1 – Somos poucos trinitários na Igreja e na sociedade.
Um professor numa sala de aula, em alguns momentos, pode ter a tentação de fazer algum exercício em vez de explicar como se faz, sobretudo se já esgotou a paciência. Um explicador a mesma coisa, explica, explica, às tantas faz e assunto arrumado; o explicando pode regressar a casa satisfeito com os TPC's feitos e prontos a mostrar ao professor, mesmo que não tenha percebido nada do trabalho. Talvez isso aconteça cada vez menos. Os pais mandam o filho a um recado ou fazer alguma tarefa. Mas depois o filho demora muito ou é preciso gastar o mesmo tempo a explicar e então mais vale fazer do que pedir. Lá diz o ditado que “quem quer anda e quem não quer manda”.
Em Igreja a tentação é semelhante. Para fazermos melhor e mais depressa é melhor não contar com os outros que só atrapalham, atrasam, ou fazem as coisas com pouco zelo e com pouca perfeição. Há um princípio em pastoral que é difícil de cumprir com alegria: mais vale muitos fazerem pouco do que poucos fazerem muito. Ainda que seja acender uma vela, cada pessoa conta e todos devem estar envolvidos. Por parte de quem orienta, a capacidade para chamar, pedir, solicitar ajuda, distribuir tarefas. Por parte de cada batizado, oferecer-se para ajudar, disponibilizar para qualquer tarefa, em qualquer tempo, "chegar-se à frente". A única condição é a de batizado. Se me assumo como batizado então não são os outros que têm obrigação para fazer, sou eu. Posso não ter "jeito", mas pior que não ter jeito é não ter vontade!
As chefias e as ditaduras alimentam um célebre princípio que se tornou lei: eu posso, quero e mando. As discussões surgem precisamente nesta procura de mostrar que sou mais forte e melhor que os outros. Parece que tudo assenta numa questão de poder. Brincadeira de crianças que assumimos em adultos: o meu pai é mais forte que o teu... eu vou chamar o meu irmão e tu já vais ver!
2 – A sociedade do nosso tempo é altamente individualista. A cultura do "eu" está na mó de cima. Verificável também no meu grupo, partido, no clubismo, na ideologia. Imersos num mundo global, mas cujas referências e gostos nos comprometem, não com o diferente, mas com quem tem o mesmos gostos que nós. Nas redes sociais aderimos aos grupos com os quais temos afinidade e excluímos rapidamente quem pensa diferente. Eu e o meu grupo.
O grupo dos apóstolos faz esta experiência até ao fim. De diferentes origens e com temperamentos diversos. João e André, filhos do trovão; Pedro, impulsivo; Judas Iscariotes tendencialmente revolucionário; Mateus, cobrador de impostos. Filipe letrado. Tão diferentes mas todos lutam por se colocar acima e disputar o lugar cimeiro na futura hierarquia do Reino de Deus.
Como grupo fecha-se e impede que outras pessoas entrem. Afastam as crianças (cf. Mt 19, 13-15). Quando encontram um homem a pregar em nome de Jesus e a curar, proíbem-no: "ele não andam connosco" (cf. Mc 9, 38-41). A resposta de Jesus é clarificadora: deixai vir a mim as crianças, é delas o reino de Deus; não o proibais, quem não é contra nós é por nós.
Olhamos a vida a partir da nossa janela. O outro vê-nos partir da sua. São olhares que não se anulam, não veem o mesmo, não são fundíveis. Duas linhas retas, paralelas, nunca se tocam. Também a nossa vida. O problema não está em sermos diferentes, o problema está em não nos aceitarmos como diferentes, cuja diferença enriquecem, porque nos faz ver, ouvir, saborear, saber outras realidades.
Não é fácil deixarmos alguém entrar no nosso grupo. Não é fácil sentir-nos em casa num grupo que não é o nosso grupo de origem. Somos como invasores, já existia quando chegamos. E quando chega alguém ao nosso grupo parece que vai dividir a atenção que tínhamos uns para com os outros, vem desestabilizar os equilíbrios que construímos ao longo do tempo.
3 – Só o amor consegue unir sem destruir. Expressão do teólogo, padre, cosmólogo, Theilhard de Chardin. O grupo em si mesmo não é um mal. Muito pelo contrário. O grupo só é mau quando se fecha num círculo fechado, sectário, excludente. Deus chama-nos em povo e em povo nos salva. Jesus chama uns quantos, forma um grupo, o grupo dos 12. É um grupo heterogéneo, mas ainda assim restrito e, para quem vê de fora, um grupo esquisito. Jesus não desiste de nenhum; procura gerir os "egos", as discussões e os conflitos, que a seu tempo servem para balizar as dificuldades e para treinar o diálogo e a comunhão, integrando os dons de cada um.
Na oração sacerdotal, Jesus reza ao Pai para que aquele grupo, mas também os que a Ele vão aderir, se mantenham unidos. «Não rogo só por eles, mas também por aqueles que hão-de crer em mim, por meio da sua palavra, para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em mim e Eu em ti» (Jo 17, 20-21). A oração é intercessão mas também desafio para os discípulos. Deus proverá a unidade dos discípulos de Jesus, mas estes terão que ser criativos e generosos para edificar a fraternidade em Cristo.
Ao longo do tempo, Jesus mostra que o caminho a seguir passa pelo amor, pela compaixão, pelo serviço. Quem quiser ser o maior terá de ser servo de todos. Por outro lado, não se pense que Jesus defende a anulação da personalidade de cada um. Desengane-se quem pensa assim. O grupo que O segue tem características muito distintas, que se mostram também no início da Igreja. Também nessa ocasião se verá que os temperamentos de cada um hão de ser temperados pela força do Espírito Santo, na oração comunitária. "Da discussão nasce a luz". Oração, reflexão partilhada, decisão!
O Apóstolo Paulo insistirá com as comunidades para que os dons sejam trabalhados a favor de todos, pois todos os dons foram dados por Deus. «Sede alegres, trabalhai pela vossa perfeição, animai-vos uns aos outros, tende os mesmos sentimentos, vivei em paz. E o Deus do amor e da paz estará convosco. Saudai-vos uns aos outros com o ósculo santo. Todos os santos vos saúdam. A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco».
4 – Deus é um mistério inefável. Cabe-nos acolhê-l'O. Não de qualquer jeito, mas com amor, orando e refletindo. Por conseguinte, precisamos de tentar compreendê-l'O através das categorias humanas, mas sempre com a humildade de sabermos que continua a ser Deus. E Deus é inabarcável, senão não era Deus. Como lembra Santo Agostinho, compreendes, então não é Deus. Há, porém, um esforço que nos compromete, pois o próprio Deus, em Cristo, vem até nós. Abaixa-Se, por amor, até à nossa condição humana e finita, familiariza-se connosco.
Mais que esmiuçar o mistério da Santíssima Trindade, um só Deus em três Pessoas, importa viver num estilo trinitário. Em Deus prevalece o amor que gera vida e comunhão, sem atropelos. O Amor de Deus é tão imenso que extravasa e nos cria. É tão imenso que nos recria para termos vida abundante. Como recorda Jesus a Nicodemos, «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele».
O Amor que é Deus, que circula na Santíssima Trindade, expande-se para o Universo. Desde sempre. A plenitude chegará com o Seu próprio Filho que, por ação do Seu Espírito Santo fecunda a Virgem Maria. Enxertado na humanidade, para nos enxertar de vida divina.
Porém, Deus nunca esteve ausente ou distante. Moisés é um líder que tem a missão de comunicar o amor de Deus ao povo e fazer com que o povo se liberte para amar, ou seja, para viver em harmonia como povo. De Deus vem a certeza: «O Senhor, o Senhor é um Deus clemente e compassivo, sem pressa para Se indignar e cheio de misericórdia e fidelidade». De Moisés a súplica: «Se encontrei, Senhor, aceitação a vossos olhos, digne-Se o Senhor caminhar no meio de nós. É certo que se trata de um povo de dura cerviz, mas Vós perdoareis os nossos pecados e iniquidades e fareis de nós a vossa herança».
A súplica de Moisés revela a grande confiança que tem em Deus, apesar das próprias fragilidades e das do povo. A misericórdia de Deus supera e purifica a nossa miséria.
Pe. Manuel Gonçalves
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