Os cem anos da República portuguesa cruzaram-se com os dois mil anos da Igreja Católica. E, em Portugal, ambas protagonizaram um século.
De fragmentos se faz a história. Quem a realiza, quem a lê e quem a conta. Nada envolve tudo ou tudo explica. Multiplicam-se as máquinas da memória, a declinação de dados, o cruzamento de factos. A intercepção com as ideologias, a proximidade com os elementos antagónicos, a manipulação segundo os envolvimentos favoráveis ou de desconforto, faz da história um instrumento de busca, na purificação constante das águas da memória. Nem vale a pena misturá-la com histórias. Ou carregá-la de adjectivos, hipérboles, dramas, ou simples colorações de circunstância. Ninguém é quimicamente puro nas análises que ensaia porque ninguém sabe a história toda nem todas as histórias. Como o futuro, o passado límpido apenas a Deus pertence.
E há o tempo. «O passado não cessa de nos surpreender, mais que o presente, mais que o futuro talvez», diz Jean-Claude Carrière em diálogo com Umberto Eco. Cem anos de implantação da República em Portugal têm muito a ver com este todo. Nas diferentes narrativas dum facto que não é acontecimento dum dia ou explosão duma hora. Remexe muitas páginas da história e traz permanentes surpresas, enquanto insinua que tem tudo dito e feito. Daí, a procura honesta e rigorosa dos enquadramentos, causas próximas e remotas, intervenientes de primeiro plano ou programadamente escondidos. Com a humildade de quem sabe que a história é uma recolha meticulosa de fragmentos que parecem ser um todo, não podemos cansar-nos de procurar as linhas mestras que a sequência vertiginosa dos séculos foi criando como um vulcão paciente que atingiu altíssimas temperaturas e no arrefecimento progressivo e lento foi criando montanhas, planícies, desertos, oásis, terras áridas e rios abundantes. Sem nunca desistir da sua revolução criadora ao espalhar por pátrias infindas as suas lavas mornas. Os cem anos da República portuguesa cruzaram-se com os dois mil anos da Igreja Católica. E, em Portugal, ambas protagonizaram um século, tiveram encontros e desencontros com leituras contrárias, desdobrando os mesmos factos em dividendos que geraram algumas guerras religiosas no meio de muitas guerras civis. A República não é uma data única. É um rasto de tempo num pequeno espaço chamado Portugal.
Que se retome a memória. Mas que nunca se perca a inteligência. Foi no contexto das novas memórias que Michel Serves o afirmou. Mas que cabe neste tempo de boas e más memórias que estamos a celebrar.
Pe. António Rego, Editorial Agência Ecclesia.
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