NUNO TOVAR DE LEMOS, s.j. (2019). Eugénia Kraft. Braga, Editorial Frente e Verso. 224 páginas.
Trinta anos para escrever um livro.
Muito tempo para refletir, ponderar, amadurecer ideias e conceitos, para acolher contributos, experiências, para viver histórias, para testemunhar a vida, os sonhos, a evolução dos tempos, o amor, a amizade, a solidariedade, o sentido da vida, mas mudanças.
É assim que o sacerdote jesuíta, Pe. Nuno Tovar de Lemos, no posfácio, fala da cronologia de um livro que foi escrevendo, partilhando páginas, acolhendo sugestões, deitando fora páginas, limando a linguagem e a narrativa. O ponto de partida permaneceu: o personagem principal, Tiago, vai perder todas as memórias. Uma doença rara, da qual só percebe a palavra Kraft, atribuindo-lhe, então, um nome próprio, Eugénia. Eugénia significa "bom nascimento", quando o fio condutor deste romance é recomeço(s). Ao longo de trinta anos o texto é refeito por completo, à exceção do ponto de partida.
A personagem principal, Tiago, vai ao médico, um neurologista, para saber o resultado dos exames, nomeadamente TAC's que fez à cabeça, depois de ter descoberto um alto na cabeça, seis meses antes, pelo barbeiro. O neurologista informa-o de uma doença que não mata, mas que provocará a perda de memória, mais de 40 anos de vida que passam à história. Será como acordar de manhã em Tóquio sem saber como foi lá parar, sem conhecer ninguém, sem saber como lá chegou e tendo que explorar tudo como se fosse a primeira vez.
Haverá, contudo, uma informação básica que não perderá, a memória associada às funções básicas e primárias. Será bastante ignorante mas basicamente autossuficiente. A partir daqui decide colocar por escrito vivências, informações que irá precisar para saber quem é, quais os amigos que tem, o que faz, o que lhe pertence, números de contas e os momentos mais importantes da sua vida. Quando a "Eugénia" chegar, terá de começar de novo a construir memórias. O que será essencial nessa nova fase da vida? Então, ao rever aquilo que quer guardar começa já a mudar, a perceber quem são os verdadeiros amigos a preservar, com quem pode contar. E se a "eugénia" não aparecer? Há 20% de hipótese de tal não suceder. De qualquer forma o melhor é contar com isso! E porque esperar dois meses, porque não mudar já? "Um começo novo. Este recomeço há de certamente implicar aceitar perder muitas coisas para serem possíveis outras novas: novas ideias, novas maneiras de estar na vida, novos gostos, novos objetivos, novas maneiras de olhar para mim, novas compreensões acerca do que é a vida e o que estamos cá a fazer".
Uma das vivências que não pode esquecer: a Flowers. Legalmente ainda é a sua mulher, embora estejam separados. Na nova vida, precisa de alguém. Egoísmo, talvez! Mas talvez esteja no momento de corrigir o que falhou, a vida mais ou menos superficial, as saídas noturnas e as bebedeiras. A reaproximação a Flowers vai levá-lo a perceber a amizade e o amor, mas também o que é a fé e o amor aos outros.
Algumas expressões para refletir:
"o amor não era uma bengala onde nos apoiamos mas umas asas que nos permitem voar mais alto"
"Não é tapando buracos que se recomeça. Uma outra relação pode, eventualmente, ajudar a dar um impulso inicial de confiança mas recomeçar é um assunto estritamente pessoal. Recomeçar. acho eu, implica aprender a abraçar a própria solidão e a aprender a viver assente sobre os próprios pés em vez de se tentar agarrar a outra pessoa para poder ficar de pé. Mesmo que se tenha um companheiro ou companheira, há muitas coisas na vida que temos de viver sozinhos... a solidão é abraço entre nós e a verdade".
"Quando uma pessoa está a nadar num rio e é apanhada num remoinho, não deve tentar nada para a superfície porque não conseguirá sair e vai esgotar as suas forças. O que a pessoa deve fazer - curiosamente - é nadar para o fundo. Porquê? Porque a porta de saída está precisamente no vértice do cone invertido, no fundo do remoinho".
"Vou abraçar a minha solidão e tirar partido dela sem andar a mendigar migalhas afetivas de outras pessoas"
"É muito mau adiar coisas importantes. Achamos que temos sempre tempo. Claro, há sempre tantas coisas a fazer que o tempo não chega. Mas o tempo chega sempre para aquilo a que damos prioridade. O problema não é a falta de tempo; o problema é termos prioridades trocadas."
"Não só por amor das pessoas a quem te dás mas por amor de alguém invisível que te ama como ninguém. E imagina que sabes que em cada gesto de amor na terra está a antecipar um abraço eterno no Céu. E uns dias são fáceis, outros difíceis; uns dias consegues, outros não consegues; uns dias percebes, outros não percebes. Mas sabes que é por aí o caminho e sentes a paz das coisas certas. E depois, quando caia, Alguém te levanta para que possas recomeçar a viagem e voltar a amar".
"Quando tempo é preciso para uma pessoa ser alguém? O tempo que precisar para aceitar que não é ninguém".
"Mais vale um garrafa cheia que uma pessoa vazia"
Deus... "diz-te para olhares para a frente, que o melhor está para vir; convida-te a seguires a tua consciência e não as expetativas dos outros ou o 'politicamente correto'; inspira-te grandes ideais que te fazem sonha alto. Aponta-te alternativas originais, sempre. E quando ficas enredado na culpa dá-te o perdão, que é a força para recomeçares... tudo na fé tem a ver com recomeçar, desde o batismo".
Não interessa "tanto se as coisas estão a ser fáceis ou difíceis mas se estamos a avançar na direção certa ou na direção errada. A maior parte das pessoas vive como se não houvesse meta, vive como uma criança de dois anos atrás de uma bola. A criança, cada vez que chega á bola, chuta numa direção qualquer, arbitrária. Sem uma meta, no fim, a bola andou aos ziguezagues"
"o que nos dá mais força não é o amigo de ferro mas aquele que partilha connosco as suas lágrimas"
"A fé que tens nos outros vem da fé que sentes que Deus tem em ti"
"Não tenho receio de morrer. Apenas um grande receio de viver sem amor".
"Vamos fugir... Vamos aproveitar. Viver cada instante como se fosse o último...
Acho que devemos fazer exatamente o oposto: viver cada dia normalmente. Não alterar nada. Viver cada instante como se fosse o do meio, não o último. E depois viver o que vier com a mesma confiança. O último já não será cá... devemos viver bem cada minuto sem estarmos a pensar se é o último ou não... em qualquer circunstância, em qualquer dia da nossa vida, devemos aproveitar bem todas as oportunidades sem nos deixarmos levar pela rotina".
"Se vivesse a caminhar p'ra Santiago...
talvez não carregasse tantos bens materiais nas malas do meu coração
e amasse mais a simplicidade de vida, a sobriedade e a partilha;
talvez não me perguntasse tanto se a vida está a ser está ser fácil ou difícil
mas sim se estou a dar passos na direção certa ou na direção errada;
talvez não pusesse a minha segurança em nenhum abrigo, pois tudo é frágil,
mas em cada estrada buscasse Presença que me conduz;
talvez nunca mais olhasse outra pessoa pensando no que me pode dar
mas perguntasse sempre como posso ser um bom companheiro de viagem;
talvez não perdesse a cabeça com os fracassos nem me autocoroasse com os sucessos,
mas tudo agradecesse humildemente a Deus e com tudo aprendesse a caminhar melhor;
talvez não me defendesse dos outros nem me deixasse possuir por ninguém
mas todos procurasse amar com inteligência, devoção e liberdade;
talvez não ficasse agarrado às paisagens - bonitas ou feias - porque todas passam,
mas recordasse cada dia o Santuário Final para onde me dirijo e ao qual já pertenço;
e assim, cada passo, anteciparia o gozo de chegar ao Fim,
de Te encontrar no Céu e de me deixar abraçar por Ti, Senhor meu Deus.
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