"O antigo ministro da Educação, em entrevista à FAMÍLIA CRISTÃ, fala sobre um novo modelo educativo de serviço. A palavra servir – tão cristã – leva-nos a estender a conversa a outros focos. Escola, professores, alunos, família, cidadania, Igreja, fé, vida, doença e morte – eis alguns dos assuntos abordados numa conversa de duas horas no edifício da Biblioteca João Paulo II, da Universidade Católica de Lisboa".
FC – Quando falta cidadania, quando os portugueses participam muito pouco...
R.C. – Estou preocupado com isso. Há uma clivagem ética, cada um tenta resolver os problemas por si e para si. Esta clivagem ética de toda a Europa mina os seus fundamentos. Recordo-me de um episódio, passado há já alguns anos, quando um jornalista pergunta ao [ensaísta] Eduardo Lourenço qual seria a solução para a Europa. Ele respondeu simplesmente: «A fraternidade cristã.» Na fraternidade cristã somos todos irmãos em Jesus Cristo e filhos do mesmo Pai. Ninguém tem o direito de explorar e maltratar o outro. Esse sentido ético da fraternidade é eu sentir que preciso do outro para a minha felicidade, porque o outro não é senão a outra metade de mim. Sou incompleto se não me completar com o outro. Por conseguinte, uma questão central que temos de recolocar hoje, como há 2000 anos, é: Quem é o meu próximo? Como me posso sentir pobre dele? Que iniciativa devo tomar para dele me aproximar sem nada esperar em retorno?
FC – Em outubro inicia-se o Ano da Fé, que também se cruza com essa questão.
R.C. – A fé faz-nos livres para servir melhor o outro. A fé tem de ser imbuída em sentido de serviço, senão é orgulho pessoal. Ninguém se salva sozinho, salva-se sobretudo no abraço ao outro, no encontro com o outro e pensar que o outro tem sempre coisas fantásticas a dar-me: o sem-abrigo, o imigrante, eventualmente o mendigo andrajoso que nos repugna porque cheira mal... Quando nós achamos que uma pessoa não merece a nossa atenção é porque não a conhecemos. Se eu não a descubro, a culpa é minha. Está ali um filão para descobrir, é um poço onde posso matar a sede. Se eu souber beber do poço dos que estão à minha volta, disponíveis para o diálogo e para a relação, nunca mais terei sede.
FC – Que trabalho tem de ser feito pela Igreja no Ano da Fé?
R.C. – Organizar as comunidades de base. É de baixo para cima, capilarmente, que a Igreja se faz. Há uma grande crise da prática religiosa. Aproveito para dizer que ir ao domingo à Missa não faz ninguém praticante. Praticante é o que põe em prática a Palavra de Cristo. Precisamos de pastores e de uma orientação mais clara neste momento de crise: faça-se ouvir a voz da Igreja Mãe e Mestra. É preciso também rever a cultura em família. A semente tem de ser lançada quando a criança ainda é pequenina, e acarinhada para fazer com que a criança se enamore da pessoa de Cristo. A pessoa que não se enamora não descobre amor, não dá nada. O amor está na base da redenção. Temos de nos enamorar, ler todos os dias a Sagrada Escritura e nela buscar o "rosto de Cristo, meu irmão". Como se pode chegar à fé sem tempos de silêncio para ouvirmos a voz do Pai? O silêncio é, para mim, frequentemente, olhar para o crucifixo, testemunhar a grandeza contida na contingência humana, e escutar...
FC – O que escuta do Pai?
R.C. – Coisas terríveis: «És um soberbo, um orgulhoso, não estejas a dissimular as tuas deficiências, não queiras esconder a tua realidade frágil.»
FC – Que coisas boas lhe diz o Pai?
R.C. – «Estou sempre do teu lado. Nunca te abandonarei.» Sabe, cada vez mais identifico na Vanitas o grande pecado mortal. A vaidade está na raiz de todas as fraquezas humanas, da luxúria, da gula, da preguiça, da inveja, da mentira... e é o orgulho que nos afasta do Pai.
FC – Quando é que o Eng. Roberto Carneiro tem vaidade?
R.C. – Permanentemente. Quando tento parecer o que não sou. Em muitas conferências sou aplaudido. Aplausos para quê? Ajo para o reino de Deus ou para glória pessoal? Reconhecer que se é homem, pecador e frágil é fundamental para se ser salvo.
FC – Sente-se cada vez mais frágil?
R.C. – E dependente... uma dependência cada vez maior com a idade e com algumas maleitas. Às vezes para descer um degrau preciso de ajuda, preciso de um computador para escrever (já não consigo escrever à mão porque tremo), às vezes preciso de ajuda para descodificarem aquilo que digo. É a dependência. A dependência de Deus é total. Entrego-me nas mãos do Pai. Peço-Lhe sem descanso: «Dá-me sentido para isto, dá-me o sentido da vida» – e o sentido da vida e da morte é a dependência. Tornar-se dependente cada vez mais do Pai, é perceber que não se tem vontade própria, de nada nos serve a (van)glória pessoal. Tudo o que se faz bem, faz-se pelo Pai. O que sai bem, é o Pai que nos ajuda, é para glória de Deus e para o progresso do Seu reino que temos de fazer as coisas. Portanto, digo-Lhe: «Faz de mim o que quiseres.» A vida é bela se soubermos apreciá-la no esplendor da dependência do Senhor da História.
FC – Mesmo os amargos de boca...
R.C. – Os amargos de boca têm sentido – ajudam-nos a sentir a nossa fragilidade. Quando morrer espero poder dizer como São Paulo: «Combati o bom combate, cheguei ao fim da corrida e mantive a minha fé.»
(Entrevista completa, edição de setembro da Família Cristã)
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