quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Bento XVI - o que é o cristianismo

BENTO XVI (2023). O que é o Cristianismo. Quase um testamento espiritual. Cascais: Lucerna. 200 páginas.


Existem muitos livros publicados de Bento XVI, enquanto Papa, além de conjuntos de homilias, discursos, encíclicas, exortações apostólicas, entrevistas; enquanto teólogo, muitos mais. Mas este não é mais um livro. Aliás, nenhuma das obras refletidas e escritas por Joseph Ratzinger / Bento XVI é mais uma a acrescentar a outra, como soma, mas é única, pois, mesmo em textos próximos, apresenta novos estudos, achegas, referências. Este é um livro, por vontade própria de Bento XVI, publicado a título póstumo.
Recolhe diversos textos, estudo, reflexão, entrevista, intervenções, alguns já conhecidos, mas aperfeiçoados, outros inéditos sobre os fundamentos do cristianismo, sobre a identidade católica, sobre a relação da Igreja com outras igrejas e com o judaísmo. 
O subtítulo diz bem do objetivo desta coletânea, é quase um testamento espiritual! Noutras obras, como Introdução ao Cristianismo ou Jesus de Nazaré, em três volumes, escrito já como Papa, pode ver-se as intuições fundamentais do teólogo e do papa, do estudioso e do pastor, ou ainda, por exemplo, a Introdução à Liturgia, ou os livros de entrevistas, como o Sal da Terra.
Neste livro póstumo, fruto de uma reflexão mais amadurecida, tendo em conta ulteriores desenvolvimentos teológicos, morais, históricos, sociais e culturais, permitem que o autor refaça ou enquadre temáticas e problemáticas, desafiando outros a refletir sobre as questões que se colocam ao mundo de hoje e concretamente à Igreja e à fé.
Nas diferentes temáticas, a linguagem do Papa é muito acessível, mesmo naqueles temas que exige maior cuidado e argumentação. Nesses casos, Bento XVI recorre a uma ou outra imagem facilitando a compreensão, como quando aborda a realidade da transubstanciação na Eucaristia.
Há apontamentos que mostram a delicadeza para com o seu sucessor, o Papa Francisco, o que merece registo. "No final das minhas reflexões gostaria de agradecer ao papa Francisco por tudo o que faz para nos mostrar continuamente a luz de Deus, que mesmo hoje não se extinguiu. Obrigado, santo Padre!" Ao abordar a teologia moral e a misericórdia divina: "... Aqui devemos encontrar a unidade interior da mensagem de João Paulo II e as intenções fundamentais do papa Francisco: contrariamente ao que por vezes se diz, Jão Paulo II não foi rigorista moral. Demonstrando a importância da misericórdia divina, ele dá-nos a oportunidade de aceitas as exigências morais que se colocam ao homem, ainda que não possamos nunca satisfazê-las cabalmente. Os nossos esforços morais são empreendidos sob a luz da misericórdia de Deus, que se revela uma força que cura a nossa fraqueza".
Ao responder a uma questão sobre o Ano de são José, proclamado pelo Papa Francisco: "Naturalmente, fico particularmente feliz por o Papa Francisco ter reavivado nos fiéis a consciência da importância de são José; e depois li com enorme gratidão e profunda adesão a carta apostólica Patris Corde que o Santo Padre escreveu para o 150.º aniversário da proclamação de são José como patrono universal da Igreja universal. É um texto muito simples que vem do coração e vai ao coração, e que exatamente por isso é muito profundo. Penso que este texto deve ser lido e meditado assiduamente pelos fiéis, contribuindo assim para a purificação e para o aprofundamento da nossa veneração dos santos em geral e de são José em particular".
Verifica-se que Bento XVI não foge a questões, em forma de resposta a perguntas que lhe são colocadas ou no desenvolvimento dos temas, mostrando a discordância com este ou aqueloutro autor, num convite à persistência da reflexão dos temas mais problemáticos. Sobre a Comissão da Teológica Fundamental, cujo Presidente era o mesmo que o da Congregação para a Doutrina da Fé e também da Pontifícia Comissão Bíblica, tendo assumido ele, cardeal Ratzinger, esse mandato e serviço durante muitos anos, quase na totalidade do pontificado de João Paulo II, reflete questões como a Teologia da Libertação, com momentos de grande debate. É curioso o apontamento pessoal que faz sobre um teólogo: "O meu amigo padre Juan Alfaro SJ, que na Gregorina ensinava sobretudo a Doutrina da Graça, por razões que me são totalmente incompreensíveis, com o passar do tempo tornara-se num apaixonado defensor da teologia da libertação. Não queria perder a amizade com ele e assim essa foi a única vez, em todo o período da minha pertença à comissão, que faltei à Assembleia Geral".  Também nisto se vê a sua humanidade: a amizade prevaleceu à disputa e discordância teológica.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Véronique Olmi - santa Bakhita

VÉRONIQUE OLMI (2019). Santa Bakhita. Porto: Porto Editora. 336 páginas

Há livros que nos tiram o fôlego e queremos ler de uma assentada. Este é um destes livros, biográficos, sobre a vida de santa Bakhita, feita escrava, originária do Sudão, levada para a Itália, onde se converte e se tornará santa, numa vida simples, dedicada, ao serviço de todos, sobretudo dos mais simples e frágeis, obediente, disponível, alegre.

Contracapa / apresentação:
Quando Bakhita foi raptada da sua aldeia natal, no Sudão, tinha apenas sete anos e estava longe de imaginar a extraordinária odisseia em que ia transformar-se a sua vida.
Feita escrava pelos raptores, vendida, trocada e oferecida várias vezes, conheceu a maldade humana em toda a sua dimensão e sentiu-a na pele ao ser vítima da crueldade dos seus senhores.
Anos mais tarde, um cônsul italiano comprou-a, e foi na Europa, depois de uma batalha judicial, que Bakhita voltou a conhecer a liberdade. Abraçou, então, a vida religiosa junto das Irmãs Canossianas, em Veneza, e atravessou o tumulto das duas guerras mundiais, consagrando a vida às crianças pobres e auxiliando os soldados feridos.
É essa história que Véronique Olmi conta de forma tocante neste seu romance, que em 2017 venceu o Prémio Fnac e foi finalista dos Prémios Femina e Goncourt – a história de uma criança feliz que veio a passar pelos maiores sofrimentos, mas que acabou canonizada por João Paulo II.
A autora:
Véronique Olmi nasceu em Nice, França, em 1962, e vive atualmente em Paris.
Tem escrito peças de teatro, romances e novelas. A sua obra encontra-se atualmente traduzida em vinte idiomas, sendo os seus textos dramáticos representados em França e em vários palcos internacionais.
O primeiro romance que publicou, Bord de Mer (2001), recebeu o Prémio Alain-Fournier. Uma década depois, ganhou o Prémio Maison de la Presse com o livro Cet Èté-Là.
A escrita flui, numa narrativa acessível, escorreita, biografia em forma de romance, que nos faz entrar na história e querer saber mais, ir adiante. É uma vida riquíssima, mas também um belíssimo testemunho de fé e de resiliência, de confiança no grande "Patrão", na identificação daquele "filho", também escravo, prisioneiro, crucificado.

Domingo XIX do Tempo Comum - ano A - 13.agosto.2023

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Jesus foi morto a 7 de abril do ano 30

Jesus iniciou o Seu ministério público, como pregador itinerante, como Profeta, como Filho do Homem e de Deus, aos 34 anos de idade.


Centralidade do anúncio de Jesus: a novidade e proximidade do Reino de Deus. Novidade, futuro, esperança e os Velhos do Restelo.

Com a novidade do Reino, a conversão e a mudança de vida. Mudar não por mudar, mas procurar sempre e mais ser rosto de Jesus Cristo, ser o que se é pelo batismo: Filho/a de Deus.
Nunca é tarde para começar... ou recomeçar... se for para dar mais qualidade à vida...

Em alguns livros, e em alguns meios, continua a dizer-se que Jesus morreu com 33 anos, tendo iniciado a vida pública aos 30 anos de idade (informação dada por São Lucas).
Hoje é pacífico, ainda que não totalmente divulgado, que a morte de Jesus ocorreu quando Ele tinha 37 anos de idade e a Sua morte teria sido na sexta-feira, a 7 de abril do ano 30. Seguindo os evangelhos, Jesus morreu em véspera de sábado e naquele ano a Páscoa judaica ocorreu a um sábado. O calendário judaico é lunar, e a páscoa, a 14 de Nizan, pode cair a qualquer dia da semana. Nos anos 27, 30 e 33 da era cristã caiu num sábado. Morto a 27, era muito pouco tempo para a vida pública, tinha iniciado há pouco a pregação. Morto no ano 33, seriam 6 anos de pregação e os evangelhos não permitem extender por tanto tempo a sua vida pública, pois no máximo Jesus participou em 3 páscoas (segundo São João) no mínimo pelo menos numa páscoa. Daí que se calcule a vida pública entre 1 ano e meio a três anos. Há outros dados históricos que ajudam a situar cm alguma precisão a data da morte de Jesus, confrontando com os dados dos evangelhos, como por exemplo, Pôncio Pilatos exerceu o poder como autoridade romana entre o ano 26 e 36 depois de Cristo (da era cristã); Caifás entre 19 e 36 depois de Cristo...

Mas como é que morreu com 37 anos, no ano 30 da era cristã, se com Ele que se inicia a era cristã?
Vamos por partes. A data do nascimento de Jesus não se conhece com exatidão, nem o dia nem o mês nem o ano de nascimento. Festeja-se o nascimento a 25 de dezembro, quando os pagãos festejavam o deus Sol, no solstício de inverno. Para os cristãos, o verdadeiro Sol é Jesus Cristo, a Luz do Mundo. É aceitável que Jesus tivesse nascido na primavera/verão, pois se os pastores estavam por ali não poderia ser no inverno... A escolha de 25 de dezembro foi uma forma prática de "substituir" e cristianizar uma festa pagã.

O calendário cristão foi elaborado, no século VI, pelo monge Dionísio, o Exíguo, a pedido do Papa João I, tendo colocando o nascimento de Jesus a 25 de dezembro do ano 753 da fundação de Roma, e o início da era cristão em 1 de janeiro de 754, da fundação de Roma, oito dias depois, na Circuncisão de Jesus.

Dionísio ter-se-á enganado, colocando o nascimento de Jesus 4 anos depois da morte de Herodes. Contudo, Herodes estava no poder quando Jesus nasceu, o que obrigou a recuar a data de nascimento: entre 4 a 7 anos. Nesta lógica, e seguindo vários autores, optando por recuar até 7 anos, nós estaríamos neste momento no ano 2021 (partindo do nascimento de Jesus. Quando se descobriu o lapso de tempo em falta, já era tarde para corrigir a história e os respetivos documentos escritos...)

Se morreu no ano 30 e se nasceu no ano 7 antes da era cristã, Jesus morreu com 37 anos de idade. Sublinhe-se também que a esperança média de idades andava pelos quarenta anos. Não se pode dizer que Jesus tenha morrido demasiado novo, ainda que fosse antes do tempo, já que foi morto.

A pregação, a vida pública de Jesus durou três anos (ano e meio, no mínimo, a três anos, no máximo, segundo os vários evangelhos). Logo, começou a Sua pregação com (33 ou) 34 anos, na primavera do ano 27, depois de ter sido batizado por João Batista e eventualmente depois deste ter sido preso.

Os 30 anos é a idade em que todos os profetas iniciam a Sua missão. Estão preparados, maduros, já viveram muito tempo, já cresceram. Chamados desde o seio materno mas só se manifestam publicamente na idade adulta. 30 anos é uma idade simbólica. Logo se Jesus é profeta (ou o Profeta, por excelência), também Ele inicia o Seu ministério com 30 anos (mais um, dois ou três ou quatro, continua a ser 30 anos).

Depois desta precisão, voltemos ao ponto de partida desta reflexão.
Nunca é tarde para mudar. Com efeito a nossa vida transforma-se constantemente. Gostaríamos de preservar tudo o que vem de trás, mas nem sempre é possível, melhor, o que "herdámos" da nossa vida há de ser assimilado e transformado na vida presente e futuro. Somos seres em devir, em transformação. Como crentes, ainda mais, na abertura para Deus, Deus da nossa Esperança, acreditando que cada passo que dermos na fidelidade a Jesus Cristo será uma forma de atualizarmos o tempo presente, sem perdemos o melhor que recolhemos do passado.

Com efeito, Jesus inicia a vida pública com a pregação que se centra na originalidade/novidade do reino de Deus e na necessidade de nos abrirmos aos novos céus e nova terra que Jesus vem trazer com o Seu amor, com a Sua vida, a entregar por nós.

Os velhos do Restelo são aqueles que nunca estão satisfeitos com nada, nunca se dispõem a ajudar na transformação do mundo, nunca colaborarão para melhorar o meio envolvente em que vivem, querem que tudo permaneça como está, qual fotografia que se vai deslavando até perder toda a coloração...

Todos podemos ter em nós restos d' Os velhos do Restelo... Jesus deparou-se com uma sociedade certa e orgulhosa da Sua história. Também isso O levou à Cruz, os interesses instalados, a surpresa da Sua mensagem, a provocação das Suas palavras e da Sua vida... mas mudou os que se Lhe abriram de todo o coração, mudou o mundo inteiro, ainda que precisemos de novo de O acolher para continuarmos a mudar o que em nós é urgente mudar, para sermos transparência do Seu amor, no mundo em que vivemos.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Domingo I da Quaresma - ano A - 26 de fevereiro de 2023


1 – Sabe-nos bem melhor aquilo que nos sai da pele! Esta afirmação vale, sobretudo, depois do esforço e do empenho que colocámos numa tarefa e quando alcançámos o que pretendíamos. A priori, e diante das dificuldades que divisamos, preferiríamos situações mais fáceis, que tudo se resolvesse sem dor, que tudo surgisse como que por magia, sem sujarmos as mãos.

Aos outros, quando entreveem dificuldades no caminho que têm pela frente, e face à nossa experiência, logo dizemos que sem esforço, sem trabalho, não há recompensa e que esta será tanto mais compensadora quanto mais exigiu compromisso, dedicação e trabalho.

Há uma impressão muito popular e arreigada, de que aquilo que se recebe de mão-beijada quase sempre é desbaratado, pouco valorizado e, muitas vezes, não é suficientemente agradecido. Ou, como quem diz, gastamos a rodos quando não somos nós ganhá-lo e quando não sabemos o quanto nos custou. Conseguimos ouvir os pais a reclamar com os filhos pela facilidade em gastarem o que não tiveram esforço em conseguir.

Algo de semelhante sucede no plano da fé. Tudo seria mais fácil se a fé fosse demonstrável nas suas verdades e intuições fundamentais. A fé servida à medida de cada um, com provas irrefutáveis, sem possibilidades de engano, desvio ou dúvida. Nem sempre a fé é fácil. Em momentos de treva, nas tempestades da vida, no sofrimento inocente, nas catástrofes naturais, nas doenças incuráveis, nas mortes repentinas e em tenra idade, questiona-se a bondade de Deus.

 

2 – No primeiro Domingo da Quaresma, o Evangelho traz-nos as tentações de Jesus, este ano na versão mateana. As tentações e fragilidades expressam a humanidade de Jesus, sujeito às limitações e condicionantes humanas. Por outro lado, as tentações de Jesus fazem-nos visualizar as tentações que nos apoquentam e com as quais, nem sempre, conseguimos lidar. São Lucas e são Mateus condensam as tentações a três; são Marcos refere-as sem número. São colocadas no início da vida pública, no retiro que Jesus faz, no deserto, durante quarenta dias. Porém, as tentações estão presentes ao longo de toda a vida, como se pode ver no momento da oração de Jesus no Jardim das Oliveiras e no alto da Cruz. A tentação da desistência ou do questionamento de Deus.

Jesus, diz-nos o evangelho, foi conduzido pelo Espírito ao deserto. É o primeiro aspeto a ter em conta. Pode parecer que o centro sejam as tentações, mas o relevante é a presença constante do Espírito na vida de Jesus. O Espírito de Deus que é visível no Batismo em forma de pomba e audível também a voz do Pai.

O tentador aproximou-se e disse-lhe: «Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães»... Então o Diabo conduziu-O à cidade santa, levou-O ao pináculo do templo e disse-Lhe: «Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo, pois está escrito: ‘Deus mandará aos seus Anjos que te recebam nas suas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’»... De novo o Diabo O levou consigo a um monte muito alto, mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-Lhe: «Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares».

Jesus responde, decidido: «Está escrito: ‘Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus’... Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus’... Vai-te, Satanás, porque está escrito: ‘Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto’. Então o Diabo deixou-O e aproximaram-se os Anjos e serviram-n'O».

O caminho de Jesus é do amor, da compaixão, do serviço aos irmãos. Não usa a sua divindade em proveito próprio, para se exibir e impor, para dominar os outros. Ele que Se revela como caminho, verdade e vida, percorre um caminho de entrega, que comporta riscos e que implica sacrifício.

 

3 – A primeira leitura traz-nos a narração da queda dos nossos primeiros pais. Não é, todavia, uma história pessoal, circunscrita a um tempo e exclusiva de duas pessoas. É a nossa história. Pertencemo-nos, somos do mesmo pó e em nós está presente o mesmo espírito com que Deus nos chamou à vida. Fácil é vermos o mal que os outros nos fazem ou ao mundo. Difícil é percebermos que estamos no mesmo barco e também nós somos agentes na construção de um mundo humano e solidário, ou carrascos da história pela nossa inação, indiferença, pelas nossas escolhas egoístas.

As tentações afetam-nos a todos. A uns mais que outros. Umas mais do que outras.

Deus criou o ser humano e predispôs de todas as condições para que fosse feliz, para que não lhe faltasse nada de essencial. «Fez nascer na terra toda a espécie de árvores, de frutos agradáveis à vista e bons para comer, entre as quais a árvore da vida, no meio do jardim, e a árvore da ciência do bem e do mal». Tudo foi criado para usufruto e cuidado do ser humano. De tudo quanto Deus criou, só um alerta, uma proibição: «Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus avisou-nos: ‘Não podeis comer dele nem tocar-lhe, senão morrereis’».

O fruto proibido é o mais apetecido! O provérbio virá daqui. Com efeito, um imenso jardim, com muitas árvores, com muitas frutas, acessível para todos! A tentação é revestida de provocação, de desafio e de promessa. Nada pode estar interdito! Até mesmo a condição divina! O simbolismo daquela única árvore, garante que todos estão sob a soberania de Deus. Quando alguém toca nesse fruto, isto é, quando assume o lugar de Deus, a consequência é colocar os outros como servos, súbditos, objetáveis na medida em que se submetem aos caprichos do "chefe"...

 

4 – Adão e Eva seguiram os impulsos mais básicos, recusando qualquer intromissão na sua liberdade, ainda que fossem criados livres. A liberdade, contudo, é também uma responsabilidade. Não estamos sozinhos no Paraíso. O nosso Bispo, D. António, diz-nos que o pecado não está em comer do fruto daquela árvore, mas em recolhê-lo para que ninguém mais possa ter acesso e usufruir do que Deus criou para todos. Tudo podemos, dirá são Paulo, mas nem tudo nos convém!

O que Deus coloca como interdito? Aquilo que nos afasta dos outros, endeusando-os ou instrumentalizando-os! Na verdade, Deus criou-nos livres e deu-nos o encargo de cuidar da criação inteira. Cuidar não é usurpar ou destruir, não é arrebanhar para si, mas criar as condições para que todos tenham acesso.

Os primeiros pais centram-se em si mesmos e nas suas necessidades. Jesus, no Evangelho, mostra como vencer as tentações, colocando Deus no centro, agindo, não em benefício próprio, mas em favor dos outros. Ele gasta-Se, entrega-Se, vive, e morre, para que tenhamos vida e vida em abundância.

Na segunda Leitura, são Paulo relaciona e coloca em confronto a escolha de Adão, e de todos os que se querem tornar deuses pela força, pela imposição, pela idolatria, e de Jesus, e de todos os que se assemelham a Deus, dando-se e promovendo a vida, construindo a fraternidade.

«Se pelo pecado de um só todos pereceram, com muito mais razão a graça de Deus, dom contido na graça de um só homem, Jesus Cristo, se concedeu com abundância a todos os homens. E esse dom não é como o pecado de um só: o julgamento que resultou desse único pecado levou à condenação, ao passo que o dom gratuito, que veio depois de muitas faltas, leva à justificação... De facto, como pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, todos se tornarão justos».

 

5 – Por mais controlo que queiramos ter sobre a vida, o tempo, os outros, cedo ou tarde nos daremos conta que não é possível um controlo absoluto e permanente. Ao nosso alcance as escolhas que fazemos, certos de que não possuímos os dados todos a cada momento e que nem tudo é linear. A vida é muito mais, imensamente mais do que aquilo que conseguimos visualizar, imaginar ou controlar. Por vezes, como dirá são Paulo, fazemos o que não queremos e não fazemos o que queremos. A vida é um mundo complexo e misterioso.

Pelo caminho, experimentamos a dúvida e a hesitação, os contratempos e os desencontros. Mas não estamos sós, não caminhamos sozinhos. Contamos com os outros, com as indicações no caminho, com os mandamentos, normas e preceitos! Contamos com Deus, que segue connosco, se deixarmos e Lhe abrirmos o nosso coração e a nossa vida. Ele vem em nosso auxílio se a Ele recorrermos.

O salmista ajuda-nos, na nossa súplica, a reconhecer a nossa indigência e a dispor-nos a acolher a santidade de Deus: «Compadecei-Vos de mim, ó Deus, pela vossa bondade, pela vossa grande misericórdia, apagai os meus pecados. / Pequei contra Vós, só contra Vós, e fiz o mal diante dos vossos olhos. / Criai em mim, ó Deus, um coração puro e fazei nascer dentro de mim um espírito firme. Não queirais repelir-me da vossa presença e não retireis de mim o vosso espírito de santidade. / Dai-me de novo a alegria da vossa salvação e sustentai-me com espírito generoso. Abri, Senhor, os meus lábios e a minha boca cantará o vosso louvor».

A oração de coleta, no início da Eucaristia, pode bem ser uma oração para toda a Quaresma: «Concedei-nos, Deus todo-poderoso, que, pelas práticas anuais do sacramento quaresmal, alcancemos maior compreensão do mistério de Cristo e demos testemunho dele com uma vida digna».

O acolhimento do mistério de Deus, compromete-nos com os outros, na fidelidade a Jesus, procurando viver ao Seu jeito, amando e cuidando de todos, especialmente dos mais frágeis. A transformação do mundo, a paz e a justiça também dependem de nós, da nossa oração e da nossa conversão, e da tradução real e concreta, tanto quanto nos seja possível, do que somos, cristãos, no que fazemos, a prática do bem, sem tréguas.

 

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (A): Gn 2, 7-9 – 3, 1-7; Sl 50 (51); Rm 5, 12-19; Mt 4, 1-11

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Domingo VII do Tempo Comum - ano A - 19.fevereiro.2023


1 – «Olho por olho e dente por dente». É ditado antigo e corresponde à chamada Lei de Talião. Levado à letra, por certo, seríamos todos cegos e desdentados, pois não supõe perdão ou comutação de penas. Em todo o caso, é um avanço considerável no plano da justiça, já que coloca limites à vingança ou à retaliação. A resposta a uma agressão terá de ser na mesma proporção. Se te cortam um braço, não podes cortar uma cabeça; se te matam uma ovelha, tens direito a outra daquele que te matou a tua.
No livro do Êxodo diz-se que se algum homem ferir uma mulher grávida, um dos exemplos, e se houver dano grave, "então darás a vida por vida, olho por olho, dente por dente, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe". E continua: "se alguém ferir o olho do seu escravo ou o olho da sua serva, e o inutilizar, deixá-lo-á livre pelo seu olho. Se fizer cair um dente do seu escravo ou um dente da sua serva, dar-lhe-á liberdade pelo seu dente" (Ex 21, 24ss). A preocupação é benevolente, procura evitar desproporcionalidade e, como se pode ver, nalguns casos, a reparação vai além de paga igual. Faz-se também a distinção entre a ignorância – se um boi ferir alguém, será apedrejado e morto e a sua carne não será comida, mas o dono será absolvido – e a negligência – se o dono sabia que o boi marrava e não se precaveu, ferindo alguém, será morto o boi e o dono!
 
2 – No Sermão da Montanha, Jesus insiste que não basta evitar o mal, é necessário fazer o bem, perdoar, construir pontes de diálogo e paz. «Eu, porém, digo-vos: Não resistais ao homem mau. Mas se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda. Se alguém quiser levar-te ao tribunal, para ficar com a tua túnica, deixa-lhe também o manto. Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas. Dá a quem te pedir e não voltes as costas a quem te pede emprestado».
Mas atenção, o mandamento de Jesus não é um convite ao perpetuar de injustiças, pois a misericórdia pressupõe a justiça. Trata-se de não responder com violência à violência, sabendo que se cairá num círculo vicioso que multiplicará a violência, alargando os intervenientes na família e nos grupos de amigos. A dinâmica diz-me respeito e a ti, se reagimos em tons de violência e agressão, ou se colocamos um ponto final e apostamos em corrigir, pacificamente, as injustiças.
E Jesus continua: «Ouvistes que foi dito: ‘Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem, para serdes filhos do vosso Pai que está nos Céus; pois Ele faz nascer o sol sobre bons e maus e chover sobre justos e injustos. Se amardes aqueles que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem a mesma coisa os publicanos? E se saudardes apenas os vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não o fazem também os pagãos? Portanto, sede perfeitos, como o vosso Pai celeste é perfeito».
A referência é Deus Pai e a Sua perfeição. Mais do que nos guiarmos pelos nossos impulsos, ponderemos, procurando guiar-nos pelos desígnios amorosos de Deus. Jesus desafia-nos a amar os próprios inimigos e a rezar por eles, porque, mesmo que nos tenham feito mal, continuam a ser filhos amados de Deus, que é Pai de todos, bons e maus.
 
3 – Na fidelidade à mensagem e ao agir de Jesus, São João da Cruz dirá que o amor se paga com amor. Esta expressão tornou-se um ditado popular conhecido, mas que é, habitualmente, usado em sentido diverso. Amor com amor se paga equivale a outra máxima: pagar com a mesma moeda. É um sentido negativo que pressupõe responder a uma ofensa ou agressão com a mesma medida. Nesta perspetiva estaríamos apenas na lei de talião.
Deus amou-nos de tal forma que nos entregou o Seu Filho muito amado. O amor de Deus é pleno. Jesus mostra-no-lo ao gastar-Se inteiramente a favor da humanidade. Sem reservas nem condições. Não tem a ver com merecimentos. Não é por sermos bons. Oferece a Sua vida porque nos ama, porque nos quer bem, porque quer que a nossa vida seja abundante, feliz e abençoada, e duradoura. É a vontade do Pai concretizada, traduzida e realizada n’Ele. Os pais fazem o que fazem pelos filhos antes de estes o merecerem ou fazerem algo por isso, e continuam a fazer tudo pelos filhos mesmo que eles sejam ingratos e injustos. Assim age Deus connosco.
Ora, é a este amor imenso que nos cabe responder, amando, cuidando e servindo os irmãos. É a lógica de São João da Cruz assente no Evangelho, na vida, morte e ressurreição de Jesus. O amor que acolhemos há de expandir-se e aprofundar-se no amor aos outros. É a vingança do cristão: amar. Amar, perdoar e servir, mesmo no meio da ingratidão e da injustiça.
 
4 – Através de Moisés, Deus faz saber os Seus desígnios de amor. Deus é o Deus do Povo na medida em que o Povo procura estar e viver sintonizado com a Sua vontade. O caminho é o da santidade e a referência é o próprio Deus. «Sede santos, porque Eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo».
Em que consiste a santidade: «Não odiarás do íntimo do coração os teus irmãos, mas corrigirás o teu próximo, para não incorreres em falta por causa dele. Não te vingarás, nem guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo».
A santidade expressa-se e vive-se no amor, procurando "resgatar" o outro, não com vinganças e ódios, mas com amor. O bem que queremos para nós havemos de o querer para os outros, agindo em conformidade. Jesus dilatará o nosso coração para que amemos, não apenas na medida do que somos, limitados e finitos, mas na medida do Seu amor, total, infinito, perfeito, sem condições.
Deus age, na Sua sabedoria e no Seu amor, do lado do perdão e da bênção, como reza o salmista: «Ele perdoa todos os teus pecados e cura as tuas enfermidades; salva da morte a tua vida e coroa-te de graça e misericórdia. / O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade; não nos tratou segundo os nossos pecados, nem nos castigou segundo as nossas culpas. / Como o Oriente dista do Ocidente, assim Ele afasta de nós os nossos pecados; como um pai se compadece dos seus filhos, assim o Senhor Se compadece dos que O temem».
É o motivo para Lhe respondermos, em tons de louvor e ação de graças: «Bendiz, ó minha alma, o Senhor e todo o meu ser bendiga o seu nome santo. Bendiz, ó minha alma, o Senhor e não esqueças nenhum dos seus benefícios».
 
5 – São Paulo sublinha a santidade e a sabedoria de Deus que deve orientar as nossas escolhas como discípulos de Jesus Cristo. Mais que os nossos méritos, devemos assentar certezas no Espírito de Deus que nos habita. Não temos que nos gloriar, para sermos referência para os outros ou para nos colocarmos em patamar superior. Tudo nos vem de Deus. Tudo é de Cristo.
«Ninguém tenha ilusões. Se alguém entre vós se julga sábio aos olhos do mundo, faça-se louco, para se tornar sábio. Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus, como está escrito: 'Apanharei os sábios na sua própria astúcia'. E ainda: 'O Senhor sabe como são vãos os pensamentos dos sábios'. Por isso, ninguém deve gloriar-se nos homens. Tudo é vosso: Paulo, Apolo e Pedro, o mundo, a vida e a morte, as coisas presentes e as futuras. Tudo é vosso; mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus».
Somos templo do Espírito Santo, deixemos que prevaleça em nós a santidade de Deus. "Concedei-nos, Deus todo-poderoso, que, meditando continuamente nas realidades espirituais, pratiquemos sempre, em palavras e obras, o que Vos agrada".
 
Pe. Manuel Gonçalves

Textos para a Eucaristia (A): Lv 19, 1-2. 17-18; Sl 102 (103); 1Cor 3, 16-23; Mt 5, 38-48.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Domingo VI do Tempo Comum - ano A - 12.fevereiro.2023


1 - «A vossa linguagem deve ser: ‘Sim, sim; não, não’. O que passa disto vem do Maligno».
Bem-aventurados os transparentes porque deles será o reino dos Céus. Há a ideia que devemos reservar informações para nós, não dizermos tudo, calarmos, pois, os outros não têm que saber da nossa vida, não precisam de saber o que nós sabemos e porque quem controla a informação controla o poder, controla os outros. Ideia romântica de mantermos o mistério acerca de nós, para captar a curiosidade e a atenção dos outros. Porém, ser transparente não anula o mistério que nos caracteriza como pessoas e, por outro lado, o mistério e o misticismo com que queremos prender o outro, cedo se desvanecerão. Não será tanto o mistério, mas os segredos, as reservas, o escondimento! Como todo o bom segredo, desfaz-se quando é revelado, e chegará a altura em que a outra pessoa se cansa de esperar ou simplesmente falta o essencial: a amizade, o amor, a cumplicidade.
A linguagem também diz a pessoa. Quem é transparente, não precisa de jurar. E não adianta jurar perante quem não está disposto a escutar ou a confiar.
O Mestre dos Mestres, no Sermão da Montanha, aponta para um ideal, não impossível ou distante, mas como caminho, procura, compromisso, resiliência. Com facilidade, olhamos mais para o que nos é proibido, para o que não podemos fazer, para o que nos está interdito; mas o que nos humaniza é o que nos irmana, as possibilidades imensas que temos de dizer e fazer o bem, deixando que a nossa vida seja preenchida do amor de Deus, embelezando-a, vivendo a e concretizando-a no amor aos outros.
O amor nunca é uma prisão! O amor tem asas, torna-nos mais leves, mais alegres e felizes. O amor aproxima-nos, torna-nos iguais, torna-nos irmãos. O amor faz abrir todos os nossos poros para nos darmos e respirarmos a vida. O que nos prende é o medo de perder, a confiança traída, é a possibilidade de não sermos correspondidos; o que nos aprisiona é a falta de confiança no outro, o egoísmo, a posse! Quem se sente preso, fica por obrigação, por pena ou por compaixão, ou à espera de oportunidades mais desafiadoras/compensadoras! Quem fica porque ama, não tem motivos para fugir, para se esconder. Quem ama permanece, compromete-se, enraíza-se na vida dos outros e na transformação do mundo, para o tornar habitável, saudável e favorável para aqueles que ama. É o que faz Deus, em Jesus Cristo, vem habitar, vem para permanecer, amando.

2 - As leis servem de orientação e de aviso. Na elaboração das normas e dos preceitos está a preocupação de ajudar as pessoas a viverem melhor, a criarem harmonia na comunidade, a sentirem-se mais seguras no seu agir. As leis são produzidas a partir das dificuldades encontradas, de situações de conflito, do que correu mal, a partir da experiência vivida, procurando evitar situações que fizeram, ou fazem, sofrer as pessoas e que destruturam a convivência saudável dentro da comunidade.
Em absoluto, as leis seriam desnecessárias se fôssemos perfeitos e omniscientes, sabendo em cada momento o que era melhor para todos e "adivinhando" as reações dos outros. Neste caso, só sendo deuses ou marionetas!
A delicadeza de Jesus, a abertura com que lida com todos, a proximidade aos mais pobres, doentes, publicanos, pecadores, mulheres e crianças, estrangeiros, poderia fazer-nos entrever uma anarquia, uma sociedade sem leis. Este ideário é, aliás, referenciado a Confúcio, que defendia uma sociedade sem leis, baseada em princípios éticos sólidos. Em todo o caso, os princípios éticos têm também uma formulação "legislativa", não tanto pela imposição ou pelas penalizações, mas por valores que orientam as pessoas para o bem, dispensando castigos ou coimas. Ama e faz o que quiseres, diz-nos Santo Agostinho, pois quem ama não se centra em si mas no bem do outro, da pessoa amada.
No Sermão da Montanha, Jesus coloca o acento tónico no amor, na misericórdia, na procura sincera e persistente em beneficiar o próximo, mesmo que isso implique sacrifício e sofrimento para aqueles que se envolvem a dar o melhor de si mesmos.
Jesus não vem revogar a Lei ou os Profetas, mas levar à plenitude, asseverando o seu cumprimento, não como peso, mas como superação e compromisso. Imediatamente, Jesus contrapõe aos mínimos legalistas o esforço constante por viver em lógica de serviço e doação.

3 - O que ouvistes aos antigos, renova-se, reformula-se, preenche-se de vida e de amor. Eu, porém, digo-vos: «Se a vossa justiça não superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos Céus... Todo aquele que se irar contra o seu irmão será submetido a julgamento. Quem chamar imbecil a seu irmão será submetido ao Sinédrio, e quem lhe chamar louco será submetido à geena de fogo».
Do mínimo respeitador, legal, cumpridor, ao máximo inclusivo, caritativo e misericordioso. «Se fores apresentar a tua oferta ao altar e ali te recordares que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar, vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão e vem depois apresentar a tua oferta».
O incisivo: não esperes que quem te fez mal venha pedir perdão, vai tu ao seu encontro e procura saber as razões e sobretudo fazer com que regresse a paz e a harmonia. Não podemos apresentar-nos diante de Deus com razões de queixa! Tudo é transparente ao olhar de Deus, também os nossos desvios, amuos e pecados. Aproximar-nos d'Ele implica estarmos dispostos a deixar que o Seu olhar nos toque, nos ilumine e transforme.
Com efeito, Jesus quer que até o nosso olhar seja límpido, acolhedor, promotor de saúde. «Ouvistes que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. Eu, porém, digo-vos: Todo aquele que olhar para uma mulher com maus desejos já cometeu adultério com ela no seu coração».
As mãos como os olhos hã de permitir-nos amar e acolher a beleza que vem de Deus através dos irmãos.

4 - O sábio de Israel, na primeira leitura, apresenta os mandamentos como uma escolha entre a cultura da vida e a cultura da morte. Tal como Jesus, também o sábio apresenta a Lei como um desafio que caberá a cada um acolher. Com o desafio, clarificam-se as consequências das escolhas.
Diz Ben Sirá: «Se quiseres, guardarás os mandamentos: ser fiel depende da tua vontade. Deus pôs diante de ti o fogo e a água: estenderás a mão para o que desejares. Diante do homem estão a vida e a morte: o que ele escolher, isso lhe será dado. Porque é grande a sabedoria do Senhor, Ele é forte e poderoso e vê todas as coisas. Seus olhos estão sobre aqueles que O temem, Ele conhece todas as coisas do homem. Não mandou a ninguém fazer o mal, nem deu licença a ninguém de cometer o pecado».
Olhando para o mundo, podemos não compreender tudo o que sucede. O sismo que atingiu a Turquia e a Síria, coloca-nos dúvidas, inquietações e perguntas para as quais não temos resposta fácil. Porém, muito do que acontece no mundo resulta das escolhas de pessoas, grupos, países, líderes, como, por exemplo na guerra da Rússia contra a Ucrânia, cujas opções têm conduzido à destruição, à insegurança, e à morte de muitas pessoas.

5 - Por sua vez, o Apóstolo da Palavra fala da sabedoria que vem do alto. O tom é o de Cristo, a linguagem não visa iludir, criar suspense, ameaçar. É uma linguagem enformada pelo Espírito de Deus.
A eloquência e a retórica podem levar a um convencimento artificial, coagindo e prometendo o que não se pode dar. A sabedoria com que o apóstolo prega faz-nos olhar para a cruz, para a alegria e para a paz, não à custa da demissão, da indiferença, mas consequência da entrega, da doação e do sacrifício.
«Nós falamos da sabedoria de Deus, misteriosa e oculta... Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu; porque se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito, 'nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que Deus preparou para aqueles que O amam'. Mas a nós Deus o revelou por meio do Espírito Santo, porque o Espírito Santo penetra todas as coisas, até o que há de mais profundo em Deus».
A sabedoria não é conquista ou usurpação, é recebimento e acolhimento da graça de Deus que nos inspira, ilumina, preenche e nos compromete na missão. Foi assim com Paulo e será assim connosco se cooperarmos com o Espírito de Deus.

6 - Não somos ilhas isoladas, não carregamos, sozinhos, o mundo às costas; sozinhos vamos perto, perdemos a orientação e o sentido, desanimaremos e deixaremos de saber se estamos no caminho certo. Seguimos juntos com os outros, seguimos sob o olhar, a proteção e a bênção de Deus. Só assim os nossos esforços e compromisso serão viáveis e garantidos para lá do tempo, da história, das promessas e da finitude.
Rezamos confiantes: "Senhor nosso Deus, que prometestes estar presente nos corações retos e sinceros, ajudai-nos, com a vossa graça, a viver de tal modo que mereçamos ser vossa morada".
Fazemos da oração um propósito, dirigindo o nosso olhar, o nosso coração e a nossa vida para Deus, e dispomo-nos a acolher a sua vontade, para, dessa forma, em nós e através de nós, se transforme o mundo que habitamos. Sintonizemos com o salmista: "Felizes os que seguem o caminho perfeito e andam na lei do Senhor. Felizes os que observam as suas ordens e O procuram de todo o coração. / Oxalá meus caminhos sejam firmes na observância dos vossos decretos. / Abri, Senhor, os meus olhos para ver as maravilhas da vossa lei. / Ensinai-me, Senhor, o caminho dos vossos decretos, para ser fiel até ao fim. Dai-me entendimento para guardar a vossa lei e para a cumprir de todo o coração".
É este o sim que damos na oração, sabendo que para Deus somos sempre um sim, de graça, de bênção e salvação.

Pe. Manuel Gonçalves

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Domingo V do Tempo Comum - ano A - 5.fevereiro.2023


1 – No alto da montanha, continuamos a beber as palavras de Jesus.
Depois da bela e sugestiva Carta de Jesus aos seus discípulos, as Bem-aventuranças, segue-se esta analogia: vós sois o sal da terra, vós sois a luz do mundo.
O próprio Jesus clarifica: «Vós sois o sal da terra. Mas se ele perder a força, com que há de salgar-se? Não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisado pelos homens».
Nos nossos dias, tem havido um incentivo à utilização moderada do sal, pelos malefícios que poderá trazer à saúde, substituindo-o por outros condimentos. Apesar disso, o sal continua a ser um elemento essencial na dieta mediterrânea e na nossa alimentação diária. O desafio é moderar em conformidade com a saúde de cada um e com a respetiva idade. Mas voltemos à analogia. O sal serve para salgar, para preservar, para dar sabor. Melhor, o sal faz sobressair o sabor dos alimentos. Se for em excesso impede-nos de saber o sabor do que estamos a comer. Se for insuficiente é possível que também não nos saiba bem. O "gosto", o paladar, também se educa!

Sabemos bem o que significa ser uma pessoa insossa, sem sabor, que vive ao sabor dos ventos e das marés. Como alertava Séneca, quem não sabe para onde vai, qualquer vento lhe é desfavorável. É conhecido o alerta de Jesus: a vossa linguagem seja "sim-sim", e "não-não"; o talvez, o “nim”, não têm cabimento no nosso relacionamento com Deus e uns com os outros.
Deixemos que Cristo e a Sua palavra de amor sejam sal na nossa vida, dando-lhe sabor e sentido, temperando e animando as nossas escolhas, para que, por nossa vez, levemos sal, melhor, levemos sabor e sentido à vida dos outros.
 
2 – «Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se acende uma lâmpada para a colocar debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, onde brilha para todos os que estão em casa. Assim deve brilhar a vossa luz diante dos homens, para que, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está nos Céus».
Uma das características da Igreja, numa analogia avivada pelo santo Padre, é ser como a Lua em relação ao Sol. A Lua reflete a luz do Sol, assim a Igreja há de refletir a luz de Cristo. Se a Igreja se tornar opaca, autorreferencial, parafraseando o Papa Francisco, deixa de cumprir a sua missão lunar, a sua identidade. Como a Igreja, também os cristãos, eu e tu. A luz que nos habita vem de dentro, mas antes disso, veio e vem do alto.

Jesus é explícito, a luz existe para iluminar, para tornar transparente a vida, para nos permitir ver o bem e a verdade, para possibilitar caminhar, ir ao encontro dos outros e reconhecê-los como irmãos. Um mestre oriental tinha perguntado aos seus discípulos o momento exato em que a noite dava lugar ao dia. As respostas foram variadas, mas insuficientes. Quando o dia começa a clarear! Quando se vê a estrada que está à frente! Quando se distinguem os arbustos das silhuetas das pessoas! Mas, na verdade, é dia quando conseguimos ver que os outros são nossos irmãos.
É esta luz que acolhemos de Jesus, há de ser esta a luz que nos permite acolher o amor de Deus e comunicá-lo, partilhá-lo, concretizando-o no cuidado a todos os que Deus coloca na nossa vida.
 
3 – Somos luz quando absorvemos a luz de Jesus e iluminamos o caminho dos outros. Somos luz quando amamos, ajudamos, cuidamos. Somos luz quando perdoamos, quando acolhemos, quando vamos ao encontro dos outros, das suas necessidades e sofrimentos. Somos luz quando os outros vislumbram, em nós e através de nós, um caminho, uma saída, quando sentem paz e se sentem motivados para caminhar, para viver, quando readquirem confiança na vida, nas pessoas, em Deus.

O salmista exemplifica, desafiando-nos. «Brilha aos homens retos, como luz nas trevas, o homem misericordioso, compassivo e justo. Ditoso o homem que se compadece e empresta e dispõe das suas coisas com justiça. / Este jamais será abalado; o justo deixará memória eterna. Ele não receia más notícias: seu coração está firme, confiado no Senhor. / O seu coração é inabalável, nada teme; reparte com largueza pelos pobres, a sua generosidade permanece para sempre e pode levantar a cabeça com altivez».

A ligação essencial a Deus e aos irmãos garante que a luz não se apaga. Quanto mais ligados a Deus, maior a nossa luz; quanto mais comprometidos uns com os outros, maior o brilho da luz que nos vem do Senhor. Com efeito, é possível ser-se filantropo, sem fé ou, pelo menos, sem religião; mas não é possível ser crente, de verdade, se tal não nos conduzir ao compromisso sério e concreto com a transformação do mundo, no cuidado por toda a criação, a começar pelas pessoas.
 
4 – Os profetas relembram-nos que a religião pura e santa é o serviço ao órfão e à viúva, o cuidado pelos mais pobres. Podes cumprir todas as prescrições da Lei, mas se o teu coração não respirar ternura, amor, compaixão, vives uma ilusão que redundará em desolação e em desencanto. Deus não te pode dar o que não procuras, não garante a vida e o amor se tu não estiveres verdadeiramente envolvido com os outros. Ele revela-Se na vida, no mundo, na história, em plenitude, em Jesus Cristo. Não se trata de uma ideia, uma elucubração intelectual, uma divagação espiritual, sem chão, sem visibilidade. Jesus encarnou, tomou a nossa carne, a vida humana, tornou-Se visível no Seu corpo, com a Sua vida, gestos, palavras e prodígios. É possível situá-l'O no tempo e no espaço. Não é solúvel na nossa racionalidade ou nas nossas ideias.
Dirá o apóstolo são Tiago, uma fé sem obras é oca, vazia, é um disparate, uma desculpa ou uma distração. Não mais do que isso. Não nos colocamos de joelhos para esquecermos a vida, para esquecermos os outros, para nos esquecermos das dificuldades. Ajoelhamos para tomarmos consciência que Deus pode operar maravilhas em nosso favor e dos outros Seus filhos, nossos irmãos. Ajoelhamos para que o impulso do levantar e partir seja mais firme, mais luminoso, sustentado, não nas nossas capacidades, mas no amor de Deus. Não é possível que te ajoelhes para te esqueceres que és irmão dos outros e que Deus é Pai de todos. Na oração podes esquecer-te de ti, mas nunca dos outros! É uma palermice. A oração, como a fé, por mais contemplativa que seja, envolve sempre os outros, o mundo, a criação de Deus e os Seus desígnios de amor para a humanidade.

O profeta Isaías é categórico. Não te escondas nas tradições, nos sacrifícios, no templo, a não ser que aí revigores o teu empenho. «Reparte o teu pão com o faminto, dá pousada aos pobres sem abrigo, leva roupa ao que não tem que vestir e não voltes as costas ao teu semelhante».
Esta é a luz que nos identifica como crentes, como cristãos. Não se esconde uma cidade no alto do monte, nem se acende uma luz para a colocar debaixo do alqueire, diz-nos Jesus, a luz há de iluminar toda a casa, toda a vida. As obras de misericórdia traduzem e concretizam a fé, alimentam a luz. «Então a tua luz despontará como a aurora e as tuas feridas não tardarão a sarar. Preceder-te-á a tua justiça e seguir-te-á a glória do Senhor. Então, se chamares, o Senhor responderá, se O invocares, dir-te-á: ‘Aqui estou’. Se tirares do meio de ti a opressão, os gestos de ameaça e as palavras ofensivas, se deres do teu pão ao faminto e matares a fome ao indigente, a tua luz brilhará na escuridão e a tua noite será como o meio-dia».
 
5 – Na sua missiva, dirigida aos coríntios, são Paulo recorda como procurou ser transparente na linguagem, para transparecer Jesus Cristo e a Boa Nova que Ele é para nós e para o mundo. O risco do discípulo de Jesus, do apóstolo, é esquecer-se que não está em nome próprio e ficar em primeiro plano escondendo Jesus. Não é fácil. Cada um de nós, no mistério que transporta, aqui e além, necessita de ser reconhecido, sentir-se acolhido, amado, sentir-se visível, e não apenas um ponto luminoso a apontar para o Mestre dos Mestres, como se Ele não nos fizesse brilhar ainda mais.

A iniciar o Seu magistério papal, dizia Bento XVI:  "Quem faz entrar Cristo, nada perde, nada absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em par as portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade experimentámos o que é belo e o que liberta. Assim, eu gostaria com grande força e convicção, partindo da experiência de uma longa vida pessoal, de vos dizer hoje, queridos jovens: não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, ele dá tudo. Quem se doa por Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par em par as portas a Cristo e encontrareis a vida verdadeira".
Regressemos à imagem da Lua e da Igreja lunar. Como Corpo de Cristo, a Igreja vive-O, reflete-O, mostra-O, testemunha-O, aponta para Ele. O risco de quem olha é fixar-se no mensageiro e não na Boa Nova. Obviamente, o cristão não é, apenas, espelho, quanto muito é cubo de luz, que estando preenchido dissipa e irradia a luz de Cristo para os outros.

O apóstolo tem o cuidado de testemunhar Jesus. Fiz-me tudo para todos, para ganhar alguns para Cristo, Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim. «Quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com sublimidade de linguagem ou de sabedoria a anunciar-vos o mistério de Deus. Pensei que, entre vós, não devia saber nada senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado... A minha palavra e a minha pregação não se basearam na linguagem convincente da sabedoria humana, mas na poderosa manifestação do Espírito Santo, para que a vossa fé não se fundasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus».
Regressemos, uma e outra vez, à montanha, ou melhor, mantenhamo-nos perto daquela Luz que não conhece ocaso, Jesus Cristo, para que, vivendo iluminados, saboreemos a presença amorosa de Deus e sejamos sal e luz para este mundo que nos cabe cuidar.

 

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (A): Is 58, 7-10; Sl 111 (112); 1Cor 2, 1-5; Mt 5, 13-16.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Domingo IV do Tempo Comum - ano A - 29.janeiro.2023


1 – O cristianismo, mais que um emaranhado de normas, de leis, costumes e tradições, é um encontro. No dizer do Papa Bento XVI, a fé começa a partir do encontro com Jesus. "No início do ser cristão não há uma decisão ética, ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo" (Deus caritas est, 1).
É este encontro que nos converte, nos mobiliza e nos compromete com os Seus desígnios de ternura, de perdão e de fraternidade. O encontro com Jesus faz germinar a fé, torna-nos capazes de acolher Deus e o Seu amor. É um encontro que gera vida, que porta a Boa Nova da salvação, que se concretiza no amor, ligando-nos, em simultâneo a Deus, de Quem nos vem a vida e o amor, e ao nosso semelhante, sujeito que nos permite responder ao amor de Deus, amando e servindo.
Amar implica desejo de identificação. Os enamorados criam uma linguagem própria, tiques que só eles compreendem, tendem a ter gostos semelhantes, a querer ver os mesmos filmes e a ouvir as mesmas músicas, a aprimorarem o paladar para gostarem das mesmas comidas. Sendo essencial que preservem a identidade, é natural que, quem ama, procure gostar do que o outro gosta e partilhar os seus gostos; os amigos de um (quase sempre) acabam por ser amigos do outro. É assim que respondemos ao amor de Deus, procurando amar os Seus projetos e aqueles que Ele ama.
A fé faz-nos acreditar, amar e seguir Jesus Cristo, procurando em tudo sermos-Lhe agradáveis e prestáveis, imitando-O, assumindo os Seus gestos, a Sua postura de vida, os Seus tiques, assumindo as Suas feições.

2 – Para O seguirmos temos de estar perto d'Ele, prestar atenção ao que nos diz, perceber o Seu olhar em diferentes situações, saber de cor os passos que Ele dá ou daria se estivesse no nosso lugar. Subimos com Ele à montanha, para escutarmos o Seu sermão, deixando-nos arrebatar pelos desafios que nos lança.
O Mestre dos Mestres quer que a vida seja abundância e nada nos distraia do serviço e da caridade, nada nos distraia dos outros a quem devemos auxílio, ajuda e amor.
O Sermão da Montanha ambienta-se nas Bem-aventuranças. Para alguns estudiosos, e talvez para são Mateus, é uma espécie de alternativa, melhor, substituição dos 10 Mandamentos. No alto da montanha, Moisés proclama a Lei dada por Deus ao Seu povo, Aliança que se firma (ou amadurece) entre Deus e o Povo Eleito. No alto da montanha, Jesus proclama a nova Lei de Deus para o Seu povo, uma nova Aliança, duradoura e definitiva. Ainda que seja assim, os 10 Mandamentos continuam a ser uma referência importante para os cristãos, uma ajuda, balizando ou iluminando o que mantém próximos da vontade de Deus. Porém, a Lei escrita em tábuas de pedra, em Cristo, inscreve-Se no Seu e no nosso coração. Ele é a própria Lei, a Palavra de Deus, em carne e osso... As bem-aventuranças mostram-nos abertura e compromisso, até ao limite. Na verdade, Ele fez-Se um de nós, gastando-Se totalmente para que tenhamos vida em abundância, para garantir que sabemos o caminho que nos faz irmãos e nos abre as portas da eternidade.

3 – Vale a pena ler e reler, e escutar, as palavras de Jesus: «Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados os humildes, porque possuirão a terra. Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados. Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o reino dos Céus. Bem-aventurados sereis, quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo, disserem todo o mal contra vós. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos Céus a vossa recompensa».
Jesus não exalta a humildade, a pobreza, a injustiça ou a perseguição, como vitimização; não é um discurso a sancionar ou a apelar à miserabilidade, ou a incentivar a resignação. Não se trata de omissão ou demissão, mas de resiliência, luta, compromisso, fidelidade, amor aos outros como a si mesmo, amor ao jeito de Jesus. Ainda que seja preciso morrer para salvar, cuidar, reconciliar! São felizes os que não arranjam desculpas para fugir ou passar ao largo, são felizes os compassivos, os pacificadores, os que lutam pela justiça e pela paz, os que, mesmo com sacrifício, suor e lágrimas, estão prontos para ajudar o seu semelhante e a lutar com eles e por eles nas situações de adversidade. São felizes os que apostam na verdade e numa vida com honestidade, defendendo os mais indefesos, aqueles que não têm voz nem vez.
A humildade, a pobreza e a comoção resultam do amor a Deus, enquanto resposta, vivido e concretizado no amor aos outros. Quem ama (de coração) coloca o outro em primeiro lugar... daí a pobreza, pois se despoja para servir, expondo-se ao outro, com o que tem e com o que é. Por excelência, Jesus expõe-Se por inteiro, abdicando de qualquer prorrogativa divina, de qualquer poder; faz-Se pobre e dispõe-Se amar ao ponto de não reservar nada para Si, nem tempo, nem a própria vida (biológica).
"Concedei, Senhor nosso Deus, que Vos adoremos de todo o coração e amemos todos os homens com sincera caridade".

4 – Presunção e água benta cada um toma a que quer. Uma pessoa presunçosa, e mais facilmente são os outros do que nós, assim o pensamos, é uma pessoa fechada e focada em si. Quando sabemos tudo e temos para nós que não precisamos de ninguém e não temos mais nada a aprender, colocamo-nos numa posição de sobranceria, orgulho, soberba que nos impede de reconhecer os outros no seu ser e no seu saber. No final, também deixaremos de precisar de Deus, pois nos bastamos a nós próprios.
Ao longo da história da humanidade, sempre que alguém se bastou a si mesmo, colocou os outros num patamar inferior, servindo-se deles e instrumentalizando-os para os seus interesses pessoais e megalómanos. Quando se insiste na humildade não se faz por parecer bonito ou para ficar bem na imagem, mas porque é a humildade – o reconhecimento que podemos aprender mais, ser melhores do que no dia anterior, saber que estamos a caminho e beneficiamos do conhecimento, do saber e das apetências dos outros – que permite avançar, construir.
A soberba e a sobranceria têm conduzido à violência, aos conflitos, às guerras, à destruição de pessoas e de bens, para subjugar os outros, não os reconhecendo como iguais. Esta é também a urgência de reconhecermos que só Deus é Deus e que n'Ele somos iguais, somos irmãos.
Na primeira leitura, Sofonias desafia os mais pequenos a seguir o caminho da humildade e da justiça. «Procurai o Senhor, vós todos os humildes da terra, que obedeceis aos seus mandamentos. Procurai a justiça, procurai a humildade; talvez encontreis proteção no dia da ira do Senhor. Só deixarei ficar no meio de ti um povo pobre e humilde, que buscará refúgio no nome do Senhor».

5 – Com o salmista rezamos a nossa confiança no Senhor, nosso Deus. «O Senhor faz justiça aos oprimidos, dá pão aos que têm fome e a liberdade aos cativos. / O Senhor ilumina os olhos dos cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama os justos. / O Senhor protege os peregrinos, ampara o órfão e a viúva e entrava o caminho aos pecadores».
Em Jesus, o salmo ganha carne, um rosto, uma maneira nova, plena e definitiva de encarnar a ternura e o amor de Deus. Jesus é o Pobre por antonomásia, despojando-Se da omnipotência divina para Se expor à nossa vontade, limitações e ao nosso pecado. Ele não força, entrega-Se. Nós podemos amá-l'O e segui-l'O ou rejeitá-l'O, persegui-l'O, destruí-l'O em nós, nos outros e no mundo. A máxima pobreza é consequência do amor pleno, sem reservas nem condições. Quem ama expõe-se ao outro, sujeita-se aos seus desejos e até caprichos, procurando em tudo fazê-lo feliz.

6 – Na segunda leitura, são Paulo recorda como Deus se serve de instrumentos frágeis.
As primeiras palavras de Bento XVI, depois de ser eleito Papa, foram: "...Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e agir também com instrumentos insuficientes. E, sobretudo, recomendo-me às vossas orações...".
O Apóstolo sublinha que diante de Deus somos iguais, pobres, frágeis e, consequentemente, nessa medida, seremos fortalecidos pelo poder e pela grandeza de Deus. «Vede quem sois vós... Deus escolheu o que é louco aos olhos do mundo para confundir os sábios; escolheu o que é fraco, para confundir o forte; escolheu o que é vil e desprezível, o que nada vale aos olhos do mundo, para reduzir a nada aquilo que vale, a fim de que nenhuma criatura se possa gloriar diante de Deus. É por Ele que vós estais em Cristo Jesus, o qual Se tornou para nós sabedoria de Deus, justiça, santidade e redenção. Deste modo, conforme está escrito, 'quem se gloria deve gloriar-se no Senhor'».
Recordemos as palavras de Maria: a minha alma engrandece o Senhor. Como diria o então jovem teólogo, Joseph Ratzinger, não é Maria que engrandece o Senhor, mas é Maria que, pela sua humildade, permite que a grandeza de Deus se manifeste no mundo. Há de ser também esse o nosso compromisso, para que as nossas palavras e obras transpareçam a beleza e o amor de Deus.

Pe. Manuel Gonçalves

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Textos para a Eucaristia (A): Sf 2, 3; 3, 12-13; Sl 145 (146); 1Cor 1, 26-31; Mt 5, 1-12a.

sábado, 21 de janeiro de 2023

Domingo do Palavra de Deus - ano A - 22.janeiro.2023

        1 – «Começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do reino e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo».

Por iniciativa do Papa Francisco, o terceiro Domingo do Tempo Comum é o Domingo da Palavra de Deus, que para nós cristãos não é, apenas, um conjunto de carateres ou uma composição de palavras, mas é o próprio Jesus Cristo. Ele é a Palavra de Deus que Se faz vida para nós, encarnando, assume-nos, identificando-Se com a nossa humanidade. A Palavra de Deus tem um rosto e uma presença, é Pessoa, é Jesus Cristo. Com as Suas palavras e com os Seus gestos mostra-nos o caminho que nos salva, que dá sentido à nossa existência. Esse caminho passa pelo amor, pela ternura, pela compaixão, passa por gastar-nos no cuidado uns dos outros, no serviço à humanidade e à própria criação.

 

2 – Depois do batismo e, sobretudo, depois da prisão de João Batista, a missão de Jesus acelera e intensifica-se. O caminho foi preparado, a voz proclamou a Palavra que estava para vir, a Palavra está agora no meio de nós. Jesus cumpre, com a Sua vida, as promessas reveladas em Isaías: «Terra de Zabulão e terra de Neftali, estrada do mar, além do Jordão, Galileia dos gentios: o povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; para aqueles que habitavam na sombria região da morte, uma luz se levantou».

É um tempo novo, mas o desafio é idêntico: «Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos Céus».

O evangelista deixa entrever alguma precaução, uma vez que, depois da prisão de João, Jesus Se retirou para a Galileia e é nessa região que recruta a quase totalidade dos Seus discípulos. Vendo dois irmãos, Simão (Pedro) e seu irmão André, que andavam na pesca, disse-lhes: «Vinde e segui-Me e farei de vós pescadores de homens». Um pouco mais à frente, Jesus viu outros dois irmãos, Tiago e João, filhos de Zebedeu, a consertar as redes e fez-lhes o mesmo desafio. Uns e outros, deixaram o que estavam a fazer e seguiram-n'O.

Com eles, Jesus percorre a Galileia a ensinara o Evangelho do Reino, acompanhando as palavras com gestos, curas e milagres. Hoje, Jesus continua a chamar-nos, a mim e a ti. Como é que Lhe respondemos? Colocamos condições ou seguimo-l'O incondicionalmente? Tratamos das nossas coisas, ou pomo-nos a caminho com Ele?

 

3 – O Profeta Isaías, na primeira leitura, é portador da boa nova, da esperança para o povo do Senhor. Os tempos não são de euforia, a adversidade parece levar a melhor, as trevas tornaram-se densas, a perseguição e o exílio são espinhos cravados no coração. Muitas foram as causas desta humilhação passada, desta desolação, entre as quais está o pecado do egoísmo e da prepotência, da corrupção e da injustiça. Um povo dividido torna-se vulnerável à divisão e à devastação.

Ao longo de gerações, o povo sofreu as consequências de uma má gestão, com os líderes políticos e religiosos a pensar mais nos seus interesses do que no bem de todo o povo. Pode fazer-se uma leitura religiosa – o pecado conduz ao conflito e à morte - mastambém uma leitura política – quando são privilegiados os interesses pessoais e familiares, em vez do povo no seu conjunto, cresce o descontentamento, as discussões e a revolta. De conflito em conflito destrói-se a identidade e a força da comunidade, tornando-se vulnerável a ataques de exércitos de países vizinhos!

Profetisa Isaías: «Assim como no tempo passado foi humilhada a terra de Zabulão e de Neftali, também no futuro será coberto de glória o caminho do mar, o Além do Jordão, a Galileia dos gentios».

A tristeza e o luto darão lugar à alegria e à gratidão. «Multiplicastes a sua alegria, aumentastes o seu contentamento. Rejubilam na vossa presença, como os que se alegram no tempo da colheita, como exultam os que repartem despojos. Vós quebrastes, como no dia de Madiã, o jugo que pesava sobre o povo, o madeiro que ele tinha sobre os ombros e o bastão do opressor».

Depois da Cruz, a manhã de Páscoa. Depois da sexta-feira santa, da paixão e do sofrimento, da entrega e da oblação, o Domingo da luz e da vida nova, da paz e da salvação.

 

4 – O salmo responde, em forma de oração, à Palavra de Deus, no louvor e na gratidão pelo aconchego que encontramos nos braços, no olhar, na presença de Deus. Ele é a nossa luz e salvação. «O Senhor é protetor da minha vida: de quem hei de ter medo? / Uma coisa peço ao Senhor, por ela anseio: habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para gozar da suavidade do Senhor e visitar o seu santuário. / Espero vir a contemplar a bondade do Senhor na terra dos vivos. Confia no Senhor, sê forte. Tem confiança e confia no Senhor».

A confiança é condição essencial para encontrarmos a paz e vivermos harmoniosamente. Sabemos que não estamos sós. Nos momentos de treva e nas tempestades da vida, Ele está a caminhar connosco, não nos deixa sós, guia-nos, desde que abramos uma brecha para que a Sua luz e o Seu amor desbloqueiem os nossos medos e prisões.

 

5 – São Paulo é o Apóstolo da Palavra. Ficou assim conhecido por ser o maior missionário de todos os tempos, anunciando o Evangelho em toda a parte, em todas as circunstâncias, oportuna e inoportunamente. O Evangelho que anuncia é Cristo morto e ressuscitado, filho de Deus que dá a vida pela humanidade. Depois da sua conversão, que a Igreja comemora a 25 de janeiro, gastou-se por inteiro para fazer chegar a palavra de Deus a todos os recantos, para ganhar alguns para Cristo. Fez-se tudo para todos para que reine o amor e a verdade de Cristo.

A caminho de Damasco, nas encruzilhadas da vida, na busca incessante pela verdade, na perseguição aqueles que considerava inimigos do judaísmo, Paulo foi surpreendido pela Luz que vem do alto, pela Luz que é Jesus. As trevas que o cegavam deram lugar à claridade da luz. De perseguidor tornou-se seguidor de Jesus, procurando identificar-se totalmente com Ele. O próprio nos dirá: "já não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim", "para mim viver é Cristo".

Na pregação como nas missivas que dirige às comunidades, o apóstolo procura que o seu testemunho conduza outros a deixar-se ver por Jesus Cristo, a deixar-se iluminar pelo Evangelho.

À comunidade de Corinto, e às nossas comunidades, e a quantos creem em Cristo, são Paulo interpela: «Rogo-vos, pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que faleis todos a mesma linguagem e que não haja divisões entre vós, permanecendo bem unidos, no mesmo pensar e no mesmo agir. Eu soube, meus irmãos, pela gente de Cloé, que há divisões entre vós, que há entre vós quem diga: 'Eu sou de Paulo', 'eu de Apolo', 'eu de Pedro', 'eu de Cristo'. Estará Cristo dividido? Porventura Paulo foi crucificado por vós? Foi em nome de Paulo que recebestes o Batismo? Na verdade, Cristo não me enviou para batizar, mas para anunciar o Evangelho; não, porém, com sabedoria de palavras, a fim de não desvirtuar a cruz de Cristo».

A palavra anunciada é igual para todos, é Jesus Cristo, e, por conseguinte, quanto mais sintonizados com a Palavra de Deus, com Jesus, mais predispostos à comunhão, à fraternidade. Se nos reconhecemos irmãos de Jesus, vivamos como irmãos entre nós.

 

6 – O que são Paulo nos deixa como desafio, rezamo-lo logo a iniciar a Eucaristia: "Deus todo-poderoso e eterno, dirigi a nossa vida segundo a vossa vontade, para que mereçamos produzir abundantes frutos de boas obras, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho".

A oração, humilde e sincera, abre-nos ao coração para Deus, que dilata o nosso coração para a amarmos do mesmo jeito que Ele (nos) ama, cuidando especialmente dos mais frágeis. Acolher e traduzir a vontade de Deus: sermos felizes e contribuirmos para que todos se sintam filhos amados do Senhor.

 

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Is 8, 23b – 9, 3 (9, 1-4); Sl 26 (27); 1Cor 1, 10-13. 17; Mt 4, 12-23.