1 – Quando alguém espirra é comum dizer-se-lhe "santinho". Outras expressões também conhecidas: "viva", "saúde", "com Jesus Cristo cresças". Durante a peste negra quando alguém espirrava era, na maioria dos casos, o último suspiro. Desejar saúde ou vida ou felicidade era uma forma de encorajamento. Ou "santinho", pois deveria ser santo e estar nas graças de Deus para sobreviver ao espirro da morte. A resposta mais comum: "não sou". É como se fosse algo de impossível, acessível a uns poucos; outras vezes dá a sensação que ser santinho é ter uma vida insossa, direitinha, sem chama nem fogo, sem prazer nem entusiasmo.
Os últimos Papas têm reconhecido a santidade em pessoas (ditas) normais. Havia a clara noção que para se ser santo ou se era mártir ou tinha que se viver num convento ou num mosteiro, longe das tentações do mundo e das preocupações próprias do quotidiano. Havia ainda a ideia que a santidade estava ligada à virgindade imaculada e, nesse propósito, uma pessoa casada estava fora dos eleitos à santidade. Lembro-me de na minha infância ouvir uma conversa sobre este tema, notando-se, o que só muito mais tarde percebi, a ideia que o casamento tinha algo de pecaminoso.
O reconhecimento da santidade na vida familiar e o reconhecimento do casal como testemunhos de santidade, por exemplo, os pais de Santa Teresa do Menino, de jovens ou adultos, de um surfista ou uma médica, garante-nos que a santidade é possível. E não apenas, é também desejável. Ser santo é ser feliz, bem-aventurado, capaz de assumir a sua identidade primeira, amar e acolher o amor do outro, porque primeiro Deus nos amou.
2 – Há pessoas à nossa volta que pela simplicidade de vida, pela alegria que irradiam, pelo bem que fazem, pela paz que comunicam, pela disponibilidade com que ajudam os outros, pela prontidão com que se dão, transparecem o sorriso e a misericórdia de Deus.
Um dos primeiros aspetos sublinhados pelo nosso Bispo, D. António Couto, na Carta Pastoral para o ano de 2016-2017, é a necessidade e a urgência dos cristãos serem transparência e testemunhas de Jesus Cristo. Discípulos missionários e não apenas animadores ou transmissores do Evangelho. A identidade do cristão passa por viver em Cristo, alimentando-se da Sua Palavra e dos Sacramentos pelos quais Ele continua a agir no nosso mundo, cuidando d'Ele na pessoa dos mais necessitados de pão e de amor.
A santidade de vida começa no tempo presente. Não apenas na hora da morte ou na eternidade. É aqui que nos preparamos, nos treinamos e iniciamos a vida como ressuscitados em Jesus Cristo, a partir do Sacramento do Batismo. Mergulhamos na Sua morte, para com Ele ressuscitarmos e vivermos como ressuscitados.
São João na sua primeira missiva sublinha isso mesmo: "Caríssimos, agora somos filhos de Deus e ainda não se manifestou o que havemos de ser. Mas sabemos que, na altura em que se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porque O veremos tal como Ele é. Todo aquele que tem n’Ele esta esperança purifica-se a si mesmo, para ser puro, como Ele é puro".
Se vivemos já a esperança da ressurreição futura, onde seremos semelhantes a Ele, é tempo de nos purificarmos, isto é, de vivermos assumindo os Seus passos, o Seu mandato: "Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei".
3 – A vivência do Evangelho, o seguimento de Jesus Cristo, não é coisa do passado, não é para um grupo de elite ou para uma geração de pessoas mais idosas. É para todos, em todo o tempo, em toda a parte. É possível que no passado as comunidades dessem a ideia de uma maior vivência do cristianismo, mas sabemos também que muitas vezes era pelo medo infligido, pela superstição, pela imposição social, pois todos iam à Missa, todos se confessavam pelo menos na "desobriga", todos comungavam ao menos uma vez ao ano, todos casavam pela Igreja e se alguém não ia e não seguia o padrão era olhado de lado e falado abertamente.
As comunidades cristãs estão mais frágeis? Talvez. Não há tanta regularidade? É possível.
Por um lado, o compromisso com a comunidade parece mais esbatido e menos "obrigatório", correspondendo à tendência cultural e social do tempo. Primeiro há que atender às necessidades pessoais, resolver os problemas caseiros e a vida em família, tratar da profissão e, então e se ainda houver tempo, vamos à Missa ou a outras atividades pastorais que a Igreja proponha. Esquecemos que também somos Igreja, somos membros deste Corpo de Cristo, onde todos somos necessários e onde a falta de um prejudica todo o corpo.
Por outro lado, os que estão, estão mais conscientemente, sem tantos medos ou preconceitos ou pressões culturais, familiares ou sociais. Vão porque acham importante, porque se sentem bem, porque tomaram consciência da sua pertença à comunidade paroquial. Isto não significa que os pais, a família não deva incentivar os filhos e, num primeiro momento, como para a escola, não devam levá-los com eles. Pelo contrário, quando maior a consciência da pertença à comunidade, mais responsabilidade. Há pais que nunca deixam de ir, de participar. Mães que levam os filhos na barriga, ao colo, pela mão... mais tarde será mais fácil os filhos irem pelo próprio pé. Se os pais não arranjam desculpas fáceis para não ir, mas vão a todo o custo, deixando outros afazeres, é possível que os filhos tomem consciência do quão importante é a fé e a vida em comunidade.
4 – Não é fácil ser cristão. Ser cristão não é para as elites, não é para um grupo de puros, já santos, já convertidos. Ser cristão implica-nos por inteiro, em todas as situações. Não somos cristãos apenas quando nos apetece, quando dá jeito. Mas o tempo todo. O sacramento do Batismo é indelével, isto é, transforma-nos em novas criaturas para Jesus Cristo e, com Ele e n'Ele, a favor dos outros. Estamos todos a caminho, com as nossas fragilidades, com o nosso pecado, confiando sempre na misericórdia de Deus e na Sua complacência para connosco. Por isso nos dá Jesus, o Seu Amado Filho, que Se mistura connosco e nos ensina a caminhar para o Pai, confiando, colocando o nosso olhar, o nosso coração e a nossa vida sob o olhar e a proteção de Deus.
O caminho de Jesus é exigente. Não é uma exigência exterior, forçada, imposta. É uma exigência que decorre do seguimento. Se somos de Cristo, então ajamos como Ele. Viver em lógica de serviço e cuidado aos demais, como o último de todos, colocando os outros à frente, não é um processo fácil. Exige vigilância, consistência, insistindo uma e outra vez. É o caminho das bem-aventuranças em que nos colocamos em dinâmica de compaixão, de ternura, de caridade.
Bem-aventurados os pobres em espírito, os humildes, os que choram, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os puros de coração, os que promovem a paz, os que sofrem perseguição por amor da justiça. É deles o reino dos Céus, serão eles e seremos nós, a transformar, a renovar a terra e as relações entre pessoas e povos. «Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa».
Jesus Cristo foi injuriado, julgado, morto. Os discípulos, desde a primeira hora, também o foram. E assim tem sido ao longo da história da Igreja. É, com efeito, um critério pelo qual poderemos aferir a fidelidade a Cristo na Igreja. A honestidade, o serviço, a denúncia das injustiças, da corrupção, a opção pela verdade, acarreta a perseguição e a maledicência e, muitas vezes, uma vida sacrificada. Há pessoas, em alguns países, que perdem o emprego por serem cristãos e o afirmarem publicamente. Isto acontece mesmo em países ditos do primeiro mundo. Mas é uma opção que nos realiza e nos santifica na medida em que nos agrafa a Jesus Cristo.
5 – Com Jesus Cristo, Deus renova todas as coisas. Com a Sua morte e na Sua ressurreição, também nós fomos santificados. Ele morreu e ressuscitou por mim e por ti. Agora sou eu e tu, somos nós, que devemos morrer/viver pelos outros, não em substituição, mas em serviço, cuidado, dedicação. Há mais alegria em dar do que em receber. A santidade é o caminho de todo aquele que quer imitar Jesus Cristo. A santidade é esta capacidade, esta disponibilidade, de vivermos como pessoas, levando a sério a nossa humanidade e na certeza que o bem que fizermos também nos beneficia. Procurar ser santo é procurar ser feliz. E só somos verdadeiramente felizes com os outros.
Pe. Manuel Gonçalves
Textos para a Eucaristia (C): Ap 7, 2-4. 9-14; Sl 23 (24); 1 Jo 3, 1-3; Mt 5, 1-12a.
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