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segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Entrevista com o Papa Francisco - sou um pecador

        Tenho a pergunta pronta, mas decido não seguir o esquema que fixara e pergunto um pouco à queima-roupa: «Quem é Jorge Mario Bergoglio?» O Papa fixa-me em silêncio. Pergunto se é uma pergunta lícita para lhe colocar… Ele faz sinal de aceitar a pergunta e diz-me: «Não sei qual possa ser a definição mais correcta… Eu sou um pecador. Esta é a melhor definição. E não é um modo de dizer, um género literário. Sou um pecador».
       O Papa continua a reflectir, como se não esperasse aquela pergunta, como se fosse obrigado a uma reflexão ulterior.
       «Sim, posso talvez dizer que sou um pouco astuto, sei mover-me, mas é verdade que sou também um pouco ingénuo. Sim, mas a síntese melhor, aquela que me vem mais de dentro e que sinto mais verdadeira, é exactamente esta: “Sou um pecador para quem o Senhor olhou”». E repete: «Sou alguém que é olhado pelo Senhor. A minha divisa, Miserando atque eligendo, senti-a sempre como muito verdadeira para mim».
        A divisa do Papa Francisco é tirada das Homilias de São Beda, o Venerável, o qual, comentando o episódio evangélico da vocação de São Mateus, escreve: «Viu Jesus um publicano e assim como o olhou com um sentimento de amor, escolheu-o e disse-lhe: “Segue-me”».
       E acrescenta: «O gerúndio latino miserando parece-me intraduzível, seja em italiano, seja em espanhol. Gosto de o traduzir com um outro gerúndio que não existe: misericordiando».
       O Papa Francisco continua a sua reflexão e diz-me, fazendo um salto cujo sentido não compreendo, naquele momento: «Eu não conheço Roma. Conheço poucas coisas. Entre estas, Santa Maria Maior: ia sempre lá». Rio e digo-lhe: «Todos o compreendemos muito bem, Santo Padre!». «Sim — prossegue o Papa – conheço Santa Maria Maior, São Pedro… mas vindo a Roma sempre vivi na Via della Scrofa. Dali visitava frequentemente a igreja de São Luís dos Franceses e ali ia contemplar o quadro da vocação de São Mateus, de Caravaggio». Começo a intuir o que é que o Papa quer dizer-me.
        «Aquele dedo de Jesus assim… dirigido a Mateus. Assim sou eu. Assim me sinto. Como Mateus». E aqui o Papa torna-se mais decidido, como se tivesse encontrado a imagem de si próprio de que estava à procura: «É o gesto de Mateus que me toca: agarra-se ao seu dinheiro, como que a dizer: “Não, não eu! Não, este dinheiro é meu!”. Este sou eu: um pecador para o qual o Senhor voltou o seu olhar. E isto é aquilo que disse quando me perguntaram se aceitava a minha eleição para Pontífice. Então sussurra: Peccator sum, sed super misericordia et infinita patientia Domini nostri Jesu Christi, confusus et in spiritu penitentiae, accepto». (Sou pecador, mas confiado na misericórdia e paciência infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo, confundido e em espírito de penitência, aceito).
in BROTÉRIA.

Entrevista com o Papa Francisco - Arte e Criatividade

       «Gostei muito de autores diferentes entre si. Gosto muitíssimo de Dostoiévski e Hölderlin. De Hölderlin quero recordar aquela poesia para o aniversário da sua avó, que é de grande beleza e que me fez tanto bem espiritual. É aquela que termina com o verso “Que o homem mantenha o que o rapaz prometeu”. Impressionou-me também porque amava muito a minha avó Rosa, e ali Hölderlin compara a sua avó a Maria que gerou Jesus, que para ele é o amigo da terra que não considerou ninguém estrangeiro. Li I Promessi Sposi três vezes e tenho-o agora sobre a mesa para reler. Manzoni deu-me muito. A minha avó, quando eu era criança, ensinou-me de cor o início dos Promessi Sposi: “Quel ramo del lago di Como, che volge a mezzogiorno, tra due catene non interrotte di monti…”(Dos dois braços que formam o lago de Como, um deles dirige-se para o sul, entre duas cadeias ininterruptas de montanhas…) Também gostei muito de Gerard Manley Hopkins».
        «Na pintura admiro Caravaggio: as suas telas falam-me. Mas também Chagall, com a sua Crucifixão Branca...».
        «Na música gosto muito de Mozart, obviamente. Aquele Et Incarnatus est da sua Missa em Dó é insuperável: leva-te a Deus! Gosto muito de Mozart executado por Clara Haskil. Mozart preenche-me: não posso pensá-lo, devo ouvi-lo. Gosto de ouvir Beethoven, mas prometeicamente. E o intérprete mais prometeico para mim é Furtwängler. E depois as Paixões de Bach. O trecho de Bach de que gosto muito é o Erbarme Dich, o pranto de Pedro da Paixão segundo São Mateus. Sublime. Depois, num outro nível, não tão íntimo, gosto de Wagner. Gosto de ouvi-lo, mas não sempre. A Tetralogia do Anel executada por Furtwängler no Scala nos anos 50 é, para mim, a melhor. Mas também o Parsifal executado em 1962 por Knappertsbusch».
        «Deveríamos também falar do cinema. La strada de Fellini é talvez o filme de que mais gostei. Identifico-me com aquele filme, no qual está implícita uma referência a São Francisco. Depois, creio ter visto todos os filmes com Anna Magnani e Aldo Fabrizi quando eu tinha entre 10 e 12 anos. Um outro filme de que muito gostei é Roma città aperta. Devo a minha cultura cinematográfica sobretudo aos meus pais, que nos levavam frequentemente ao cinema».
       «Em todo o caso, em geral gosto muito dos artistas trágicos, especialmente os mais clássicos. Há uma bela definição que Cervantes coloca na boca do bacharel Carrasco para fazer o elogio da história de Dom Quixote: “Os rapazes têm-na entre as mãos, os jovens lêem-na, os adultos entendem-na, os velhos elogiam-na”. Esta, para mim, pode ser uma boa definição para os clássicos».
                Apercebo-me de estar absorvido por estas suas referências e de ter o desejo de entrar na sua vida, pela porta das suas escolhas artísticas. Seria um percurso a fazer, imagino que longo. E incluiria também o cinema, do neo-realismo italiano até a A Festa de Babette. Vêm-me à mente outros autores e outras obras que ele citou noutras ocasiões, mesmo menores ou menos conhecidas ou locais: de Martín Fierro de José Hernández à poesia de Nino Costa, a Il grande esodo de Luigi Orsenigo. Mas penso também em Joseph Malègue e José María Pemán. E, obviamente, em Dante e Borges, mas também em Leopoldo Marechal, o autor de Adán Buenosayres, El banquete de Severo Arcángelo e Megafón o la guerra.
         Penso em particular precisamente em Jorge Luis Borges, porque Bergoglio, quando tinha 28 anos e era professor de Literatura em Santa Fé no Colegio de la Inmaculada Concepción, conheceu-o directamente. Bergoglio ensinava os últimos dois anos do Liceu e encaminhou os seus rapazes para a escrita criativa. Também eu tive uma experiência parecida à sua, quando tinha a mesma idade, no Istituto Massimo de Roma, fundando BombaCarta, e conto-lha. No final, peço ao Papa para me contar a sua experiência.
       «Foi uma coisa um pouco arriscada — responde. Devia fazer de tal modo que os meus alunos estudassem El Cid. Mas os rapazes não gostavam. Pediam-me para ler García Lorca. Então decidi que deveriam estudar El Cid em casa e durante as lições eu trataria os autores de que os rapazes mais gostavam. Obviamente, os jovens queriam ler as obras literárias mais “picantes”, contemporâneas como La casada infiel ou clássicas como La Celestina de Fernando de Rojas. Mas, ao ler estas coisas que os atraíam naquele momento, ganhavam mais gosto em geral pela literatura, pela poesia e passavam a outros autores. Para mim, esta foi uma grande experiência. Cumpri o programa, mas de modo desestruturado, isto é, não ordenado segundo aquilo que estava previsto, mas segundo uma ordem que resultava natural na leitura dos autores. E esta modalidade tinha muito que ver comigo: não gostava de fazer uma programação rígida, mas eventualmente saber mais ou menos onde chegar. Então comecei também a fazê-los escrever. No final decidi dar a ler a Borges dois contos escritos pelos meus rapazes. Conhecia a sua secretária, que tinha sido a minha professora de piano. Borges gostou muitíssimo e então ele propôs escrever a introdução de uma colectânea».
in BROTÉRIA.

Entrevista com o Papa Francisco - certezas e erros

        «Sim, neste procurar e encontrar Deus em todas as coisas fica sempre uma zona de incertezas. Tem que ser assim. Se uma pessoa diz que encontrou Deus com certeza total e não aflora uma margem de incerteza, então não está bem. Para mim, esta é uma chave importante. Se alguém tem a resposta a todas as perguntas, esta é a prova de que Deus não está com ela. Quer dizer que é um falso profeta, que usa a religião para si próprio. Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés, sempre deixaram espaço para a dúvida. Devemos deixar espaço ao Senhor, não às nossas certezas. É necessário ser humilde. A incerteza existe em cada discernimento verdadeiro que se abre à confirmação da consolação espiritual».
       «O risco no procurar e encontrar Deus em todas as coisas é, pois, a vontade de explicar demasiado, de dizer com certeza humana e arrogância: “Deus está aqui”. Encontraremos somente um deus à nossa medida. A atitude correta é a agostiniana: procurar a Deus para O encontrar e encontrá-l’O para O procurar sempre. E muitas vezes procura-se por tentativas, como se lê na Bíblia. É esta a experiência dos grandes Pais da Fé, que são o nosso modelo. É necessário reler o capítulo 11 da Carta aos Hebreus. Abraão partiu sem saber para onde ia, pela fé. Todos os nossos antepassados da fé morreram vendo os bens prometidos, mas longe... A nossa vida não nos é dada como um libreto de ópera onde está tudo escrito, mas é ir, caminhar, fazer, procurar, ver... Deve-se entrar na aventura da procura do encontro e do deixar-se procurar e deixar-se encontrar por Deus».
        «Porque Deus está antes, Deus está sempre antes, Deus antecede. Deus é um pouco como a flor da amendoeira da tua Sicília, António, que floresce sempre antes. Lemo-lo nos profetas. Portanto, encontra-se Deus caminhando, no caminho. E neste ponto alguém poderia dizer que isto é relativismo. É relativismo? Sim, se é mal interpretado, como espécie de panteísmo indistinto. Não, se é interpretado em sentido bíblico, onde Deus é sempre uma surpresa e, portanto, não sabes nunca onde e como O encontras, não és tu a fixar os tempos e os lugares do encontro com Ele. É necessário, portanto, discernir o encontro. Por isso, o discernimento é fundamental».
         «Se o cristão é restauracionista, legalista, se quer tudo claro e seguro, então não encontra nada. A tradição e a memória do passado devem ajudar-nos a ter a coragem de abrir novos espaços para Deus. Quem hoje procura sempre soluções disciplinares, quem tende de modo exagerado à “segurança” doutrinal, quem procura obstinadamente recuperar o passado perdido, tem uma visão estática e involutiva. E deste modo a fé torna-se uma ideologia entre tantas. Tenho uma certeza dogmática: Deus está na vida de cada pessoa. Deus está na vida de cada um. Mesmo se a vida de uma pessoa foi um desastre, se se encontra destruída pelos vícios, pela droga ou por qualquer outra coisa, Deus está na sua vida. Pode-se e deve-se procurar na vida humana. Mesmo se a vida de uma pessoa é um terreno cheio de espinhos e ervas daninhas, há sempre um espaço onde a semente boa pode crescer. É preciso confiar em Deus».
in BROTÉRIA.

domingo, 10 de novembro de 2013

Entrevista com o Papa Francisco - Deus em todas as coisas

       «O que eu disse no Rio tem um valor temporal. Existe, de facto, a tentação de procurar Deus no passado ou no futuro. Deus está, certamente, no passado porque está nas pegadas que deixou. E está também no futuro como promessa. Mas o Deus “concreto”, digamos assim, é hoje. Por isso, os queixumes nunca, nunca, nos ajudam a encontrar Deus. As queixas de hoje de como o mundo anda “bárbaro” acabam por fazer nascer dentro da Igreja desejos de ordem entendidos como pura conservação, defesa. Não. Deus deve ser encontrado no hoje».
       «Deus manifesta-Se numa revelação histórica, no tempo. O tempo inicia os processos, o espaço cristaliza-os. Deus encontra-Se no tempo, nos processos em curso. Não é preciso privilegiar os espaços de poder relativamente aos tempos, mesmo longos, dos processos. Devemos encaminhar processos, mais que ocupar espaços. Deus manifesta-Se no tempo e está presente nos processos da História. Isto faz privilegiar as acções que geram dinâmicas novas. E exige paciência, espera».
       «Encontrar Deus em todas as coisas não é um eureka empírico. No fundo, quando desejamos encontrar Deus, quereríamos constatá-l’O de imediato com um método empírico. Assim não se encontra Deus. Ele encontra-Se na brisa ligeira sentida por Elias. Os sentidos que constatam Deus são os que Santo Inácio designa por “sentidos espirituais”. Inácio pede para abrir a sensibilidade espiritual para encontrar Deus para além de uma abordagem puramente empírica. É necessária uma atitude contemplativa: é o sentir que se vai pelo bom caminho da compreensão e do afecto no que diz respeito às coisas e às situações. O sinal de que se está neste bom caminho é o sinal da paz profunda, da consolação espiritual, do amor de Deus e de todas as coisas em Deus».
in BROTÉRIA.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Entrevista com o Papa Francisco - a mulher na Igreja

       «É necessário ampliar os espaços de uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Temo a solução do “machismo de saias”, porque, na verdade, a mulher tem uma estrutura diferente do homem. E, pelo contrário, os argumentos que oiço sobre o papel da mulher são muitas vezes inspirados precisamente numa ideologia machista. As mulheres têm vindo a colocar perguntas profundas que devem ser tratadas. A Igreja não pode ser ela própria sem a mulher e o seu papel. A mulher, para Igreja, é imprescindível. Maria, uma mulher, é mais importante que os bispos. Digo isto, porque não se deve confundir a função com a dignidade. É necessário, pois, aprofundar melhor a figura da mulher na Igreja. É preciso trabalhar mais para fazer uma teologia profunda da mulher. Só realizando esta etapa se poderá reflectir melhor sobre a função da mulher no interior da Igreja. O génio feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões importantes. O desafio hoje é exactamente esse: reflectir sobre o lugar específico da mulher, precisamente também onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da Igreja.

Papa Francisco em entrevista - capacidade de curar feridas

       «O Papa Bento teve um acto de santidade, de grandeza, de humildade. É um homem de Deus»...
       «Vejo com clareza — continua — que aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de tudo o resto. Curar as feridas, curar as feridas... E é necessário começar de baixo».
       A Igreja por vezes encerrou-se em pequenas coisas, em pequenos preceitos. O mais importante, no entanto, é o primeiro anúncio: “Jesus Cristo salvou-te”. E os ministros da Igreja devem ser, acima de tudo, ministros de misericórdia. O confessor, por exemplo, corre sempre o risco de ser ou demasiado rigorista ou demasiado laxista. Nenhum dos dois é misericordioso, porque nenhum dos dois toma verdadeiramente a seu cargo a pessoa. O rigorista lava as mãos porque remete-o para o mandamento. O laxista lava as mãos dizendo simplesmente “isto não é pecado” ou coisas semelhantes. As pessoas têm de ser acompanhadas, as feridas têm de ser curadas».
       «Como estamos a tratar o povo de Deus? Sonho com uma Igreja Mãe e Pastora. Os ministros da Igreja devem ser misericordiosos, tomar a seu cargo as pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano que lava, limpa, levanta o seu próximo. Isto é Evangelho puro. Deus é maior que o pecado. As reformas organizativas e estruturais são secundárias, isto é, vêm depois. A primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de saber dialogar e mesmo de descer às suas noites, na sua escuridão, sem perder-se. O povo de Deus quer pastores e não funcionários ou clérigos de Estado. Os bispos, em particular, devem ser capazes de suportar com paciência os passos de Deus no seu povo, de tal modo que ninguém fique para trás, mas também para acompanhar o rebanho que tem o faro para encontrar novos caminhos».
        «Em vez de ser apenas uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas abertas, procuramos mesmo ser uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de si mesma e ir ao encontro de quem não a frequenta, de quem a abandonou ou lhe é indiferente. Quem a abandonou fê-lo, por vezes, por razões que, se forem bem compreendidas e avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é necessário audácia, coragem».
       «Devemos anunciar o Evangelho em todos os caminhos, pregando a boa nova do Reino e curando, também com a nossa pregação, todo o tipo de doença e de ferida. Em Buenos Aires recebia cartas de pessoas homossexuais, que são “feridos sociais”, porque me dizem que sentem como a Igreja sempre os condenou. Mas a Igreja não quer fazer isto. Durante o voo de regresso do Rio de Janeiro disse que se uma pessoa homossexual é de boa vontade e está à procura de Deus, eu não sou ninguém para julgá-la. Dizendo isso, eu disse aquilo que diz o Catecismo. A religião tem o direito de exprimir a própria opinião para serviço das pessoas, mas Deus, na criação, tornou-nos livres: a ingerência espiritual na vida pessoal não é possível. Uma vez uma pessoa, de modo provocatório, perguntou-me se aprovava a homossexualidade. Eu, então, respondi-lhe com uma outra pergunta: “Diz-me: Deus, quando olha para uma pessoa homossexual, aprova a sua existência com afecto ou rejeita-a, condenando-a?” É necessário sempre considerar a pessoa. Aqui entramos no mistério do homem. Na vida, Deus acompanha as pessoas e nós devemos acompanhá-las a partir da sua condição. É preciso acompanhar com misericórdia. Quando isto acontece, o Espírito Santo inspira o sacerdote a dizer a coisa mais apropriada».
       «Esta é também a grandeza da confissão: o facto de avaliar caso a caso e de poder discernir qual é a melhor coisa a fazer por uma pessoa que procura Deus e a sua graça. O confessionário não é uma sala de tortura, mas lugar de misericórdia, no qual o Senhor nos estimula a fazer o melhor que pudermos. Penso também na situação de uma mulher que carregou consigo um matrimónio fracassado, no qual chegou a abortar. Depois esta mulher voltou a casar e agora está serena, com cinco filhos. O aborto pesa-lhe muito e está sinceramente arrependida. Gostaria de avançar na vida cristã. O que faz o confessor?»
       «Não podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento homossexual e uso dos métodos contraceptivos. Isto não é possível. Eu não falei muito destas coisas e censuraram-me por isso. Mas quando se fala disto, é necessário falar num contexto. De resto, o parecer da Igreja é conhecido e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário falar disso continuamente».
       «Os ensinamentos, tanto dogmáticos como morais, não são todos equivalentes. Uma pastoral missionária não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas a impor insistentemente. O anúncio de carácter missionário concentra-se no essencial, no necessário, que é também aquilo que mais apaixona e atrai, aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús. Devemos, pois, encontrar um novo equilíbrio; de outro modo, mesmo o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder a frescura e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve ser mais simples, profunda, irradiante. É desta proposta que vêm depois as consequências morais».
       «Digo isto também pensando na pregação e nos conteúdos da nossa pregação. Uma bela homilia, uma verdadeira homilia, deve começar com o primeiro anúncio, com o anúncio da salvação. Não há nada de mais sólido, profundo e seguro do que este anúncio. Depois deve fazer-se uma catequese. Assim, pode tirar-se também uma consequência moral. Mas o anúncio do amor salvífico de Deus precede a obrigação moral e religiosa. Hoje, por vezes, parece que prevalece a ordem inversa. A homilia é a pedra de comparação para calibrar a proximidade e a capacidade de encontro de um pastor com o seu povo, porque quem prega deve reconhecer o coração da sua comunidade para procurar onde está vivo e ardente o desejo de Deus. A mensagem evangélica não pode limitar-se, portanto, apenas a alguns dos seus aspectos, que, mesmo importantes, sozinhos não manifestam o coração do ensinamento de Jesus.»
in BROTÉRIA.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Entrevista com o Papa Francisco - Igreja, povo fiel e santo

        «A imagem da Igreja de que gosto é a do povo santo e fiel de Deus. É a definição que uso mais vezes e é a da Lumen Gentium, no número 12. A pertença a um povo tem um forte valor teológico: Deus na história da salvação salvou um povo. Não existe plena identidade sem pertença a um povo. Ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado, mas Deus atrai-nos considerando a complexa trama de relações interpessoais que se realizam na comunidade humana. Deus entra nesta dinâmica do povo».
        «O povo é sujeito. E a Igreja é o povo de Deus a caminho na história, com alegrias e dores. Sentire cum Ecclesia é para mim, pois, estar neste povo. E o conjunto dos fiéis é infalível no crer, e manifesta esta sua infallibilitas in credendo mediante o sentido sobrenatural da fé de todo o povo que caminha. É isto o que eu entendo hoje como o “sentir com a Igreja” de que fala Santo Inácio. Quando o diálogo entre as pessoas e o bispo e o Papa segue este caminho e é leal, então é assistido pelo Espírito Santo. Não é, portanto, um sentir ligado aos teólogos».
        «É como com Maria: se se quiser saber quem é, pergunta-se aos teólogos; se se quiser saber como amá-la, é necessário perguntá-lo ao povo. Por sua vez, Maria amou Jesus com coração de povo, como lemos no Magnificat. Não é preciso sequer pensar que a compreensão do sentir com a Igreja esteja ligada somente ao sentir com a sua parte hierárquica».
       «E, obviamente, é necessário estar bem atentos a não pensar que esta infallibilitas de todos os fiéis de que estou a falar à luz do Concílio seja uma forma de populismo. Não: é a experiência da “Santa Madre Igreja hierárquica”, como lhe chamava Santo Inácio, da Igreja como povo de Deus, pastores e povo em conjunto. A Igreja é a totalidade do povo de Deus».
       «Vejo a santidade no povo de Deus, a sua santidade quotidiana. Existe uma “classe média da santidade” da qual todos podemos fazer parte, aquela de que fala Malègue».
        O Papa está a referir-se a Joseph Malègue, um escritor francês que lhe é querido, nascido em 1876 e falecido em 1940. Em particular, à sua trilogia incompleta Pierres noires. Les Classes moyennes du Salut. Alguns críticos franceses definiram-no como o «Proust católico».

       «Vejo a santidade — continua o Papa — no povo de Deus paciente: uma mulher que cria os filhos, um homem que trabalha para levar o pão para casa, os doentes, os sacerdotes idosos com tantas feridas mas com um sorriso por terem servido o Senhor, as Irmãs que trabalham tanto e que vivem uma santidade escondida. Esta é, para mim, a santidade comum. Associo frequentemente a santidade à paciência: não só a santidade como hypomoné, o encarregar-se dos acontecimentos e circunstâncias da vida, mas também como constância no seguir em frente dia após dia. Esta é a santidade da Igreja militante de que fala também Santo Inácio. Esta é também a santidade dos meus pais: do meu pai, da minha mãe, da minha avó Rosa, que me fez tanto bem. No breviário tenho o testamento da minha avó Rosa e leio-o frequentemente: para mim é como uma oração. Ela é uma santa que sofreu tanto, também moralmente, e seguiu sempre em frente com coragem».
        «Esta Igreja com a qual devemos “sentir” é a casa de todos, não uma pequena capela que só pode conter um grupinho de pessoas seleccionadas. Não devemos reduzir o seio da Igreja universal a um ninho protector da nossa mediocridade. E a Igreja é Mãe — continua. A Igreja é fecunda, deve sê-lo. Veja: quando me apercebo de comportamentos negativos de ministros da Igreja ou de consagrados ou consagradas, a primeira coisa que me vem à cabeça é: «Cá está um solteirão» ou «Cá está uma solteirona». Não são nem pais, nem mães. Não são capazes de gerar vida. Pelo contrário, quando leio, por exemplo, a vida dos missionários salesianos que foram para a Patagónia, leio uma história de vida, de fecundidade».
       «Um outro exemplo destes dias: vi que foi muito referido nos jornais o telefonema que fiz a um rapaz que me tinha escrito uma carta. Telefonei-lhe, porque aquela carta era tão bela, tão simples. Para mim isto foi um acto de fecundidade. Apercebi-me que é um jovem que está a crescer, sentiu em mim um pai, e assim eu disse-lhe alguma coisa sobre a sua vida. Um pai não pode dizer: “Não tenho nada que ver com isso”. Esta fecundidade faz-me muito bem».
in BROTÉRIA.

Entrevista com o Papa Francisco - ultraconservador?

       «Na minha experiência de superior na Companhia, para dizer a verdade, nem sempre me comportei assim, ou seja, fazendo as necessárias consultas. E isso não foi uma boa coisa. O meu governo como jesuíta no início tinha muitos defeitos. Estávamos num tempo difícil para a Companhia: tinha desaparecido uma inteira geração de jesuítas. Por isto, vi-me nomeado Provincial ainda muito jovem. Tinha 36 anos: uma loucura. Era preciso enfrentar situações difíceis e eu tomava as decisões de modo brusco e individualista. Sim, devo acrescentar, no entanto, uma coisa: quando entrego uma coisa a uma pessoa, confio totalmente nessa pessoa. Terá que cometer um erro verdadeiramente grande para que eu a repreenda. Mas, apesar disto, as pessoas acabam por se cansar do autoritarismo. O meu modo autoritário e rápido de tomar decisões levou-me a ter sérios problemas e a ser acusado de ser ultraconservador. Vivi um tempo de grande crise interior quando estava em Córdova. Claro, não, não sou certamente como a Beata Imelda, mas nunca fui de direita. Foi o meu modo autoritário de tomar decisões que criou problemas».
       «Digo estas coisas como uma experiência de vida e para ajudar a compreender quais são os perigos. Com o tempo aprendi muitas coisas. O Senhor permitiu esta pedagogia de governo, mesmo através dos meus defeitos e dos meus pecados. Assim, como arcebispo de Buenos Aires, fazia cada quinze dias uma reunião com os seis bispos auxiliares e várias vezes por ano com o Conselho Presbiteral. Colocavam-se perguntas e abria-se espaço para a discussão. Isto ajudou-me muito a tomar as melhores decisões. E agora oiço algumas pessoas que me dizem: “Não consulte demasiado e decida”. Acredito, no entanto, que a consulta é muito importante. Os Consistórios e os Sínodos são, por exemplo, lugares importantes para tornar verdadeira e activa esta consulta. É necessário torná-los, no entanto, menos rígidos na forma. Quero consultas reais, não formais. A consulta dos oito cardeais, este grupo outsider, não é uma decisão simplesmente minha, mas é fruto da vontade dos cardeais, tal como foi expressa nas Congregações Gerais antes do Conclave. E quero que seja uma consulta real, não formal».

in BROTÉRIA.

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Entrevista com o Papa Francisco - A Companhia de Jesus

       «A Companhia é uma instituição em tensão, sempre radicalmente em tensão. O jesuíta é um descentrado de si próprio. A Companhia é descentrada de si mesma: o seu centro é Cristo e a sua Igreja. Por isso: se a Companhia coloca Cristo e a Igreja no centro, tem dois pontos fundamentais de referência do seu equilíbrio para viver na periferia. Se, pelo contrário, olha demasiado para si própria, se se coloca a si mesma no centro como estrutura bem sólida, muito bem “armada”, então corre o perigo de sentir-se segura e auto-suficiente. A Companhia deve ter sempre diante de si o Deus semper maior, a procura da glória de Deus sempre maior, a Igreja Verdadeira Esposa de Cristo Nosso Senhor, Cristo Rei que nos conquista e a Quem oferecemos toda a nossa pessoa e toda o nosso esforço, mesmo se somos vasos de barro, inadequados. Esta tensão leva-nos constantemente para fora de nós próprios. O instrumento que torna verdadeiramente forte a Companhia descentrada de si mesma é o da “conta de consciência”, que é simultaneamente paternal e fraternal, precisamente porque a ajuda a sair melhor em missão».
      «Mas é difícil falar da Companhia» – prossegue o Papa Francisco. «Quando se explicita demasiado, corremos o risco de nos enganarmos. A Companhia só se pode exprimir em forma narrativa. Somente na narração se pode fazer discernimento, não na explicação filosófica ou teológica, onde, pelo contrário, se pode discutir. O estilo da Companhia não é o da discussão, mas o do discernimento, que obviamente pressupõe a discussão no processo. A aura mística não define nunca os seus limites, não completa o pensamento. O jesuíta deve ser uma pessoa de pensamento incompleto, de pensamento aberto. Houve épocas na Companhia nas quais se viveu um pensamento fechado, rígido, mais instrutivo-ascético do que místico: esta deformação gerou o Epitome Instituti».
       «Não, o jesuíta pensa sempre, continuamente, olhando o horizonte para onde deve ir, tendo Cristo no centro. Esta é a sua verdadeira força. E isto estimula a Companhia a estar à procura, a ser criativa, generosa. Portanto, hoje mais do que nunca, deve ser contemplativa na acção; deve viver uma proximidade profunda a toda a Igreja, entendida como “Povo de Deus” e “Santa Madre Igreja hierárquica”. Isto requer muita humildade, sacrifício, coragem, especialmente quando se vivem incompreensões ou se é objecto de equívocos e calúnias, mas é a atitude mais fecunda. Pensemos nas tensões do passado sobre os ritos chineses, sobre os ritos malabares, nas reduções no Paraguai».
       «Eu mesmo sou testemunha das incompreensões e problemas que a Companhia viveu mesmo recentemente. Entre estes, contam-se os tempos difíceis de quando se tratou da questão de alargar o “quarto voto” de obediência ao Papa a todos os jesuítas. Aquilo que me dava segurança no tempo do Padre Arrupe era o facto de que ele era um homem de oração, um homem que passava muito tempo em oração. Recordo-o quando rezava sentado no chão, como fazem os japoneses. Por isso ele tinha a atitude certa e tomou as decisões correctas».
in BROTÉRIA.

Papa Francisco em entrevista - discernimento e mudança

        «O discernimento é uma das coisas que Santo Inácio mais trabalhou interiormente. Para ele, é um instrumento de luta para conhecer melhor o Senhor e segui-l’O mais de perto. Impressionou-me sempre uma máxima com que se descreve a visão de Inácio: Non coerceri a maximo, sed contineri a minimo divinum est. (não estar constrangido pelo máximo, e no entanto, estar inteiramente contido no mínimo, isso é divino). Reflecti muito sobre esta frase a propósito do governo, de ser superior: não estarmos restringidos pelo espaço maior, mas sermos capazes de estar no espaço mais restrito. Esta virtude do grande e do pequeno é a magnanimidade, que da posição em que estamos nos faz olhar sempre o horizonte. É fazer as coisas pequenas de cada dia com o coração grande e aberto a Deus e aos outros. É valorizar as coisas pequenas no interior de grandes horizontes, os do Reino de Deus».
       «Esta máxima oferece os parâmetros para assumir uma posição correcta para o discernimento, para escutar as coisas de Deus a partir do seu “ponto de vista”. Para Santo Inácio, os grandes princípios devem ser encarnados nas circunstâncias de lugar, de tempo e de pessoas. A seu modo, João XXIII colocou-se nesta posição de governo quando repetiu a máxima Omnia videre, multa dissimulare, pauca corrigere, (ver tudo, não dar importância a muito, corrigir pouco) porque mesmo vendo omnia, a dimensão máxima, preferia agir sobre pauca, sobre uma dimensão mínima. Podem ter-se grandes projectos e realizá-los, agindo sobre poucas pequenas coisas. Ou podem usar-se meios fracos que se revelam mais eficazes do que os fortes, como diz São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios».
       «Este discernimento requer tempo. Muitos, por exemplo, pensam que as mudanças e as reformas podem acontecer em pouco tempo. Eu creio que será sempre necessário tempo para lançar as bases de uma mudança verdadeira e eficaz. E este é o tempo do discernimento. E por vezes o discernimento, por seu lado, estimula a fazer depressa aquilo que inicialmente se pensava fazer depois. E foi isto o que também me aconteceu nestes meses. E o discernimento realiza-se sempre na presença do Senhor, vendo os sinais, escutando as coisas que acontecem, o sentir das pessoas, especialmente dos pobres. As minhas escolhas, mesmo aquelas ligadas à vida quotidiana, como usar um automóvel modesto, estão ligadas a um discernimento espiritual que responde a uma exigência que nasce das coisas, das pessoas, da leitura dos sinais dos tempos. O discernimento no Senhor guia-me no meu modo de governar».
       «Pelo contrário, desconfio das decisões tomadas de modo repentino. Desconfio sempre da primeira decisão, isto é, da primeira coisa que me vem à cabeça fazer, se tenho de tomar uma decisão. Em geral, é a decisão errada. Tenho de esperar, avaliar interiormente, tomando o tempo necessário. A sabedoria do discernimento resgata a necessária ambiguidade da vida e faz encontrar os meios mais oportunos, que nem sempre se identificam com aquilo que parece grande ou forte».

in BROTÉRIA.