sábado, 24 de janeiro de 2015

Domingo III do Tempo Comum - ano B - 25 de janeiro

       1 – "A glória de Deus é o homem vivo; e a vida do homem é a visão de Deus". Esta afirmação pertence a Santo Ireneu, Bispo e Mártir (nasceu por volta do ano 130 e foi morto no ano 200). Quando nos confrontamos com a prática religiosa, com as vivências crentes, a partir de fora, vêm ao de cima exigências, sacrifícios, renúncias. "Porque vais à Missa? Vem daí, vamos tomar um café, deixa lá a Missa, podes ir noutros dias. Com este tempo, já viste o sacrifício que vais fazer?"
       Uma visão utilitarista da religião, num ambiente consumista, onde domina a liquidez de ideias e de convicções, o bem-estar a qualquer preço, eliminando tudo o que possa cheirar a esforço, a persistência, a paciência. Desde logo se diga que a vida é multicolor, e não apenas a preto e branco, luz e trevas, deserto e oásis, é uma paleta de cores, com matizes diferentes conforme as circunstâncias que nos envolvem. Até a chuva e o sol alteram a nossa interação com os outros.
       Hoje, a Palavra de Deus traz-nos, envolvendo-nos, provocando-nos, um forte apelo à conversão. A Bíblia faz assomar violências e ódios, conflitos e disputas, guerras e vinganças. E, no entanto, entrelaça-nos em histórias de bênção, de aliança, de amizade, histórias de luta, de compromisso, de vida e de esperança, de luz. Algumas tramas fazem-nos pensar que Deus é "vingativo" quando não cumprimos, quando nos desviamos e transviámos. A dualidade da aliança: Deus ama-nos se vivermos segundo as Suas leis. Numa leitura rápida e superficial somos levados a olhar para Deus como um Ser caprichoso, cioso, que nos castiga à primeira falta. É, aliás, uma conceção que ainda voga nas nossas comunidades, em muitos cristãos.
       Uma leitura mais atenta, generosa, abrangente da Bíblia, põe em evidência Deus como criador e redentor. Está presente em todos os momentos da nossa vida e da nossa história, sobretudo nas adversidades, na míngua, no exílio e até na morte. A Sua maior glória é o Homem vivo, feliz. Cumprir os Mandamentos é garantia que nos tornamos mais irmãos, mais próximos, mais felizes connosco e com os outros. Deus ama-nos primeiro e sem condições prévias ou reservas futuras.
       2 – Entremos agora no Evangelho de São Marcos que nos faz escutar as primeiras palavras de Jesus. Antes, a voz do Pai que dá testemunho acerca de Jesus. Depois, a voz de João Batista que nos aponta o Cordeiro de Deus. Hoje é Cristo que em definitivo assume a missão de evangelizar o mundo.
       Depois de João Batista ter sido preso, Jesus parte para a Galileia, a Galileia dos gentios, onde se cruzam crenças e nacionalidades, numa abertura original a todos os que buscam e se deixam interpelar. A salvação está agora acessível a todos, está ao nosso alcance. Jesus vem à nossa aldeia, à nossa vida. É para nós que Ele dirige a Sua pregação: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
       Com Jesus, o tempo cumpre-se, chega ao seu fim. O reino está próximo, está no meio de nós, Jesus abre-nos os Céus. É Ele verdadeiramente o reino de Deus, a vida de Deus, a comunhão que nos enlaça para sempre. Podemos viver já sob o olhar amoroso de Deus, sob a Sua luz. Jesus vem porque Deus nos quer, Deus nos quer bem, nos quer vivos, nos quer verdadeiramente humanos, refletindo-O em nós, não por capricho Seu, mas para felicidade nossa.
       Caminhando junto de nós, junto do mar da Galileia, Jesus repara em nós. Vê-nos com olhos de ver, com o coração. Lançamos as redes ao mar! Quantas vezes andamos à pesca, à procura, sem saber onde encontraremos bom peixe, se a maré nos trará a fortuna ou a desgraça! A Simão e a André e a nós, Jesus lança o desafio: «Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens».
       Eles deixam tudo, muito rapidamente, e seguem Jesus. Mais adiante, vê também Tiago e João, filhos de Zebedeu, que consertavam as redes. Jesus chama-os e também eles largam os seus afazeres e seguem-n’O. Serão pescadores de homens, preparam-se para ajudar a consertar o mundo, a história, a vida, contribuindo para que o tempo se cumpra para todos.
       3 – Página belíssima e luminosa nos traz o livro de Jonas. Também Jonas é chamado por Deus. A missão para o qual é enviado não se afigura muito fácil. É enviado a outra Galileia dos gentios, a uma nação estrangeira, a Nínive. Um povo que não é o seu, mas que Deus quer salvar: «Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive e apregoa nela a mensagem que Eu te direi». Para Jonas o melhor seria que Deus fizesse o favor de quanto antes destruir a cidade. Recusa-se, inclusive, a dirigir-se àquela povoação para cumprir a missão que lhe está confiada. Jonas, contrafeito, engolido por uma baleia, desembarca em Nínive para que a vontade de Deus se realize.
       O autor dá-nos a informação preciosa de que Nínive era uma grande cidade, em extensão, mas sobretudo aos olhos de Deus. A mensagem é direta: «Daqui a quarenta dias, Nínive será destruída». Jonas intuiu a bondade de Deus e daí a recusa em anunciar o castigo. Percebe que se avisar os ninivitas estes podem ter tempo de se converter. Ainda assim não pôde fugir à sua missão.
       A pregação surte efeito, "Os habitantes de Nínive acreditaram em Deus, proclamaram um jejum e revestiram-se de saco, desde o maior ao mais pequeno. Quando Deus viu as suas obras e como se convertiam do seu mau caminho, desistiu do castigo com que os ameaçara".
       Vendo bem, o propósito de Deus, nesta como outras páginas da Escritura e da história, não é eliminar pessoas, mas eliminar o pecado, o mal, o que é diabólico, ou seja, o que nos afasta dos outros ou nos coloca contra eles. Há lugar para todos. O castigo é preparado por nós. Quando cada um só se preocupa com o seu umbigo, mais tarde ou mais cedo, a comunidade deixa de existir.
       No seguimento da leitura, vemos um Jonas revoltado, mal-humorado, levando-se demasiado a sério. Para Ele Deus deveria cumprir com o desiderato original e destruir a cidade, independentemente do número de pessoas que perecesse. "Por isso é que, precavendo-me, quis fugir para Társis, porque sabia que és um Deus misericordioso e clemente, paciente, cheio de bondade e pronto a renunciar aos castigos" (Jn 4, 2). Vendo que Deus não cumpre com (o que Jonas julgava ser) o prometido, manifesta-se desencantado e quer que Deus lhe dê a morte, já que a não deu aos ninivitas. A reposta de Deus é eloquente. Jonas descansa debaixo de um ricínio, que nasceu da noite para o dia, mas que morre do mesmo jeito. Jonas lamenta-se de novo. Chega a resposta de Deus: «E não hei de Eu compadecer-me da grande cidade de Nínive, onde há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem distinguir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda, e um grande número de animais?» (Jn 4, 11).

       4 – São Paulo segue de perto a missão do contrariado Jonas e sobretudo a missão do convicto Jesus. À comunidade de Corinto e às nossas comunidades:
"O que tenho a dizer-vos, irmãos, é que o tempo é breve. Doravante, os que têm esposas procedam como se as não tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que andam alegres, como se não andassem; os que compram, como se não possuíssem; os que utilizam este mundo, como se realmente não o utilizassem. De facto, o cenário deste mundo é passageiro".
       O tempo é breve. Demasiado breve. É urgente que cumpramos o nosso tempo, preenchendo-o com o melhor de nós, com o que perdura para lá deste mundo, iniciando já a realeza de Jesus. Se é Ele que age em nós, é possível que todos os esforços valham a pena.
       A conversão é a condição de todos os que se abrem à graça de Deus, mendigando o amor de Deus, deixando-Se iluminar pela Sua benevolência.
       Na conclusão do Oitavário de Oração pela Unidade dos Cristãos (18 a 25 de janeiro), coincidindo com a conversão de São Paulo, a evidente certeza que todos precisamos de nos converter a Jesus Cristo, bebendo do mesmo caudal de água viva que jorra d’Ele e nos sacia até à eternidade.

       5 – Jonas, Jesus, São Paulo, mostram-nos a conversão como caminho para Deus, cientes da Sua misericórdia infinita, mas que promove a nossa liberdade, as nossas escolhas.
       Do mesmo jeito, o salmista nos convoca à oração, respondendo à Palavra de Deus:
"Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos, / ensinai-me as vossas veredas. / Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me, / porque Vós sois Deus, meu Salvador. / Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias / e das vossas graças, que são eternas. / Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência, / por causa da vossa bondade, Senhor".
       A oração é-nos favorável, inicia com a certeza confiante da bondade de Deus. Cabe-nos, no seguimento, a predisposição para nos convertermos a Ele de todo o coração, para que a nossa vida prossiga até à eternidade, comunhão plena com Ele e com os irmãos, visualizável na partilha solidária e na comunhão fraterna.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano B): Jonas 3, 1-5. 10; Sl 24 (25); 1 Cor 7, 29-31; Mc 1, 14-20.

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