sábado, 27 de dezembro de 2014

Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José

       1 – Quando uma criança nasce é, ou deveria ser, um DOM, uma bênção para toda a família e para a comunidade. Quando as crianças escasseiam em muitas das nossas aldeias, quando o país e a Europa estão a envelhecer muito rapidamente, com uma taxa de natalidade cada vez mais baixa, a atenção, o cuidado e as medidas de apoio que favoreçam a natalidade e facilitem o papel das famílias, são já não uma exigência mas uma obrigação e um compromisso de todos, a começar pelos que lideram os destinos das nações.
       Os tempos não são fáceis. É verdade. Antigamente havia muitas mais dificuldades, dizem os mais idosos, sublinhando que não é tanto por falta de condições como por um excesso de comodismo e por se tentar eliminar todas as dificuldades que possam advir na generosidade para com novas vidas. Hoje há outras exigências. Há mais exigências e há menos paciência, menos predisposição para encarar sacrifícios.
       Casamentos feitos à medida do interesse imediato, desistência às primeiras dificuldades, famílias mais reduzidas, os mais velhos vão sendo dispensados de contribuir para o amadurecimento dos membros mais jovens. Mobilidade social e cultural: os filhos radicam-se em outras paragens e em outros valores.
       Lógica atualíssima de viver bem a juventude, gastar a vida enquanto é tempo. Experimentar tudo, antes dos compromissos duradouros. O nascimento do primeiro filho é retardado ao máximo, para quando já não houver energias para andar em farras, ou quando a urgência da idade o impõe, ou quando as condições económico-financeiras são ideais. O medo de assumir compromissos mais estáveis, no matrimónio e na procriação. O ambiente sugere relações frágeis e breves que não permitem assentar.
       E tantas outras situações que merecem preocupação: famílias monoparentais, que se multiplicam, reconstituição de novas famílias, com crianças de matrimónios ou compromissos anteriores.
       2 – Há, contudo, muitos outros testemunhos de fidelidade, de perseverança, de generosidade, de famílias que incluem e valorizam os mais novos e os mais velhos, com ambientes favoráveis à comunicação de valores, da cultura e da vida.
       Sublinhe-se que a vida das famílias (como das pessoas) não linear, branco e preto, é multicolor. Aqui, como em outras situações, não poderemos separar em absoluto famílias boas de famílias más; famílias felizes de famílias infelizes. Obviamente, que o desafio é que as famílias, estruturadas de diversas maneiras, sejam (em crescendo) espaço de afetos em que seus membros se amam, se respeitam e se apoiam mutuamente. As famílias felizes são iguais, as famílias tristes são originais, seguindo o pensamento de Tolstoi, pois cada família vive as dificuldades à sua maneira, ajuda contar com os outros e com a família.
       Ao celebrarmos hoje a Festa da Sagrada Família de Nazaré deparamo-nos com uma referência de família que não está isenta de perigos e de dificuldades. A gravidez de Maria está envolta em mistério que poderia ter provocado uma desgraça, não fosse a ponderação de José. Quando sobem ao Templo para apresentarem Jesus ao Sumo-Sacerdote, logo o Velho Simeão os abençoa e alerta para o que lá vem: «Este Menino foi estabelecido para que muitos caiam ou se levantem em Israel e para ser sinal de contradição; – e uma espada trespassará a tua alma – assim se revelarão os pensamentos de todos os corações».
       Algum tempo depois, José terá que pegar em Nossa Senhora e no Menino e afastar-se da Sua terra para outra onde possam viver em segurança. Algum paralelismo com os nossos dias: tantas pessoas e famílias que têm de se afastar da sua terra para procurar melhores condições de vida, ou fugindo à perseguição. O futuro nunca é totalmente certo, mas há que confiar. A bênção de Deus não nos livra dos perigos, mas garante que Deus nos levará além de todas as dificuldades. Como já referido muitas vezes, a criança que cai e se magoa sabe que fica com a ferida e com as pernas marcadas, mas a presença, o consolo e a segurança que encontra nos pais permite-lhe levantar-se e fazer finca-pé contra a dor.
       3 – Oito dias depois do nascimento de Jesus, Maria e José cumprem a tradição de circuncidar o Menino, levando-O ao Templo. Por aqui também se conclui que Aquele Menino não é um privilegiado que esteja acima ou fora da Lei. N'Ele se cumpre toda a justiça. Em tudo igual a nós, exceto no pecado. Vem para viver humanamente.
       Fácil imaginar as famílias cristãs a preparar tudo para batizar um novo membro, passados alguns dias, ou semanas, ou meses do nascimento. Para quê adiar o que achamos uma bênção, uma graça de Deus. Logo nos primeiros meses também “obrigamos” os filhos a ir à escolinha!
       No Templo surgem duas figuras importantes: Simeão e Ana. Simeão é impelido pelo Espírito Santo para ir ao Templo receber a família de Jesus. Como testemunha, cumpre-se uma promessa que Deus Lhe havia feito de que não morreria sem ter visto a Salvação: «Agora, Senhor, segundo a vossa palavra, deixareis ir em paz o vosso servo, porque os meus olhos viram a vossa salvação, que pusestes ao alcance de todos os povos: luz para se revelar às nações e glória de Israel, vosso povo».
       Ana, filha de Fanuel, uma viúva que encontrou no Templo e na fidelidade a Deus o sentido para a sua vida. "Não se afastava do templo, servindo a Deus noite e dia, com jejuns e orações". E também ela é instrumento de Deus: "começou também a louvar a Deus e a falar acerca do Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém".
       Nestas duas figuras o reconhecimento dos mais idosos e da sua missão importantíssima de nos guiarem para o futuro. Uma família ou um povo sem história desaparecerá muito rapidamente. Uma árvore que não tem raízes acabará por morrer às primeiras dificuldades.
       4 – As diversas leituras dão-nos a receita para que em família possamos construir um tempo novo, construindo um mundo saudável, fraterno, solidário, humano.
       A primeira leitura fala-nos do Mandamento divino. Deus "ordena" o que nos faz bem, o que nos ajuda a crescer e a descobrir o outro como bênção, como auxiliar, carne da minha carne, osso dos meus ossos. "Quem honra seu pai obtém o perdão dos pecados e acumula um tesouro quem honra sua mãe. Quem honra o pai encontrará alegria nos seus filhos e será atendido na sua oração... Filho, ampara a velhice do teu pai e não o desgostes durante a sua vida. Se a sua mente enfraquece, sê indulgente para com ele e não o desprezes, tu que estás no vigor da vida, porque a tua caridade para com teu pai nunca será esquecida e converter-se-á em desconto dos teus pecados".
       E o que se diz dos filhos em relação aos pais, pode dizer-se do nosso compromisso com os outros. Tudo o que fizermos ao mais frágil dos irmãos é ao próprio Deus que o fazemos. É, aliás, esse o critério do Juízo Final, seremos julgados e acolhidos pelo bem que fizemos e pelo amor com que vivemos.
       O Apóstolo São Paulo, na segunda Leitura, di-lo de forma muito sugestiva e clarividente: "Como eleitos de Deus, santos e prediletos, revesti-vos de sentimentos de misericórdia, de bondade, humildade, mansidão e paciência. Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se algum tiver razão de queixa contra outro. Tal como o Senhor vos perdoou, assim deveis fazer vós também. Acima de tudo, revesti-vos da caridade, que é o vínculo da perfeição. Reine em vossos corações a paz de Cristo, à qual fostes chamados para formar um só corpo. E tudo o que fizerdes, por palavras ou por obras, seja tudo em nome do Senhor Jesus, dando graças, por Ele, a Deus Pai".
       A referência e o centro é Jesus Cristo, no Seu jeito de ser e de amar e de viver. Como Ele nos amou, amemo-nos uns aos outros, como Ele nos perdoou, perdoemo-nos mutuamente. Tudo quando fizermos seja para louvor do Senhor. Os maridos em relação às esposas, estas em relação aos maridos; os pais para com os filhos e estes para com os pais. Usar de tolerância, de ternura, apostar no outro, mesmo quando temos razões para duvidar, não apenas porque é nosso igual e também nós somos frágeis como o barro, mas por Deus. "Feliz de ti, que temes o Senhor e andas nos seus caminhos". Os caminhos do Senhor aproximam-nos, irmanam-nos em Cristo Jesus.
       5 – Se a referência é Jesus Cristo, então teremos que imitá-l’O. Quando cumpriram as prescrições do Templo, Maria e José regressaram a sua casa, e "o Menino crescia, tornava-Se robusto e enchia-Se de sabedoria. E a graça de Deus estava com Ele".
       Confiemos as nossas intenções, a nossa vida, as nossas famílias a Deus. E quando as coisas não estiverem a correr tão bem, não desesperemos, entreguemo-nos ainda mais nas mãos de Deus para crescermos em sabedoria e graça aos olhos do Senhor, tornando-nos mais robustos para enfrentar os escolhos, na certeza alegre que Deus segue connosco pela estrada fora.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano B): Sir 3, 3-7. 14-17a; Sl 127 (128); Col 3, 12-21; Lc 2, 22-40.

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