«Na singular conexão entre Isaías 1,3; Habacuc 3,2; Êxodo 25,18-20 e a manjedoura, aparecem os dois animais como representação da humanidade, por si mesma desprovida de compreensão, que, diante do Menino, diante da aparição humilde de Deus no estábulo, chega ao conhecimento e, na pobreza de tal nascimento, recebe a epifania que agora a todos ensina a ver. Bem depressa a iconografia cristã individuou este motivo. Nenhuma representação do presépio prescindirá do boi e do jumento» – Joseph Ratzinger/Bento XVI, Jesus de Nazaré: a infância de Jesus, Cascais, Principia, p.62.
Foi com alguma perplexidade e razoável estupefação que ouvi e, posteriorrmente, li a reação a estas palavras do último livro do Papa. Nota-se pelas declarações que a maioria não leu o que Bento XVI escreveu, limitando-se a reproduzir frases feitas, servindo-se de preconceitos mais ou menos ideológicos – senão na forma pelo menos no conteúdo – de quem está contra... mesmo que não saiba qual a razão!
Desde logo surgiram-me questões simples que parecem ter mais a ver com uma certa religiosidade cristã: será que a presença da ‘vaca e do burro’ são tão essenciais para a crença de certas pessoas? Tirar estes adereços mexe assim tanto com a valorização do presépio? Onde terão lido estes defensores da ‘vaca e do burro’ a sua presença nos textos bíblicos? Como podem fazê-los tão imprescindíveis se eles nem estão presentes na narrativa canónica? A quem interessa este ruído sobre questões de lana caprina?
Reparemos no texto do Papa citado e reportemo-nos também à narrativa lucana (Lc 2, 1-20) onde poderão incluir-se os ditos ‘boi e jumento’, traduzindo ainda por ‘vaca e burro’.
‘Presépio’ significa: curral, estábulo... daí podermos incluir alguns animais nesse contexto. Qual a razão de vermos o boi ou a vaca nesse estábulo? Talvez seja mais uma projeção do tempo em que surgiu o difusão do presépio na cultura ocidental europeia com São Francisco de Assis, na Idade Média, ou ainda com a ruralidade em que se quis colocar ou se pode ver o contexto do nascimento de Jesus entre animais... possivelmente mais ovelhas do que outro gado.
Talvez o burro/jumento tenha sido o meio de locomoção de José e de Maria entre Nazaré e Belém, a cidade onde se foram recensear. Com efeito, as distâncias eram grandes e os recursos materiais e humanos não seriam mais do que esses de terem um burro para poderem viajar. Daí colocá-lo no contexto do presépio poderá ser tão natural quão difícil de harmonizar animais de diferente estirpe e razoável teimosia... Só quem não os conhece é que se admirará desta alusão à proximidade simples de antagónicos!
Não deixa ainda de ser significativo que o Papa diga no texto supra citado que aqueles animais – o boi e o jumento ou a vaca e o burro – são ‘representação da humanidade’. Será, então, que a nossa – humana, racional, psicológica e espiritual – simbologia está caraterizada por aqueles dois espécimes? Ou será que, recorrendo aos textos referidos na citação, se pretende fazer uma conjugação dos diferentes humanos, pois se até os animais se entendem e se relacionam em harmonia junto do Deus-Menino, quem somos nós, afinal, para não nós entendermos?
Bastará parar um pouco diante do presépio para vermos como são fúteis as nossas jactâncias de orgulho: ali está um Deus que Se humilhou e que teve por companhia animais amansados pela pobreza dum Menino que Se fez próximo desde dentro da nossa condição humana e em projeção humanizada.
Bastará perceber a força de despojamento de um Deus que nasce e é acolhido entre animais porque não havia lugar para Ele na estalagem das ocupações humanas... tais eram (e são) as pretensões de sermos importantes à custa dos direitos dos outros.
O boi/vaca e o jumento/burro continuarão a ter espaço e oportunidade nos nossos presépios, enquanto andarmos atarefados com inutilidades que nos fazem perder o sentido da vida e a qualidade da existência?
Que o burro e que a vaca exalem um hálito de ternura sobre este mundo, que rejeita Deus e esquece Jesus!
Pe. António Sílvio Couto, in AQUI e AGORA,
publicado também no Jornal Voz de Lamego.
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