1 – Aí está a pergunta de Pedro: «Se meu irmão me ofender, quantas vezes deverei perdoar-lhe? Até sete vezes?».
No evangelho do domingo passado verificámos como a comunidade procurou perceber, acolher e traduzir os ensinamentos de Jesus. Com criatividade e realismo, no contexto concreto e real, ajustando o ideal ao possível. Hoje vemos como a pergunta de Pedro aponta para algo grandioso, sabendo que perdoar nunca é fácil, menos ainda quando são os nossos amigos a ofender-nos ou quando colocam em causa a nossa honorabilidade. A comunidade percebeu que para ser fiel a Jesus tinha que dar segundas e terceiras oportunidades. A pergunta de Pedro, mesmo sem o simbolismo subjacente, vai mais longe. Perdoar até 7 vezes? Impossível. Uma vez, duas vezes! À terceira começa a ser demais, pois há que manter a dignidade! Três vezes ou mais já é perder a face e deixar abusar. 7 vezes? Só se fosse a 7 pessoas diferentes e em diferentes ocasiões! Mas o SETE, na linguagem semita, vale por plenitude, perfeição, ou seja, sempre.
Ora a resposta de Jesus é ainda mais taxativa: «Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete».
Façamos as contas que, em termos matemáticos, são fáceis de fazer: 70X7=490 vezes. Muitos "perdões"! Mas novamente a linguagem semita e o seu significado: 70X7 = SEMPRE! Pedro já apontava para um perdão sem limites, mostrando a Jesus que tinha aprendido bem a lição e que já era capaz de ver além do seu umbigo. Porém, Jesus aponta para o infinito, para que não haja ajustes ou negociações ou interpretações personalizadas à medida de quem lê ou de quem escuta. SEMPRE. É a medida do amor, é a medida de Jesus, a medida de Deus. Sem ajustes nem reservas!
2 – A fé não é um discurso (meramente) intelectual, uma elaboração racional. É vida concreta. Jesus enxerta-Se na história, assumindo a nossa carne humana e a nossa linguagem. Fala-nos sobretudo com a Sua vida. Obviamente que a fé precisa de ser inteligível, mistério que acolhemos e sobre o qual precisamos de refletir, perceber e de assimilar. Ainda que, como mistério, nos escape e ultrapasse qualquer aprisionamento racional.
A comunicação de Jesus procura "democratizar" o acesso ao reino de Deus, mas também a perceção sobre o mesmo. O reino de Deus é para todos, não para um grupo privilegiado, uma elite. Esse é também o combate de Jesus com alguns líderes religiosos, que nem entram nem deixam entrar, complicando, sendo os intérpretes exclusivos da Lei e da vontade de Deus. Jesus eleva a fasquia. Os filhos apresentam-se diante de um Pai, não de um Juiz prepotente e surdo! Os juízos do Pai são preenchidos de ternura e misericórdia, de compaixão e de caridade.
Mestre da Sensibilidade, Jesus fala da vida e de modo a que todos possamos perceber. Não se enrola num emaranhado de argumentos. Ao responder a Pedro, como em tantas outras ocasiões, Jesus conta uma estória. O reino de Deus pode comparar-se a um rei que quer ajustar contas com os seus servos. À sua presença é levado um homem que lhe deve 10 mil talentos. Uma fortuna. Não tendo com que pagar, será vendido com a mulher, os filhos e as suas posses. Perante a iminência da desgraça, este homem suplica ao rei compreensão e tempo para saldar a dívida. O rei despe a capa do poder e enche-se de compaixão! Perdoa-lhe toda a dívida.
Pelo caminho, o homem a quem foi perdoada a dívida encontra um companheiro que lhe deve uma ninharia: cem denários! A alegria e a gratidão deveriam agora ser o seu alimento e o seu vestuário. Mas prevalece a ganância e, tendo em conta o muito que lhe foi perdoado, não é capaz de fazer o mesmo com o seu companheiro, mandando-o prender. Este é também um drama do nosso tempo: muitas vezes a quem deve são-lhe também retiradas as possibilidades de pagar! A parábola termina com os companheiros a irem à presença do seu senhor, contando-lhe o sucedido, revoltados com a desmedida com que aquele servo tinha sido beneficiado e a exigência para com o companheiro sobre uma pequena dívida.
3 – Nós também cabemos dentro da parábola. Eu e tu. Enquanto Jesus fala não podemos assobiar para o lado como se não fosse nada connosco. Ele fala para os discípulos, isto é, fala para nós. Para todos. Para cada um. Sem exceção.
Na parábola, a reação do rei é elucidativa: «Servo mau, perdoei-te tudo o que me devias, porque mo pediste. Não devias, também tu, compadecer-te do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?» Então o senhor entregou-o aos verdugos até que a dívida seja saldada.
Depois da parábola vem a conclusão! O próprio Jesus avisa e desafia: «Assim procederá convosco meu Pai celeste, se cada um de vós não perdoar a seu irmão de todo o coração». O perdão de Deus para connosco é absoluto, sem reservas nem condições! Acolhendo-O na nossa vida, o caminho a percorrer terá de ser conforme ao Seu proceder: perdoar sempre.
4 – Perdoar faz-nos bem à saúde. Liberta-nos para viver. Quem não perdoa amargura-se mais e mais. Cisma e deixa de pensar a alegria de viver, de confiar, de apreciar o que os outros têm de bom, perde a capacidade de se esgotar positivamente a favor de alguém, a favor dos outros. A amargura é doentia. Claro que temos o direito de ficar magoados com o mal que nos fazem, mas perdemo-nos se não formos capazes de fazer o luto sobre a ofensa. Não se trata de esquecer, mas de querer, de querer viver, de querer compreender, de querer amar, apesar de tudo.
Ben Sirá alerta para o erro daquele que guarda rancor. Deus pedirá contas a quem se vinga do seu irmão. «Perdoa a ofensa do teu próximo e... as tuas ofensas serão perdoadas». Interroga-se o sábio: «Um homem guarda rancor contra outro e pede a Deus que o cure? Não tem compaixão do seu semelhante e pede perdão para os seus próprios pecados?», desafiando-nos: «lembra-te do teu fim e deixa de ter ódio; pensa na corrupção e na morte, e guarda os mandamentos».
5 – No salmo respondemos à Palavra de Deus com a própria Palavra de Deus. E hoje o salmo faz-nos ver a grandeza do perdão e da misericórdia do Senhor de tal que nos sintamos reconfortados e disponíveis para transparecer a Sua ternura. Ele perdoa os nossos pecados e cura as nossas enfermidades. Não guarda ressentimento e não nos julga segundo os nossos pecados, mas segundo a Sua misericórdia. «Como o Oriente dista do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados».
Se o nosso coração se abrir à misericórdia de Deus, Ele não levará em conta o nosso pecado. Com efeito, Deus quer a conversão do pecador, não a sua morte. Quer-nos como filhos. Tanto nos quer, que nos dá Jesus. Em Jesus, o Seu amor vai até ao último suspiro!
6 – Na Carta aos Romanos, que temos vindo a ler, São Paulo remete-nos para a imitação do amor de Jesus Cristo. Na verdade, Cristo morreu e ressuscitou, tornando-se Senhor dos vivos e dos mortos. A soberania de Deus é visível, no tempo e na história, na pessoa de Jesus, nas Suas palavras e gestos, na Sua vida. Oferece-se, gastando a Sua vida por nós. Deus Pai ressuscita-O sancionando a Sua postura, o Seu jeito de amar e perdoar, o Seu jeito de agir e Se dar, por inteiro, a todos.
Somos discípulos, aprendamos com Ele a dar a vida, a cuidar dos outros, sobretudo dos mais frágeis. Como cristãos não vivemos para nós, «se vivemos, vivemos para o Senhor, e se morremos, morremos para o Senhor. Portanto, quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor».
É a nossa vocação e o nosso compromisso, viver para o Senhor, sintonizados com o Seu amor, com a Sua compaixão.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (ano A): Sir 27, 33 – 28, 9; Sl 102 (103); Rom 14, 7-8; Mt 18, 21-35.
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