Jesus Cristo.
       A Palavra de Deus, mediada pelos profetas, perde por vezes a sua eficácia. Em alguns momentos, o povo distancia-se da palavra de Deus por não lhe reconhecer a força ou simplesmente por faltarem profetas – a Palavra de Deus torna-se inacessível, difícil de compreender pela multiplicação e ruído das palavras. Os escribas e doutores da lei tornaram demasiado complexa a palavra de Deus e, por outro lado, tornaram-na fator de divisão. Esclarecidos, sabiam como contornar a lei ou justificar os seus desvios, com outros preceitos. As pessoas mais simples procuravam cumprir mesmo não entendendo o que se lhes pedia, ou parecendo-lhes excessivo, mas sem terem como argumentar.
       Com Jesus Cristo, a Palavra volta a plantar-se no coração dos homens e das mulheres. Não nos atemoriza porque podemos escutá-la até no deserto das nossas preocupações, no mais íntimo de nós, até mesmo no silêncio mais profundo.
       Ele é o Mestre dos Mestres, é a Palavra que Se faz Pessoa e tem palavras de vida eterna. N'Ele as palavras são expressão da Sua intimidade com Deus, refletem o que pensa e a forma como age na relação com o mundo e com as pessoas.
       "Encontrava-se na sinagoga um homem com um espírito impuro, que começou a gritar: «Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno? Vieste para nos perder? Sei quem Tu és: o Santo de Deus». Jesus repreendeu-o, dizendo: «Cala-te e sai desse homem». O espírito impuro, agitando-o violentamente, soltou um forte grito e saiu dele. Ficaram todos tão admirados, que perguntavam uns aos outros: «Que vem a ser isto? Uma nova doutrina, com tal autoridade, que até manda nos espíritos impuros e eles obedecem-Lhe!» E logo a fama de Jesus se divulgou por toda a parte, em toda a região da Galileia".
       A palavra de Jesus liberta, cura, e desafia-nos à coerência de vida. A autoridade que se Lhe reconhece vem da simplicidade com que fala às multidões e a cada pessoa que encontra. Não fala como estranho, como alguém superior ou mais sábio, mas fala ao coração, com gestos, com autenticidade, de forma simples, mistura-se com o povo, deixa-se tocar, deixa-se arrastar no meio da multidão, vai onde precisam d'Ele, da Sua palavra ou dos seus gestos.
       Como discípulos deixemo-nos envolver pela Sua presença, pela Sua palavra, agindo sabendo que Ele está connosco, a olhar para nós, a contemplar a nossa vida.


Textos para a Eucaristia (ano B): Deut 18,15-20; Sl 94 (95); 1 Cor 7,32-35; Mc 1,21-28.

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