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terça-feira, 20 de março de 2018

VL – Desafio da normalidade

Vivemos a síndrome de fim-de-semana potenciado pelas facilidades de viagens, cruzeiros, festas, saídas… O trabalho, que nos realiza como pessoas, pelo qual transformamos o mundo, tornando-nos com-criadores, aparece mais como meio para obter o capital necessário para as ofertas lúdicas e não tanto como realização pessoal e comunitária. Daí o elevado número de pessoas ansiosas, desequilibradas emocionalmente. Entram à segunda-feira em modo de martírio porque o tempo não passa. Quinta-feira e o contentamento começa a voltar; e finalmente a sexta-feira: a meio da manhã arruma-se tudo, procurando não abrir dossiers, evitando atender pessoas, procurando que nada possa adiar o fim do dia. Esfregam-se as mãos: vêm aí as festas, o divertimento, os shot's com os amigos… Quando o Domingo vai a meio, quando já não é possível estender o fim-de-semana para segunda-feira, novamente a inquietação, a ansiedade, o mau humor… 

A felicidade não está no fim, mas ao longo da viagem. Se a nossa preocupação é chegar rapidamente ao destino, viajaremos sobre pressão, cansamo-nos, pois nunca mais chegamos, alguém nos atrasa ou nos incomoda ao querer conversar connosco. Mas a viagem pode ser agradável se tivermos os sentidos despertos, com a calma para olhar, para ver quem nos rodeia e para apreciar a paisagem à nossa volta, para ouvir, para cheirar… 

O Desafio da Normalidade é também o título de um livro que me veio parar às mãos acerca de 20 anos, da autoria de José Maria Cabral, um médico a trabalhar no Instituto de Oncologia do Porto e que tem, ele próprio, de enfrentar o cancro, numa época em a medicina tinha menos respostas para esta doença. A sua luta é pela cura, pela qualidade de vida, dentro dos condicionalismos da doença e dos tratamentos a que está sujeito, buscando uma certa normalidade para a sua vida, procurando retomar rotinas, preencher espaços e tempos, abraçar a esposa e os netos, beijá-los, ir sozinho à casa de banho, vestir-se sem ajuda! As visitas ao hospital ou os internamentos reviram qualquer rotina; a experiência de estar em quarentena, com o organismo sem quaisquer defesas e o contacto a fazer-se através de fatos protetores! A convalescença e as recaídas, uma viagem ao Vaticano e o desejo de voltar a casa, ao Porto e à família, a um ambiente acolhedor, numa normalidade que identifica a vida, onde se sabe e se quer pertencer! 

A festa vale como corolário do quotidiano e como dinamizadora da normalidade! Ainda que a vida não seja preto e branco! Jesus salva-nos na normalidade da nossa vida, ainda que com um acontecimento que ultrapassa qualquer normalidade!

VL – Desafio da normalidade - 2

A normalidade vale pela segurança que dá, como chão que nos impulsiona e nos faz caminhar. Quanto maior a raiz da árvore mais ela cresce para as alturas. As crianças e sobretudo os adolescentes e os jovens passam a vida a correr atrás das novidades. Os adultos seguem pelo mesmo caminho! Sempre insatisfeitos com o que têm, sempre a reclamar contra rotinas e normalidades, mas rapidamente se desencantam com as novidades que logo deixam de o ser! 

É compreensível e melhor se for sinal da ambição do ser humano em desejar ser mais, não cabendo em si mesmo. Neste sentido, a abertura para o futuro e para a eternidade. Na verdade o homem ultrapassa infinitamente o homem (Blaise Pascal). Não cabemos no tempo. Somos mais que a história que nos baliza entre o nascimento e a morte! Porém, os ramos que lançamos para o Céu, não nos dispensa de cuidar das raízes, para que nasçam e cresçam as flores e daí os frutos! A viagem não vale pela chegada mas sobretudo pelo percurso realizado! 

Se entrarmos na vida de Jesus, vamos ver como Ele Se entranha na vida quotidiana das pessoas e na normalidade da vida comunitária. Nasce e cresce numa família que passa despercebida, cumprindo com os deveres sociais e com as leis religiosas. Nalguns pedaços do Evangelho vem ao de cima a vida tranquila de Nazaré, tranquila mas não fácil. Jesus faz-Se compreender com facilidade, pois fala a mesma linguagem que nós, do campo e do trabalho, do suor e das lágrimas, da solidariedade e entreajuda, das dificuldades em pagar os impostos e sobreviver, e de não desistir perante as adversidades do tempo, da natureza ou dos preconceitos sociais! 

Os evangelistas referem que Jesus chega a determinada povoação e logo avança para o sábado seguinte. A semana não traz nada de extraordinário, percebendo-se que Jesus vive inserido nas famílias e nas comunidades! É um judeu integrado! É na normalidade que Jesus continua a entrar na nossa vida, na minha e na tua vida! É na normalidade do tempo e da história que Jesus nos salva, nos interpela, nos desafia e nos envia. Por vezes quase não se dá pela Sua presença. Mas, pouco a pouco, percebe-se a Sua delicadeza, a Sua bondade. N'Ele vê-se o poder e sobretudo o amor de Deus. 

Na normalidade da vida, a extraordinária entrega a favor da humanidade! Assim Cristo! Assim os seus seguidores! E da normalidade do tempo litúrgico, entramos no tempo especial que nos conduz ao mistério que ultrapassa todas as normalidades, a Páscoa de Jesus!

segunda-feira, 24 de março de 2014

José Maria Cabral - O desafio da Normalidade

JOSÉ MARIA CABRAL. O Desafio da Normalidade. (Impressões do fim da vida). Rei dos Livros. Lisboa 1994, 2.ª Edição. 296 páginas.
       Ler um bom livro pode ajudar a abrir a mente e o coração, a pensar em ideias positivas, em deixar-se desafiar pela história vivida e contada em momentos de grande provação. Na parte final do livro Manuel Forjaz, Nunca desistas da Vida, que fizemos questão de ler e, após a leitura envolvente, achamos por bem sugerir, cujo testemunho do autor tinha como um dos propósitos incentivar outras pessoas com cancro a manter as rotinas, procurando manter a mesma agenda, fazer o que se costumava fazer, não alterar nem hábitos nem afazeres. Lembramo-nos então destoutro comovente testemunho. Lemo-lo há vários anos, lá para o ano de 1996. Depois disso voltamos a repescar algumas passagens.
       José Maria Cabral é médico, ligado precisamente à oncologia. Familiar e próximo de muitas pessoas com cancros e com cancros de muitas estirpes. No dia 8 de outubro de 1991, às três da tarde, no meio do trabalho, foi-lhe comunicado que sofria de uma doença maligna incurável (linfoma maligno). "O cancro parece representar o princípio do mal, a dissolução da unidade, a desindividualização. Por tudo isto e por razões mais obscuras, o cancro, entre outros males, constitui um verdadeiro desafio à normalidade".
       A primeira reação é de dor, de surpresa, de medo. A reflexão fá-lo fixar-se no outono, o declínio da natureza e do espírito. Como sempre, procura a calma serena. "Preparei a minha esperança para dar sentido a uma nova etapa da vida... Percebi a minha nudez... Sentia-me novo para morrer". 44 anos... "Antes, mais jovem tinha preguiça em deitar-me, agora tinha preguiça em permanecer ativo e só pensava em adormecer"... Os médicos são os doentes mais piegas.
       Com o progredir da doença e dos tratamentos, fica cada vez mais dependente, mais exposto aos outros. Agora está do outro lado. Não é médico, é o doente, com neessidade de atenção, de cuidado, de precauções variadas. Mas insiste com a vida. Não deixa de viver a família, com a mulher e os filhos, e de fazer viagens. Naquele que ele define como "o ano da minha morte", não deixa de ir numa viagem a Roma, embora seja o Porto, a sua cidade, e a família, os espaços onde se sente feliz.
       Perpassa muito sofrimento, certamente. A linha condutora, porém, é de grandeza corajosa, procurando viver bem, fazer as coisas mais normais como ir à casa de banho, apreciar pequenas vitórias, enfrentar os medos, os próprios mas sobretudo os da família. Custa mais ainda o sofrimento que a família possa vir a ter. Tem pouco tempo de vida. Mas quer esgotar as hipóteses que lhe são colocadas para minorar a dor ou a possibilidade de cura, calculando o preço/benefício. Sobrevém uma grande fé em Deus. Há um momento em que a normalidade parece ser aceitar a própria morte como inevitável, para não sofrer e não fazer sofrer os outros. É um testemunho muito lúcido sobre a vida, o amor, a família, a introspecção (o Porto e a família), a beleza, a alegria e a santidade, o trabalho e os amigos. Pedindo emprestado as palavras a Manuel Forjaz, diria que o cancro o matará mas não matará a sua a vida, relacionando-se com os amigos, com a família, com o mundo, com Deus. Enquanto houver tempo, há que viver o melhor possível, procurando viver, com as limitações da doença, a normalidade. Estuda com afinco os tratamentos. Às tantas dão-o como curado, que é sol de pouca dura... Novos tratamentos... transplante da medula óssea... debates acesos... perante 5% de hipótese, valerá a pena submeter-se a novo tratamento? Em Paris, ou em Portugal... sempre o Porto.

Da dedicatória do livro:
"Diverte-me a vida, aprecio a vida com intensidade todos os dias. Todo o tipo de vida: vegetal, animal, humana, espiritual..., a criação!
Agradeço aos que me ajudaram no aprofundamento deste sentimento que me arrebata.
Agradeço a dedico estas considerações em particular à minha mulher e aos meus filhos, à família que me faz viver".

Frases avulso:
"Como custa o silêncio! O silêncio da aceitação e obediência, o silêncio para me encher dos outros e me encher de nada de mim!" (p 58).

"As batalhas do meu temperamento desigual oscilavam assim dentro de uma grande amplitude, entre o fantástico e o péssimo, entre a realidade e o sonho, entre a alegria e a tristeza, entre a amizade e o isolamento, entre a glória e o arrependimento" (p 69)

Sobre Mafalda, a mulher: "Eu sofria por ver a dor dela e ela sofria por ver que sobre a minha dor eu tinha a dor pela dor dela. Cada um de nós como desaparecia na dor do outro" (p 82).

"O mês de janeiro chegou. Entrei no ano da minha morte. Era assim que eu interpretava a minha vocação" (p 100).

"Admirava cada vez mais a criação. Quanto mais sentia que nada do que existia era meu, que as minhas coisas e o meu corpo estavam hipotecados, mais gosto tinha pela vida e pelas coisas, pelas coisa em si, não porque fossem minhas... Eu não tenho nada, mas nada, nada meu! E que importa" (p 101).

"Sempre o tempo, sempre o espaço sem tempo, sempre o espírito sem a morada do tempo, sempre a qualidade sem medida... O homem sem tempo não pode ser homem! O tempo parece a alma do homem. Espaço e tempo, corpo e alma, dor e liberdade, obediência e vontade, ato e desejo, diversidade e unidade, dilemas longos e irreais como essas horas sem ritmo" (p. 125).

"É preciso amar inteiramente sem contrapartidas. Amar é querer estar sempre vivo para morrer. É preciso amar sem ver, sem possuir, viver com o estranho e o doloroso instrumento da fé, não a minha mas a que Deus me oferece" (p 196)

"Não poderei transportar uma árvore para o mar e plantá-la.mas poderei ver Deus face a face, poderei plantar-me na intimidade divina. Deus roçou o universo do querer humano. Deus procurou na pequenez do homem a grandeza divina. Deus quis-se na vontade do homem" (p 290).