Por vezes, no cruzamento apressado das horas, deparamos com um rosto idoso que nos olha por detrás de uma janela, na nesga quase oculta de uma cortina, e fazemos por não pensar muito nisso. Mas que nos dizem esses olhos? Que nos dizem esses olhos que nos olham em silêncio, sedentos de proximidade e de palavra; esses olhos para quem tudo é adiado; esses olhos que se sabem deixados para o fim ou nem isso; esses olhos impotentes e, ainda assim, tão doces; esses olhos que tacteiam as coisas e já não estão certos de as reconhecer ou de as poder activar; esses olhos que desistem um milhão de vezes por dia e nenhuma delas sem dor; esses olhos que se deixaram sequestrar pela televisão a tempo inteiro; esses olhos vazios do que não viram, mas que não desistem de esperar; esses olhos atrapalhados na geografia que alteramos sem aviso; esses olhos que não conseguem perceber a literatura incluída de um mundo que, sem o merecerem, lhes é hostil? Sim, que nos dizem os olhos que encontramos regularmente por anos a fio, ou mesmo só por uns meses, que nos habituamos a reconhecer na nossa paisagem anónima e distraída e, de repente, deixamos de ver? «Morrer é só não ser visto». Deveríamos escrever o verso de Pessoa na Constituição da República e no nosso coração.
Pe. José Tolentino Mendonça, Editorial da Agência Ecclesia.
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