PRIMO LEVI (2017). Se isto é um Homem. Alfragide: D. Quixote. 15.º Edição. 192 páginas.
Foi-nos sugerido, lemos e agora sugerimos a outros esta bela, pertinente e luminosa narrativa sobre os campos de concentração nazis, ou melhor, sobre a experiência vivida na primeira pessoa pelo autor, Primo Levi, judeu italiano deportado no campo de extermínio, onde a humanidade é questionada e onde a preocupação imediata não será a ética, a vida, a dignidade, o respeito, os valores, mas a sobrevivência ao frio e à fome, ao trabalho e às doenças.
Para compreendermos o pensamento de Primo Levi teríamos que ler vários (ou todos) livros e de preferência na língua original, segundo o Bispo de Lamego, D. António Couto, tal a profundidade e a relevância das suas reflexões.
Esta pode ser a leitura de entrada deste autor. É o testemunho pessoal, impressionante, lúcido sobre o tratamento desumano nos campos de extermínio, mas também da forma como as vítimas lidaram com a sobrevivência, havendo lugar a alguma solidariedade, mas prevalecendo a luta animalesca por sobreviver mais um dia.
Quando alguns tentam branquear aquela que foi uma das páginas mais negras da história europeia e mundial, com a eliminação de 6 milhões de judeus e de outros que se tornaram críticos do regime, ou simplesmente porque não se enquadraram no ideal da raça pura, este é mais uma obra provocante, que aviva a memória, que nos revela como, em situações degradantes, as pessoas são capazes das maiores barbaridades. Aqui e além há lampejos de humanidade e de alguma esperança, de alguma fé.
Levi foi detido pelas forças alemãs a 13 de dezembro de 1943, era então um jovem químico, membro da resistência. Tendo confessado a sua ascendência judaica, foi deportado para Auschwitz em fevereiro do ano seguinte, onde permaneceu até 27 de janeiro de 1945 quando o campo foi libertado.
Vale a pena reter algumas palavras:
“Todos descobrem, mas tarde ou mais cedo na vida, que a felicidade perfeita não é realizável, mas poucos se detêm a pensar na consideração oposta: que também uma infelicidade perfeita é, igualmente, não realizável. Os momentos que se opõem à realização de ambos os estados-limite são da mesma natureza: derivam da nossa condição humana, que é inimiga de tudo o que é infinito. Opõe-se-lhe o nosso sempre insuficiente conhecimento do futuro; e a isto se chama, num caso, esperança; no outro, incerteza do amanhã. Opõe-se-lhe a certeza da morte, que impõe um limite a qualquer alegria, mas também a qualquer dor. Opõem-se-lhe as inevitáveis preocupações materiais que, assim como poluem qualquer felicidade duradoura, também distraem assiduamente a nossa atenção da desgraça que paira sobre nós e tornam fragmentária, e, por isso mesmo, a consciência dela.
Foram precisamente as provações, as pancadas, o frio, a sede, que nos deixaram afundar no vazio de um desespero sem fim, durante a viagem e depois. Não a vontade de viver, nem uma resignação consciente: pois são poucos os homens capazes disso, e nós mais não éramos que uma vulgar amostra de humanidade”.
"A persuasão de que a vida tem uma finalidade está enraizada em todas as fibras do homem, é uma propriedade da substância humana. Os homens livres dão a essa finalidade muitos nomes, e sobre a sua natureza muito se debruçam e discutem; mas para nós a questão é mais simples.
Agora e aqui, a nossa finalidade é chegar à Primavera. Neste momento, nada mais nos preocupa. Por detrás desta meta, neste momento, não há outra meta. De manhã, quando em fila na Praça da Chamada, esperamos durante um tempo interminável a hora de partir para o trabalho, e cada sopro de vento penetra por debaixo das nossas roupas e corre em arrepios violentos pelos nossos corpos sem defesa, e tudo em volta está cinzento, e nós estamos cinzentos; de manhã, ainda antes de o dia chegar, todos observamos o céu do lado do Oriente para espreitar os primeiros indícios da estação amena, e o nascer do Sol é todos os dias comentado: hoje foi um pouco mais cedo do que ontem; hoje está um pouco mais calor do que ontem; dentro de dois meses, dentro de um mês, o frio dar-nos-á tréguas e teremos um inimigo a menos.
Hoje, pela primeira vez, o Sol nasceu vivo e nítido por cima do horizonte lamacento. É um sol polaco, frio, branco e longínquo e não consegue aquecer para além da epiderme; mas, quando se libertou das últimas neblinas, um murmúrio percorreu a massa descorada que somos e, quando também senti a tepidez através da roupa, compreendi como se pode adorar o Sol".
"Sucumbir é o mais simples: basta cumprir todas as ordens que se recebem, comer só a ração, obedecer à disciplina do trabalho e do campo. A experiência demonstrou que só em casos excecionais, desta forma, se pode durar para além dos três meses. Todos os ‘muçulmanos’ que vão para a câmara de gás têm a mesma história, ou, melhor dizendo, não têm história; seguiram o declive até ao fundo, naturalmente, como os rios vão desaguar no mar. Depois de terem ingressado no campo, por sua incapacidade essencial, ou por azar, ou por qualquer acidente banal, sucumbiram antes de poderem habituar-se; estão sempre atrasados... a sua vida é breve, mas o seu número é enorme... dentro deles apagou-se a centelha divina, já demasiado vazios para sofrer de verdade... eles povoam a minha memória com a sua presença sem rosto e, se pudesse resumir numa única imagem todo o mal do nosso tempo, escolheria esta, que me é familiar: um homem ressequido, com a testa baixa e os ombros curvados, em cujo rosto e em cujos olhos não se pode ler qualquer sinal de pensamento. E os que sucumbiram não têm história, e um só amplo é o caminho da perdição, os caminhos da salvação são, pelo contrário, muitos, difíceis e imprevisíveis".
Na vida comum "não é frequente acontecer que um homem se perca, pois normalmente não está só e, no seu subir e descer, está ligado ao destino dos que o rodeiam; pelo que só excecionalmente acontece que alguém cresça sem limites ou desça continuamente de derrota em derrota até à ruína. Mais, cada um possui habitualmente recursos, espirituais, físicos e também económicos, capazes de tornar ainda menos provável a eventualidade de um naufrágio, de uma carência perante a vida. Acrescente-se ainda que uma sensível ação de amortecimento é exercida pela lei e pelo sentido moral, que é a lei interior; de facto, considera-se tanto mais civilizado um país quanto mais sábias e eficazes são as leis que impedem ao miserável ser demasiado miserável e ao poderoso demasiado poderoso... Mas no Lager tudo acontece de outra forma: aqui, a luta para sobreviver é sem remissão, porque cada um está desesperada e ferozmente só. Se um Null Achtzenh qualquer vacilar, não encontrará quem lhe estenda a mão, mas sim alguém que o deitará abaixo, pois ninguém está interessado em que um «muçulmano» (nome pelo qual são chamados os fracos, os ineptos, os votados à seleção para serem mortos) a mais se arraste todos os dias para o trabalho; e se alguém, com um milagre de paciência selvagem e astúcia, encontrar nova combinação para escapar ao trabalho mais duro, uma nova artimanha que lhe proporcione algumas gramas de pão, procurará manter secreta a forma como o conseguiu, e por isso será estimado e respeitado, e tirará um lucro exclusivo e pessoal; tornar-se-á mais forte, os outros terão medo dele e, por isso mesmo, será um candidato à sobrevivência".
"As personagens deste livro não são homens. A sua humanidade está sepultada, ou eles mesmos a sepultaram, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrem... Mas Lorenzo era um homem; a sua humanidade era pura e incontaminada, estava fora deste mundo de negação. graças a Lorenzo, aconteceu-me não esquecer que também eu era um homem".
Pobre e ingénuo Kraus. Se soubesse que… para mim também ele é nada, a não ser um breve momento, nada como aqui tudo é nada, a não ser a fome dentro de nós, e o frio e a chuva à nossa volta".
O livro começa com o seguinte poema:
«Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não
Considerai se isto é uma mulher
Sem cabelos e sem nome
Sem mais força para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no Inverno.
Meditai que isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração.
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara»