JOSEPH RATZINGER/BENTO XVI (2019). Por Amor. Cascais: Lucerna. 144 páginas.
Quando uma criança agarra um brinquedo dos irmãos, de algum amigo ou num centro comercial, é muito difícil convencê-la a largar o brinquedo, mesmo que tentem dar-lhe um melhor. Há tantas pessoas que continuam agarradas ao brinquedo que a comunicação social vendeu acerca do Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI. Muitos tiveram a oportunidade de corrigir a imagem que lhes tinham vendido, muitos continuam a fazer birrice, e daí também a necessidade de contrapor a humildade e bondade do atual Papa Francisco ao distanciamento e reserva de Bento XVI. Claro que são diferentes, mas a bondade, a simplicidade, a humildade e a sabedoria são características agrafadas à personalidade dos dois Papas. Mesmo no tempo em que era Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, quando recebia alguém, era sempre atencioso, delicado, com um trato familiar, próximo, direto, simples. Não deixava de ser amável, mesmo que houvesse desencontro de ideias. Uma das biógrafas do atual Papa Francisco, refere que quando o então Cardeal Jorge Mario Bergoglio ia ao Vaticano, o também Cardeal Joseph Ratzinger (Bento XVI) era dos poucos que o tratava de igual para igual, sem tiques de superioridade, mas como a um irmão!
Neste pequeno livro que hoje sugerimos - Por amor - publicado pela Lucerna, vem ao de a humildade do pastor, a simplicidade do padre, a sabedoria do teólogo, a fé do cristão, a melodia da mensagem cristã, a ternura maternal de Maria, a luz do Evangelho, a compaixão de Jesus. 24 homilias (inéditas, pelo menos no facto de serem publicadas em livro, como um conjunto) que vão do ano 1978 a 2003, portanto antes de ser eleito Papa. Muitos dos textos são anteriores à sua nomeação para Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé. Cada reflexão é uma pérola. Não adianta tentar explicar a alguém que não quer, à partida, compreender. Para sacerdotes – como eu e outros – que já fizeram muitas homilias e tenham ouvido outras tantas, aprendemos sempre com o Cardeal Ratzinger. Há sempre apontamentos e leituras novas. Quando se lê, fica a ideia: como é que não me lembrei disto?
Nota-se que os textos foram preparados como homilias, tem um tom muito reflexivo, pastoral, dialogante com a assembleia celebrante. Como curiosidade, há uma reflexão/mensagem na bênção de tratores, numa interessante interpretação do que é a bênção e a razão de benzer "máquinas", e há também a homilia do então Cardeal, em Fátima, em 13 de outubro de 1996.
Também através dos textos nos aproximamos de quem os escreve. Vejamos uma ou outra passagem:
"Ser cristão é passar da morte para a vida. O cristianismo é portanto um movimento, um caminho; não é uma teoria, nem um conjunto de doutrinas; o cristianismo é vida, é um impulso vital que nos leva à verdadeira vida e, por conseguinte, abre também os nossos olhos para a verdade, que não é pensamento puro mas força criadora fundamentalmente idêntica à caridade... a vida humana é, segundo a sua tendência natural, um caminho em direção à morte... 'Nós sabemos que passámos da morte para a vida'... o que é a vida? ... o amor é vida. O amor é síntese, a morte é dissolução. Quem encontrou o amor pode dizer: 'encontrei a vida'. A inversão do processo da morte, numa passagem para a vida, realiza-se na conversão da cupidez ao amor. O cristianismo é a conversão ao amor divino e, portanto, ao amor fraterno e, por conseguinte, passagem da morte para a vida".
"Só o amor conhece o amor... o amor faz ver, e faz amar"
"Em Maria, o Antigo Testamento torna-se Novo, a esperança transforma-se em cumprimento, em realidade concretizada. Ela é o advento em pessoa, isto é, o templo vivo em que Deus habita corporalmente. O sim de Maria é o momento em que o Antigo testamento se torna Novo: este sim é a porta através da qual Deus entra no mundo... Maria pode acreditar porque ama. Eva, por seu turno, perde a fé na Palavra de Deus e experimenta o contrário, no momento em que abre o seu coração à suspeita de que Deus talvez não fosse inteiramente bom. Envenenada por esta suspeita, procura a sua felicidade, colocando-se contra Deus, teme que Deus seja o adversário que a impede de ser livre, e foge da presença de Deus... O diálogo entre o Anjo e a Virgem conclui-se não só com uma profissão de fé, mas com o ato de submissão: «Eis a servas do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). A Palavra de Deus não é só informação, comunicação da verdade; esta Palavra é missão, é mandato. A fé tem uma consequência prática: transforma a vida por completo. Deus tem necessidade de Maria, do seu sim, da sua obediência. A fé só é completa se se tornar obediência concreta ao mandato divino. Deus espera o nosso sim, espera a fé que se torna vida, na transformação da nossa vontade até à plena conformidade com a Sua vontade... a fé tende a ser comunicada. A fé é dinâmica, coloca-nos em movimento em direção aos outros... Ninguém crê só por si. Todos devem testemunhar com a sua vida a fé..."
"Um dos costumes mais antigos da liturgia cristã é um pequeno gesto no início da preparação dos dons. Deita-se uma pequena gota de água no cálice com vinho. A origem deste gesto remonta simplesmente ao velho costume dos países mediterrâneos que não tinham hábito de beber vinho puro. Por esta gota de água estamos assim ligados à origem da Eucaristia: fazemos o que Jesus Cristo fez... A mistura da água e do vinho surgiu como uma interpretação para o grande mistério de que fala o Natal: o tornar-se um só do Homem com Deus, Cristo, em quem se dá a admirável troca. Deus assume a natureza humana para que o Homem possa participar da natureza de Deus. A pobre gotazinha de água, que cai no vinho delicioso e forte, representa a Encarnação de Deus. O pobre humano é mergulhado no oceano da divindade. No coração de Deus está o Homem... Regressemos uma vez mais á gota de água no vinho destinado à Eucaristia! Ele representa o facto de Deus e o Homem se tornarem um só em Cristo. Mas é também a orientação muito prática para o dia de hoje. Deixemo-nos simplesmente mergulhar no abismo de Deus, no vinho do seu amor!"
"Não é possível estar junto da Cruz, junto dos mistérios da nossa redenção, sem estar também junto de Maria. É aqui que Maria se torna Mãe da Igreja. A Igreja nasceu no momento em que Jesus viu a sua Mãe e, ao lado dela, o discípulo que Ele amava… Tudo está consumado a partir do momento em que o discípulo «recebe» Maria «em sua casa»... Maria conduz-nos à Cruz. A presença eucarística do Senhor provém da Cruz. Não é possível aproximar-se de Jesus evitando a Cruz... O discípulo torna-se o filho, torna-se naquilo que é Jesus. Esta admirável identificação é o fruto do amor crucificado. Essa identificação, porém, torna-se realidade quando o discípulo «recebe» Maria «em sua casa». A comunhão com a Mãe é o caminho para a união com Jesus, o caminho da santa transformação. A Igreja nasce no momento em que, do alto da Cruz, o discípulo é confiado à Mãe... O facto de Maria ser recebida pelo discípulo em sua casa comporta dois aspetos. Por um lado, o discípulo de Jesus torna-se também discípulo da Mãe. Ele aprende a ser filho na escola da Mãe. Com a Mãe, ele aprende as palavras guardadas e ponderadas no coração materno. Com Maria, aprende não só as palavras, mas também o significado do silêncio de Jesus, o silêncio de 30 anos em Nazaré, o silêncio da sua origem eterna no regaço do Pai. Com a Mãe, que é a Igreja em pessoa, ele aprende a ser Igreja. A escola da Mãe é condição indispensável para se tornar filho, para reconhecer o Pai. Por outro lado, Maria é confiada ao discípulo: «Ele recebeu-a em sua casa». Santo Agostinho comenta a propósito desta passagem que o discípulo, tendo deixado tudo, não pode receber a Mãe em sua morada física - em «sua casa»... Ele «recebe-a» realmente «na sua intimidade», no seu ser, no seu pensamento e na sua vida".
Quando Jesus esteve na Terra… escolheu o último lugar. Nasceu num estábulo. Viveu como trabalhador no meio dos pobres de Israel. Ensinou no meio dos publicanos, dos pecadores, dos desprezados. Reuniu pescadores à sua volta. E morreu fora dos muros da cidade, entre dois criminosos. A verdadeira imagem de Deus revela-se precisamente nisso, porque o verdadeiro Deus não é um tirano que exerça o poder como Lhe apetece, que Se apresente fechado em Si mesmo para se afirmar. O verdadeiro Deus é o amor trino que se oferece…
Na Ceia do Senhor, vemos acontecer o que também acontece no banquete com os fariseus por causa dos primeiros lugares. Os evangelistas contam-nos que, na Última Ceia, os discípulos discutiram por causa do primeiro lugar (Lc 22, 24-30). Com este seu comportamento, mais uma vez, representam entre eles, em ponto pequeno, por assim dizer, o drama da história universal. Com isso, O Evangelho quer dizer-nos que também na Igreja há mundo. Não deve ser para nós motivo de espanto que a Imagem da história universal também atinja o âmago da Igreja, podendo chegar até ao mais sagrado, até à Eucaristia. A isso, no entanto, o Senhor contrapõe a inversão de valores que que é Ele próprio. Sobre o Seu lugar na Última Ceia, Ele também já decidiu. O seu lugar não é o lugar do Senhor, o lugar do poderoso, o lugar das tigelas cheias ou o mais confortável. Ele nem sequer Se senta com o grupo; pelo contrário, anda de um lado para o outro como o servo e, em especial, Se dá a Si mesmo.
É este o significado do relato lava-pés de São João. O Senhor lava os pés dos discípulos da sujidade e do suor do dia-a-dia para que eles possam sentar-se à mesa. João, mais ainda do que os outros evangelistas, afirma claramente que não se trata aqui de um ato moral isolado. Ao longo de toda a sua vida, o próprio Senhor é o ato do lava-pés para connosco. A sua natureza consiste em baixar-Se; Ele é, na sua essência, humildade, porque o facto de Ele, o Filho de Deus, existir enquanto homem deve-se a Ele ter tirado a túnica da Sua glória e Se ter cingido com o linho grosseiro da natureza humana. E, agora, ajoelha-Se diante de nós, as suas criaturas. Ele lavou-nos, limpou-nos com o Seu próprio corpo, através do Seu sofrimento, do fedor da nossa soberba e da sujidade do nosso egoísmo, a fim de podermos sentar-nos à mesa do banquete do amor de Deus.«Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz vós façais também» (Jo 13, 15). Esta frase é mais do que uma exortação moral à prática de atos morais. É a razão de ser cristão, uma iniciação à comunhão com Jesus Cristo que tem a humildade de Se baixar. Só conseguiremos identificar-nos com Ele se entrarmos nesse movimento, se nós próprios nos tornarmos humildes. Não é possível acreditar sem humildade. Sem humildade, não é possível sequer afirmar o mistério no meio do mundo que não O reconhece, nem aceitar até ao limite do nosso entendimento o caráter insondável de um Deus que Se ajoelha diante de nós. E, assim como não há fé, também não há amor sem humildade. Todos sabemos que amar implica ser capaz de engolir algumas coisas e calar outras tantas e ainda suportar a humilhação. O amor só subsiste envolto numa enorme humildade. E como, sem fé e sem amor, o Homem não tem por que ter esperança, e a fé e o amor não podem existir onde não há humildade, esta última é também a condição indispensável para a nossa esperança.
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