1 – O mundo é um oceano de mil e uma cores, mais, muito mais colorido que possamos imaginar. A experiência mais básica mostra-nos uma imensa variedade de formas e de vida (biodiversidade – pássaros, peixes, animais, plantas). Tudo é diferente, multicolor. E quando nos referimos ao ser humano, maior a complexidade. Cada pessoa é única e irrepetível. Conhecemos bem uma pessoa e de repente, sem contarmos ela surpreende-nos, em absoluto, negativa ou positivamente. Somos mistério. Um manancial de surpresas. Não abarcamos toda a realidade e muito menos a vida humana. Como as doenças: não há doenças, há doentes e o mesmo remédio não atua em de igual forma.
Num primário instinto de sobrevivência opomo-nos à pluralidade, procurando uniformizar. Juntamos o que é parecido, em partidos, movimentos, associações, tentamos anular as diferenças:
- na família – os filhos hão de seguir as pisadas dos pais, o marido e a mulher têm de se submeter ao que o outro pensa, o elo mais fraco é por vezes sacrificado para haver harmonia; na escola – queremos que as turmas sejam muito iguais, se alguém aparece diferente (positiva e negativamente) é muito difícil aceitá-lo sem resistência, sem conflito;
- na política – encerrar todos no mesmo partido, ou dentro do partido nas mesmas ideias, as do chefe, só ele pensa, só ele deve falar, ou todos dizem o que ele diz, no governo e/ou na oposição;
- no desporto – os treinadores e os jogadores só podem falar para secundarizar a opinião do presidente;
- na cultura – só vale o que arrasta multidões, é necessário obrigar as pessoas a ser cultas, para isso elas têm que gostar daquele pintor, daquela tela, deste monumento e daquele grupo musical;
- na economia – manda quem tem mais dinheiro ou mais riqueza, obedece e cala-se quem tem menos, se quer garantir o futuro;
- na vida sindical – só o chefe argumenta contra patrões e contra o governo, e todos têm que alinhar dizendo mal;
- na religião – que promove as diferenças e é voz dos que não têm voz, por vezes lida-se mal com as discordâncias, ao ponto de ostracizar aqueles que destoam.
Obviamente que em todos os grupos sociais – constituídos por pessoas –, têm de existir regras e orientações, até para validar as pertenças e a identidade.
Há uma enormíssima dificuldade em trabalhar em grupo, pois cada um quer impor-se e impor a sua visão. Os que discordam, estão errados, são intolerantes, não querem colaborar... E nós?! Cada um de nós precisa de se afirmar ou ser reconhecido pelos demais. Mas os caminhos podem aproximar-nos ou distanciar-nos. Podemos ser reconhecidos pelo bem, apostando precisamente no desenvolver das nossas capacidades, como um meio para nos realizarmos. Ou podemos impor-nos destruindo os outros, colocando-os como meio, como instrumento, e o fim é o reconhecimento – é preferível que falem mal de mim do que não digam nada.
É neste quadro (que não é negro) que a celebração da Santíssima Trindade adquire uma importância colossal. Deus é Um e é Trino. Três Pessoas, uma Natureza (divina), Um só Deus. Coexiste a diferença e a unidade, sem confusão nem atropelo. Qual o segredo: o AMOR. Deus é amor. O amor acolhe, compreende, gera vida, cria e recria o mundo, reconcilia, envolve.
2 – Na celebração solene do Pentecostes víamos como a linguagem do amor é acessível para todos. Se estendemos a mão, se oferecemos um sorriso, se damos uma flor, mesmo falando línguas estranhas uns aos outros, entendemo-nos na perfeição.
A vida humana é multifacetada. Não é monotonia, mas sinfonia (Pe. João André, Da minha Janela). Celebramos hoje a festa da sinfonia, a Santíssima Trindade, onde a vida circula, criando e recriando. A Igreja nasce, sustenta-se e deve desembocar na Trindade. Há de configurar-se, identificar-se, imiscuir-se no mesmo projeto de amor e de vida nova. Batalhar pela unidade que respeita a diferença, que acolhe o estranho, que promove cada tonalidade do ser humano.
Somos de uma riqueza incomensurável. Mesmo quando não aceitamos os outros e as suas opiniões, dependemos mais ainda deles, para lhes fazermos ver, ou para sermos reconhecidos. Ainda que nos julguemos perfeitos, o que dizemos e fazemos é muito em função dos outros. A aceitação da nossa fragilidade, das nossas imperfeições, da possibilidade de estarmos errados, ajudaria a dialogar, a crescer, a criar laços duradouros e fraternos, à inclusão/integração do diferente, sem imposição ou submissão da nossa parte, sem humilhações, mas na descoberta da beleza e da grandeza do ser humano que nos visita, que entra na nossa história, pessoal, familiar, social, profissional.
Perdemos tanto tempo a impor-nos, a discutir para saber qual dos dois ou do grupo é melhor, quem tem mais seguidores, quem colhe mais simpatias, quem é o mais atraente da turma, ou o mais popular da escola, e por vezes, demasiadas vezes, esquemo-nos de viver, de apreciar os outros e a sua originalidade. Quantas vezes nos irritamos ao ver que o outro é o centro, como quereríamos anulá-lo e colocar-nos no seu lugar. (O mesmo e alteridade). Para quê reduzir o outro, quando podemos caminhar juntos, olhar na mesma direção, apreciando o horizonte e apoiando-nos nas dificuldades? Importa colher a presença de Deus em cada diferente... Também aqui Jesus é o Mestre dos Mestres. O seu grupo é heterogéneo. De tal maneira que por vezes tem de refrear a crítica ou os desejos incontroláveis de alguns.
Na primeira leitura, os mandamentos de Deus são-nos propostos como aposta nos outros, na tolerância e na mútua aceitação. Diz-nos Moisés, "considera hoje e medita em teu coração que o Senhor é o único Deus, no alto dos céus e cá em baixo na terra, e não há outro. Cumprirás as suas leis e os seus mandamentos, que hoje te prescrevo, para seres feliz, tu e os teus filhos depois de ti, e tenhas longa vida na terra que o Senhor teu Deus te vai dar para sempre". É o trilho da descoberta e do encontro, da vida e da felicidade, sem endeusamento. Só Deus é Deus.
3 – A nossa fragilidade é estrada de encontro na fragilidade dos outros. Se estamos "cheios" de nós, voltados para o nosso umbigo, a abarrotar, não há espaço nem para a alteridade nem para a transcendência, isto é, não há lugar nem para outros e nem para Deus.
Reconhecermos a nossa pobreza é o primeiro passo para valorizarmos a riqueza que nos vem de Deus através dos outros. Reconhecer em nós a presença de Deus, é o primeiro passo para fazermos com que a nossa riqueza nos abra à generosidade, à partilha e à comunhão.
São Paulo mostra-nos como a nossa origem, a nossa identidade, a abertura para o Espírito nos deve guiar como filhos de Deus. "Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Vós não recebestes um espírito de escravidão para recair no temor, mas o Espírito de adoção filial, pelo qual exclamamos: «Abá, Pai». O próprio Espírito dá testemunho, em união com o nosso espírito, de que somos filhos de Deus. Se somos filhos, também somos herdeiros, herdeiros de Deus e herdeiros com Cristo; se sofrermos com Ele, também com Ele seremos glorificados".
Por sua vez, o Evangelho envia-nos em nome da Santíssima Trindade, para levarmos o melhor de nós, levarmos Deus a toda a parte, e acolhermos, potenciando, o que os outros nos dão da parte de Deus.
"Jesus aproximou-Se e disse-lhes: «Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra. Ide e ensinai todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei. Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos»".
Cumprindo o que Ele nos manda, viveremos como filhos e como irmãos, como herdeiros e imitadores de Jesus Cristo, procurando espelhar em nós a vida nova que recebemos quando n’Ele fomos enxertados, pelo Espírito Santo, no sacramento do batismo.
4 – Deitar-nos-emos na cama que fizermos. O que escolhemos fazer hoje, vivemo-lo amanhã, como bem canta Sara Tavares, em “Escolhas”, baseado no dilema de São Paulo, sei que posso fazer tudo, mas nem tudo me convém.
Centrando-nos no mistério da Santíssima Trindade, o desafio é integrar o diferente, em dinâmica de amor oblativo e disponibilizando aos outros os dons que Deus nos dá.
A escolha faz-se entre compreender (incluir, acolher, respeitar, amar) e julgar (catalogar, condenar, recriminar, destruir). Quando julgamos fazemo-lo (quase) sempre da nossa janela, a partir de nós, das nossas referências e (pre)conceitos, da nossa forma de ver o mundo, em tentação de reduzir o outro ao que sou e à ideia que tenho da vida. Em Deus, Pai e Filho e Espírito Santo, predomina a relação amorosa e dialogante.
Textos para a Eucaristia: Deut 4, 32-34.39-40; Rom 8, 14-17; Mt 28, 16-20.
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