1 – A vida não é a preto e branco. Afirmação já muito batida. Melhor, que a vida não seja cinzenta! São diferentes as cores e as matizes dos nossos dias. Como o tempo, também na nossa vida, há dias de sol e dias nublosos, dias de chuva e dias preguiçosos.
A celebração do Domingo de Ramos apresenta um quadro completo, fazendo-nos visualizar, através de momentos e de intervenientes variados, diversas faces da nossa existência.
Há uma multidão de gente pobre e humilde, trabalhadora e cheia de fé, que acompanha Jesus, da Galileia para Jerusalém, do mundo para a cidade santa. A multidão gera alvoroço. Há um murmúrio que se eleva, aclamando e reconhecendo Jesus como o Messias, o Filho de David, o Rei de Israel, o Bendito que vem em Nome do Senhor.
À Sua passagem depõem capas e ramos, para que o chão de Jesus seja macio e, sobretudo, como reconhecimento da Sua realeza. É um Rei sem coroa e sem exército, sem pompa nem circunstância. Não vem armado nem ostenta riqueza. Não vem no alto de um cavalo de combate, mas quase com os pés no chão, num jumentinho, filho de uma jumenta (cf. Mc 11, 1-10).
A voz sobe de tom e o entusiasmo à volta de Jesus faz-nos olhar na Sua direção.
Os discípulos estão misturados entre aquela multidão. Passam despercebidos. Seguem no mesmo passo ligeiro, empolgados com tão grande manifestação de afeto para com o Seu Mestre e Senhor. Jesus já os tinha precavido dos tempos que lá vinham. Mas, por alguns momentos, eles esquecem o anúncio da paixão e os sinais que evidenciam o perigo iminente.
2 – Algumas horas depois, o empolgamento dará lugar ao desencanto, a festa cederá à tristeza, a confiança será substituída pela desilusão.
Belíssimo o hino que Paulo recolhe na Epístola aos Filipenses e que resume, de forma sublime, todo o mistério da salvação, o abaixamento de Cristo por amor, a Sua filiação e identidade divina, a Sua identificação com a fragilidade e finitude humanas, a glorificação que se realiza através do mistério da entrega na Cruz, o Nome que é elevado acima de todos os nomes, sentando-Se à direita do Pai, de onde nos atrai com a Sua luz, com o Seu olhar: «Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio... tornou-Se semelhante aos homens... humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz. Por isso Deus O exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem no céu, na terra e nos abismos, e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai».
3 – «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?». Início do salmo que hoje cantamos e que encontramos nos lábios de Jesus, e no Seu coração, dirigindo o Seu clamor e a Sua confiança para Deus Pai. A oração continua: «Todos os que me vêem escarnecem de mim, / estendem os meus lábios e meneiam a cabeça: / Confiou no Senhor, Ele que o livre, / Ele que o salve, se é meu amigo. / Matilhas de cães me rodearam, / cercou-me um bando de malfeitores. / Trespassaram as minhas mãos e os meus pés, / posso contar todos os meus ossos. / Repartiram entre si as minhas vestes / e deitaram sortes sobre a minha túnica. / Mas Vós, Senhor, não Vos afasteis de mim, / sois a minha força, apressai-Vos a socorrer-me».
«Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?». O final da vida de Jesus ou o início de um tempo novo? As palavras que soam mais alto são as que sugerem revolta, protesto, acusação! Quantas situações na nossa vida em que nos apetece gritar bem alto: Meu Deus, meu Deus, porquê, porquê a mim? Porquê logo neste momento da minha vida?
O salmo inicia com uma pergunta que pouco a pouco dá lugar a uma súplica confiante: nestes momentos difíceis da minha vida, Senhor, não me abandoneis, pois sois a minha força. É a súplica de um filho a um pai ou a uma mãe. Mais que protesto é um pedido. O fim que se aproxima, aproxima-nos uns dos outros, aproxima-nos de Jesus. «Na verdade, este homem era Filho de Deus». Diz o centurião, mesmo que à procura do significado das palavras que acabou por dizer. No último suspiro, Jesus entrega-Se por nós, entrega-nos ao Pai.
4 – Umas horas antes, os discípulos tomam consciência que o desenlace da vida de Jesus não vai ser como esperavam. Apercebem-se pela gravidade com que Jesus os olha e pela solenidade com que lhes fala. Há que deixar tudo em pratos limpos, que nada (de importante) fique por dizer, mesmo que só mais tarde, à luz da ressurreição, seja compreensível.
Como judeus, Jesus e os discípulos vão celebrar a Páscoa, recordando a libertação da escravidão para a liberdade da terra prometida. O ambiente começa a agitar-se. Em Betânia, à mesa, nova oportunidade para Jesus assentar o estômago aos seus discípulos. "Veio uma mulher que trazia um vaso de alabastro com perfume de nardo puro de alto preço". Os discípulos percebem o desperdício mas não a abundância do arrependimento e do amor. Também não percebem, mas Jesus lembra-lhes, que aquela unção antecipa a unção de um corpo que daqui a algumas horas estará no sepulcro.
Novo golpe. Ao cair da tarde, quando as trevas se adensam, diz-lhes Jesus: «Um de vós, que está comigo à mesa, há de entregar-Me». Como é possível num grupo de amigos, que se consideram irmãos, alguém possa sequer pensar em trair Jesus!
Logo depois, Jesus antecipa a Sua morte e a Sua ressurreição. «Tomai: isto é o meu Corpo... Este é o meu Sangue, o Sangue da nova aliança, derramado pela multidão dos homens... Não voltarei a beber do fruto da videira, até ao dia em que beberei do vinho novo no reino de Deus».
Mas antes desse DIA NOVO, a noite prolonga-se no abandono, na traição, na negação. «Todos vós Me abandonareis». Já no horto das Oliveiras, a oração intensa de Jesus. Os discípulos que dormem de cansaço e de medo. A prisão. O discípulo de confiança, Judas, que entrega o Mestre com um beijo. Os açoites, as injúrias e agressões, acusações e falsas testemunhas. Parece que vale tudo para condenar um homem. A negação de Pedro, a passagem de um a outro tribunal, uma outra multidão, cheia de si ou iludida por vãs promessas e por vis mentiras. No Sinédrio, e diante de Pilatos, que se deixa vencer pelo medo e pela ameaça, pois não se vê a perder o seu posto! O julgamento apressado e a fácil condenação à morte. A cruz pesada demais para um homem só, de tal que requisitam Simão de Cirene para ajudar. No alto da Cruz, Jesus olha para nós e puxa o nosso olhar para o Céu. Está rodeado de dois salteadores, como se fora um deles! E mesmo crucificado, a morrer, é insultado.
Já desfalecido, solta forte grito e morre. A afirmação do Centurião mostra a estupefação diante da valentia com que aquele homem frágil enfrentou todos os que escarneciam d'Ele e a violência com que o faziam. O Seu corpo morto está uma lástima, está irreconhecível.
Mas ainda há lugar para a generosidade. «José comprou um lençol, desceu o corpo de Jesus e envolveu-O no lençol; e rolou uma pedra para a entrada do sepulcro. Entretanto, Maria Madalena e Maria, mãe de José, observavam onde Jesus tinha sido depositado». Um último gesto de cuidado.
5 – Isaías, o profeta do Advento e da Quaresma, dá-nos a chave de leitura para percebermos melhor a vida e a missão do Messias que vem de Deus, como o Emanuel, Deus connosco, Príncipe da Paz, para instaurar um reino de conciliação, de justiça e de paz.
«O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo, para que eu saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos. Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos, para eu escutar, como escutam os discípulos. Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam».
O Messias, qual Servo sofredor, cordeiro inocente levado ao matadouro, vem para trazer uma palavra de alento, não respondendo à violência com violência, mas com serviço e perdão. Aí está o retrato de Jesus, o retrato do Ungido (=Messias) de Deus.
Pe. Manuel Gonçalves
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