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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Bento XVI - o que é o cristianismo

BENTO XVI (2023). O que é o Cristianismo. Quase um testamento espiritual. Cascais: Lucerna. 200 páginas.


Existem muitos livros publicados de Bento XVI, enquanto Papa, além de conjuntos de homilias, discursos, encíclicas, exortações apostólicas, entrevistas; enquanto teólogo, muitos mais. Mas este não é mais um livro. Aliás, nenhuma das obras refletidas e escritas por Joseph Ratzinger / Bento XVI é mais uma a acrescentar a outra, como soma, mas é única, pois, mesmo em textos próximos, apresenta novos estudos, achegas, referências. Este é um livro, por vontade própria de Bento XVI, publicado a título póstumo.
Recolhe diversos textos, estudo, reflexão, entrevista, intervenções, alguns já conhecidos, mas aperfeiçoados, outros inéditos sobre os fundamentos do cristianismo, sobre a identidade católica, sobre a relação da Igreja com outras igrejas e com o judaísmo. 
O subtítulo diz bem do objetivo desta coletânea, é quase um testamento espiritual! Noutras obras, como Introdução ao Cristianismo ou Jesus de Nazaré, em três volumes, escrito já como Papa, pode ver-se as intuições fundamentais do teólogo e do papa, do estudioso e do pastor, ou ainda, por exemplo, a Introdução à Liturgia, ou os livros de entrevistas, como o Sal da Terra.
Neste livro póstumo, fruto de uma reflexão mais amadurecida, tendo em conta ulteriores desenvolvimentos teológicos, morais, históricos, sociais e culturais, permitem que o autor refaça ou enquadre temáticas e problemáticas, desafiando outros a refletir sobre as questões que se colocam ao mundo de hoje e concretamente à Igreja e à fé.
Nas diferentes temáticas, a linguagem do Papa é muito acessível, mesmo naqueles temas que exige maior cuidado e argumentação. Nesses casos, Bento XVI recorre a uma ou outra imagem facilitando a compreensão, como quando aborda a realidade da transubstanciação na Eucaristia.
Há apontamentos que mostram a delicadeza para com o seu sucessor, o Papa Francisco, o que merece registo. "No final das minhas reflexões gostaria de agradecer ao papa Francisco por tudo o que faz para nos mostrar continuamente a luz de Deus, que mesmo hoje não se extinguiu. Obrigado, santo Padre!" Ao abordar a teologia moral e a misericórdia divina: "... Aqui devemos encontrar a unidade interior da mensagem de João Paulo II e as intenções fundamentais do papa Francisco: contrariamente ao que por vezes se diz, Jão Paulo II não foi rigorista moral. Demonstrando a importância da misericórdia divina, ele dá-nos a oportunidade de aceitas as exigências morais que se colocam ao homem, ainda que não possamos nunca satisfazê-las cabalmente. Os nossos esforços morais são empreendidos sob a luz da misericórdia de Deus, que se revela uma força que cura a nossa fraqueza".
Ao responder a uma questão sobre o Ano de são José, proclamado pelo Papa Francisco: "Naturalmente, fico particularmente feliz por o Papa Francisco ter reavivado nos fiéis a consciência da importância de são José; e depois li com enorme gratidão e profunda adesão a carta apostólica Patris Corde que o Santo Padre escreveu para o 150.º aniversário da proclamação de são José como patrono universal da Igreja universal. É um texto muito simples que vem do coração e vai ao coração, e que exatamente por isso é muito profundo. Penso que este texto deve ser lido e meditado assiduamente pelos fiéis, contribuindo assim para a purificação e para o aprofundamento da nossa veneração dos santos em geral e de são José em particular".
Verifica-se que Bento XVI não foge a questões, em forma de resposta a perguntas que lhe são colocadas ou no desenvolvimento dos temas, mostrando a discordância com este ou aqueloutro autor, num convite à persistência da reflexão dos temas mais problemáticos. Sobre a Comissão da Teológica Fundamental, cujo Presidente era o mesmo que o da Congregação para a Doutrina da Fé e também da Pontifícia Comissão Bíblica, tendo assumido ele, cardeal Ratzinger, esse mandato e serviço durante muitos anos, quase na totalidade do pontificado de João Paulo II, reflete questões como a Teologia da Libertação, com momentos de grande debate. É curioso o apontamento pessoal que faz sobre um teólogo: "O meu amigo padre Juan Alfaro SJ, que na Gregorina ensinava sobretudo a Doutrina da Graça, por razões que me são totalmente incompreensíveis, com o passar do tempo tornara-se num apaixonado defensor da teologia da libertação. Não queria perder a amizade com ele e assim essa foi a única vez, em todo o período da minha pertença à comissão, que faltei à Assembleia Geral".  Também nisto se vê a sua humanidade: a amizade prevaleceu à disputa e discordância teológica.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Marta Arrais - GUIA PARA UMA VIDA SIMPLES

MARTA ARRAIS (2022). Guia para uma vida simples. Lisboa: Planeta. 256 páginas.


A sugestão deste livro é mais que natural, como os vários textos-crónicas-reflexões de Marta Arrais que lemos com interesse e recomendamos vivamente. A autora tem o dom de escrever bem, escorreitamente, de forma simples e acessível, percetível. A erudição, as frases poéticas, facilitam a leitura e a sua compreensão. Por outro lado, vê-se bem que escreve com alma e com o coração, lançando pistas, desafios interpelando, fazendo-nos parar, sonhar, voar, mostrando como o ser humano é um mistério, em construção e a caminho e que existem aspetos na nossa vida que podem ser mudados, se não ao nível dos acontecimentos, pelo menos, ao nível da atitude que se assume perante os mesmos, perante a vida e diante dos outros. O convite é o de sempre: caminharmos juntos, não deixarmos ninguém para trás, sabermos dizer sim, mas também dizer não, largarmos as pessoas que trazem toxidade à nossa vida, não termos pressa de viver o dia seguinte, vivamos hoje com toda a intensidade que nos é possível!

Muitos dos textos aqui servidos foram escritos durante este longo tempo de invernia, deste tempo de pandemia, e, por conseguinte, fazem eco das preocupações, acolhem as frases feitas, transparecem as lágrimas, os sorrisos e as perdas, deixando claro que nada será como dantes, ainda que muitos o predissessem, que tudo ficaria bem, ou que o pós-pandemia seria uma oportunidade para um mundo mais justo e solidário, mais fraterno. Porém, ainda dentro deste embotamento, muitos sinais contraditórios de egoísmo, de aproveitamento, de esquecimento dos mais vulneráveis. Os chavões, muitos deles, não passaram de intenções que ficaram pelo caminho ou de expectativas, entretanto, goradas quando se voltou a algum tipo de normalidade.

Pelos títulos que encimam cada capítulo, ficamos com uma noção de algumas provocações e convites: 1) Optar pelo essencial; 2) Desligar; 3) Perdoar; 4) Estar disposto e disponível; 5) Aceitar sem compreender; 6) Ter só o que fizer falta; 7) Viver um momento de cada vez; 8) Ouvir (mais) o que é bom; 9) Deixar ir; 10) Desisti quando for preciso; 11) Ter calma e paciência.

A abrir, diz-nos Marta Arrais: “Este livro é um mapa. Um conjunto de páginas que querem sugerir sentidos, trilhos, caminhos, rotas e possibilidades. Antes de começares esta sugestão de viagem, convém que apagues as luzes de tudo o que te distrai e não te deixa pensar com clareza, com chama e fluidez. Não precisas de deixar o que é teu e o que te é querido. Também não é necessário que apagues nenhuma linha da tua história. A ideia é que encontres, nestas páginas, uma ponte que te ajude a encontrar um equilíbrio diferente, uma paz mais quieta, uma vida tranquila e menos atribulada… Está tudo a acontecer ao mesmo tempo? Deixa estar. Não sabes se vais conseguir lidar com a tempestade que já ouves ao longe? Deixa estar. Querem que faças demasiadas tarefas de uma vez só? Deixa estar. Não reconheces as pessoas que foram sempre tuas? Deixa estar. Não estás a conseguir vislumbrar os sonhos e os planos de sempre? Deixa estar. Sossega. Antes de começares, deixa tudo onde tiver que ficar. Não te preocupes. Ninguém consegue tomar decisões quando há demasiado ruído ou quando há demasiada turbulência. Suspende o mundo lá fora. Prende ao peito um ‘Volto já’ e volta quando puderes. Quando quiseres. Quando estiveres pronto. Vamos a isso?”


Mais alguns pedaços de texto da autora:
Hoje eu não consigo perdoar-te. Amanhã tento outra vez.
Hoje eu não consigo encontrar bondade nas pessoas que estão comigo. Amanhã tento outra vez.
Hoje eu não consigo procurar a paz. Amanhã tento outra vez.
Hoje eu não consigo ser feliz. Amanhã tento outra vez.
Hoje eu não consigo não consigo avançar nem um passo. Amanhã tento avançar dois.
Hoje eu não consigo levantar a cabeça do chão. Amanhã tento outra vez.
Hoje eu não consigo encontrar sentido na minha vida. Amanhã tento outra vez”.
Quando não puderes fazer mais nada, ri-te. De ti. Dos tombos que a vida te fez dar. Das lições que tiveste de viver para aprender”.
Se eu não perdoar aquela pessoa que me retirou tempo, disponibilidade e estabilidade emocional, continuarei, na mesma, a deixá-la ficar na minha vida e a perpetuar a sua influência no meu dia a dia. Não vale a pena não perdoar a pessoas tóxicas”.
Viver cada coisa como quem sabe que não pode compreender tudo, entender tudo, fazer parte de tudo… Escolher mais vezes o silêncio. Argumentar menos e interiorizar mais. Não comprar guerras com quem não tem culpa das nossas. Vale mais a pena dividir a nossa guerra com alguém. Ter paciência quando nos faltar a paz”.
Nem sempre somos paz. Nem sempre somos capazes de não incendiar um rastilho que leve a uma ou outra guerra. Nem sempre conseguimos ser bons. Dizer bem dos outros. Não julgar. Nem sempre somos os que terminam as discussões. Muitas vezes, somos os seus protagonistas e os seus iniciadores. Nem sempre somos os primeiros a dar a mão a quem precisa. Muitas vezes somos os primeiros a deixar o barco à deriva”.
Não oiças vozes venenosas, manipuladoras ou demasiado queixosas. São veneno para a saúde da alma”.
A fé é saber que não estamos sozinhos. Que há alguém que nos acompanha, nos guarda e zela por nós. É saber que não estamos cá por uma razão aleatória ou por descuido do universo. Estamos cá porque precisamos. Porque temos de fazer do mundo um lugar único”.
“Não esperes que se resolva. Resolve.
Não esperes que mude. Muda.
Não guardes para depois. Hoje é o dia.
Não te afaste sem ninguém ver. Diz que vais. Por que vais.
Não te escondas nas entrelinhas. Fala.
Não fales quando estiveres furioso. Acalma-te primeiro.
Não sonhes com o céu. Voa e chega lá.
Não te agarres às coisas do mundo. Não queiras ser daqui.
Não saltes sem ver o chão. Vai devagar.
Não tenhas pressa de viver o que ainda não chegou. Cada passo a seu tempo.
Não culpes. Desliga-te da mágoa e passa à frente.
Não te culpes. Fizeste o que podias. Como sabias.
Não te rias do que não conheces. Observa primeiro, julga depois.
Não faças festas. Sê festa.”

Não te rendas quando o combate ainda vai a meio.
Não te rendas quando a luta for pelo bem.
Não te rendas ao que te contam. Pode não ser verdade.
Não te rendas ao que te assusta. O medo faz os melhores heróis.
Não te rendas, a vida ainda agora começou”.

Não te esqueças de agradecer o passado. Foi ele que te trouxe, pela mão, até aqui. Já cá estás. Agora, podes deixá-lo ir. De vez em quando, podes fazer-lhe uma visita, mas é melhor que resistas à tentação de viver com ele”.
“Não te esqueças: quando viveres algo terrível – espera. Com paciência. Com cuidado. Lá mais para a frente vais ser capaz de entender tudo”.

Não estamos cá para ser pouco. Estamos cá para ser tudo”.

sábado, 10 de julho de 2021

TERESA POWER - TODOS OS DIAS DA NOSSA VIDA

TERESA POWER (2021). Todos os dias da nossa vida. Prior Velho: Paulinas Editora. 128 páginas.


Este é um livro que procura de testemunhar 25 anos de matrimónio. A autora, Teresa Power, percorre os 25 anos de compromisso a partir das leituras, das orações e do compromisso no dia do matrimónio. E como que distribui ou textos pelo tempo de encontro e namoro, o momento do consentimento e os vinte cinco anos de vida de casados, com o nascimento dos filhos e da vida familiar.
O compromisso inicial, concretiza-se nas dificuldades e nas bênçãos, na gravidez e o nascimento de um e outro filho, o crescimento, a educação, as opções. A alegria cresce à medida que a família aumenta. Os momentos de oração em família, a participação na missa do domingo e escuta da palavra. Todos os dias, a oração de bênção à refeição, com música e cânticos, a oração do terço, as leituras diárias da Missa, fazem parte do compromisso da educação na fé dos filhos. Os pais rezam e os filhos aprendem naturalmente a rezar e a apreciar o ambiente orante. 
A história da salvação, narrada da Bíblia, é também a nossa história, a história da família. Sete filhos vivos, que são uma bênção, mas também o filho que morreu. A doença e o definhar desse filho envolveu lágrimas e lamentos, mas muita oração e a presença permanente, ora do pai ora da mãe.
É um livro que se lê com muita facilidade. Em cada página escrita transparece vida, fé, a gratidão.


Vejamos o livro sugerido na plataforma iMissio, por Bento de Oliveira:
"Esta é a história de uma vivência partilhada, uma história real, contada na primeira pessoa. Usa uma linguagem límpida e corrente por onde escorre uma comunicação ardente e entusiasmante!… A autora adianta, na Introdução, algumas das motivações que a forçaram a fazer esta partilha – «Quando, há um quarto de século atrás, o Niall e eu celebrámos o nosso matrimónio, não sabíamos que estávamos a iniciar uma história bíblica» – e acrescenta, então a razão maior: «Escrevi este livro para nunca me esquecer deste milagre… como oração de louvor, de súplica e de ação de graças.»
Extravasa do coração da autora o impulso de uma palavra que a força como um dever «para que outras famílias se deem conta de que a história de cada um é uma história bíblica» … ainda que para alguns, no decurso de tempos envoltos em névoa, sintam obliterado o céu.
Teresa Power é mãe de uma família de 8 filhos. Fundadora, junto com o marido, Niall, de um novo movimento laical, as Famílias de Caná, que pretende revitalizar a espiritualidade familiar. Teresa traz agora a público algumas das experiências espirituais que vive em família.
Para esses, especialmente, foi escrito este livro que os ajudará, sem dúvida, a (re)descobrir «o amor deste Deus imenso que nos dá não duas, mas infinitas oportunidades de regresso a Ele» … e às muralhas da família que Ele habita e que sempre cobre de bênção sempre que comungada".



Algumas expressões da autora:
Nenhum de nós pode escolher os membros da sua família: não escolhemos os pais, não escolhemos os filhos, não escolhemos os tios ou sobrinhos, os avós ou os netos, os sogros ou as noras. Há uma única pessoa da nossa família, uma única, que podemos escolher: o nosso cônjuge. Não é irónico ver que cada vez mais pessoas parecem errar na única escolha livre lhes é dado fazer?

O amor, por definição, não tem fim. Ninguém ama a prazo. Ninguém ama sem ser loucamente, absurdamente, para sempre. Dizia Pier Giorgio Frassati: «O amor nunca diz: já chega». Porque o amor não é um sentimento, que hoje se experimenta e amanhã já mudou. O amor, diz Jesus, é o mandamento: Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como Eu vos amei  (Jo 15, 12).

Um dia a nossa vida era perfeita, no dia seguinte acordamos no hospital pediátrico. Apesar de ambos estarmos já familiarizados com morte, o Niall de um irmão, eu do meu pai, a doença Tomás apanhou-nos totalmente desprevenidos. Agora, 14 anos depois destes dois meses no hospital pediátrico, falamos da morte com frequência. Porque não lhe temos mais medo. Porque sabemos que ela já não nos pode matar, antes nos projeta na vida.

Filho não é um direito, o filho é um dom. Nunca faremos nada que mereça tamanha graça de Deus. O filho ultrapassa-nos sempre, vem de nós, mas não nos pertence, nasce do nosso corpo, mas traz em si uma semente de eternidade.

A mãe dá luz, o pai precisa de cortar o cordão umbilical, uma e outra vez; a mãe dá colo, o pai lança o filho ao ar, em contínuos movimentos de vaivém - a brincar e na vida real; a mãe dá o leite, o pai dá o alimento sólido; a mãe abriga, o pai desafia; a mãe transporta o filho um abraço, para que viva ao ritmo de seu coração; o pai transporta-o às cavalitas - para que veja mundo, bem apoiado no seus ombros.

Estamos decididos a batizá-los [os filhos] poucos dias depois de nascer, para que não percam um só dia da graça que Deus lhes quer oferecer. E a levá-los à missa todos os domingos da sua vida no meio de nós. Porque não há forma mais excelente de os fazer a experimentar o Céu na Terra que a Eucaristia... Mas não podemos falhar no nosso dever primeiro de os levar a Casa do Pai, domingo após domingo, e de os ensinar a conversar com Ele, dia após dia. É que antes de serem nossos filhos, são filhos de Deus...

segunda-feira, 17 de maio de 2021

JOSEPH FADELLE - O PREÇO A PAGAR

JOSEPH FADELLE (2016). O Preço a pagar por me tornar cristão. Prior Velho: Paulinas Editora. 6.º Edição. 232 páginas


O título já diz muito do que poderá conter este livro. É um testemunho de vida e de fé. Um muçulmano, escolhido pelo pai para lhe suceder á frente do clã, protegido e temido.
Nasceu em 1964, Mohammad al-Sayyid al Moussaoui, em uma família xiita iraquiana. Uma família cuja tradição quer descendência direta do Profeta através do 7.º Imam.
Vai para o exército, numa altura em que o Iraque de Saddam Hussein guerreia o Irão. O pai fará tudo para o livrar só três anos de tropa a que está sujeito, mas a determinada altura tem que se apresentar ao serviço militar e é enviado para o sul. Fica situado um pouco atrás da zona de combate, mas na sua caserna está um cristão, a quem tentará converter ao Islamismo. No primeiro impulso, quer que lhe arranjem outra caserna: "É um homem bom, um agricultor. Tem 44 anos e é cristão...". Soam os alarmes. Surpresa, medo e pânico que o fazem gritar como um louco... mas o soldado convence-o a esperar. Diz Joseph (Mohamed): "Na minha terra, os cristãos são considerados párias impuros, seres que não valem nada, com quem devemos misturar-nos, custe o que custar. No Alcorão, que recito todos os dias desde a minha mais tenra idade, são hereges que adoram três deuses". Vendo a razoabilidade das palavras do soldado que o guiou à caserna, começa a maturar na possibilidade de ter sido Alá a enviar aquele cristão para ele o converter. Curioso, que mais tarde trata de comprar um cavalo, como presente para Massoud, certo de que o vai converter ao Islamismo.
Os dias vão passando e verifica que afinal não está surpreendido com o odor deste cristão, pois segundo a família, um cristão conhece-se pelo mau cheiro. Vai ficando curioso. Trocam palavras, por exemplo, sobre agricultura. Deixa-se "seduzir" pelo seu charme, pela sua fluência a falar e começa a estudá-lo para saber como o converter ao islão. Entretanto, Massoud ausenta-se durante um dia para tratar de uma missão. Curioso, vê um livrinho, "Os milagres de Jesus", tendo na capa um homem a sorrir, cercado por um halo luminoso. Nunca tinha ouvido falar deste Jesus, mais tarde verificará que o Alcorão lhe dá outro nome. Deixa-se fascinar pelos milagres de Jesus e sente alegria que lhe faz bem. Depois confessa a Massoud, a leitura e pergunta-lhe quem é Jesus: Isa ibn Maryam, o Filho de Maria. A partir daqui fica também a saber que os cristãos também têm um livro Sagrado, a Bíblia, com o Antigo e Novo Testamento. Querendo conhecer a Bíblia, Massoud pergunta-lhe sobre o Alcorão e convida-o a ler (reler) com atenção o Alcorão e não automaticamente. Ao ler o Alcorão vai-se dececionando, como por exemplo a superioridade dos homens e a subjugação das mulheres, que terão só metade do cérebro... o casamento de Maomé com uma menina de 7 anos; ou com uma nora... uma mulher perde o seu marido e deve esperar três meses e dez dias para voltar a casar-se e Maomé casa com uma mulher no dia em que perde o marido, morto a mando do Profeta... Tudo isto deixa Joseph muito abalado na sua fé.
A primeira vez que se recorda de um sonho ao acordar - tinha ciúmes dos irmãos que sonhavam e relatavam os seus sonhos - é sobre um rio, está na margem, na outra margem um homem com cerca de 40 anos, com uma túnica bege, sem gola. Quando começa a atravessar o regato, fica suspenso no ar... o homem da outra margem estende-lhe a mão e ajuda-o a atravessar a água e a aterrar ao seu lado. Fica impressionado com a beleza deste homem, olhos azuis acinzentados, uma barba rala e cabelos longos... Diz-lhe este homem: "para atravessares o ribeiro, precisas de comer o pão da vida".
Quando abre os olhos, Massoud está de regresso e traz-lhe o Evangelho. Fala-lhe das quatro versões do Evangelho e convida-o a começar pelo de São Mateus. Para não seguir todas as indicações, começa pelo quarto Evangelho, o de São João. Quando chega ao capítulo seis, encontra as palavras "o pão da vida". "Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não mais terá fome..."
Começa a sentir-se chamado... "Se Alá fala comigo como um pai que ama os seus filhos, se Ele perdoa aos pecadores, então a minha relação com Ele nunca mais poderá ser a mesma. Já não estou no domínio do medo, mas no do amor, como numa família".


(Reencontro, em França, com o irmão, entretanto também batizado)

A partir de então, começa uma verdadeira façanha, procurando Igrejas para ser batizado, querendo testemunhar Jesus Cristo também junto da família, achando que a família o compreenderá. Vai sendo avisado para ter precaução, pois a conversão ao cristianismo é sentença de morte para o próprio e para quem está envolvido nessa conversão. É preso e torturado, na esperança que esqueça o cristianismo. É lançado sobre ele fatwa pelo aiatola Mohammed Sadr (a grande autoridade xiita no país na época), detenção e tortura, condenação à morte, executada pelo tio Karim e pelos irmãos. Quando vão para atirar sente um impulso, intuição, voz interior, para fugir. Os tiros vão falhando. Cai como morto, desmaiado, na lama. Acorda no hospital, sem saber como foi lá parar. Tinha sido baleado na barriga da perna. Um das balas furou a roupa debaixo do braço. A religiosa responsável pelo Hospital exige que deixe o hospital quanto antes, para não colocar em risco as religiosas e quantos trabalham no hospital. O recursos a cirurgiões amigos da irmã/religiosa que o ajuda, chegam à conclusão que tem que ser extraída a bala quanto antes (não há buraco de saída), mas não encontram clínicas que se disponham a abrir as portas. Enquanto discutem numa sala contígua o que fazer, Joseph chama-os porque está a deitar sangue do outro lado da barriga da perna. A bala desapareceu. Procuram no quarto, mas não encontram. O médico fica incrédulo e propõe que se faça uma ecografia. Conclusão, não há sinais de bala, nem de ferimento no interior da perna, pelo que fica aberta a possibilidade para algo extraordinário.
De aldeia em aldeia, já batizado, ele e a esposa, e os filhos, vão-se escondendo até que rumam a França, onde vivem.
Este é um testemunho, na primeira pessoa, de fé e coragem, no meio de muitas "provações", contratempos, riscos, mas o foco é o batismo e a comunhão e testemunhar a fé em Cristo. E pelo meio muitos sinais e "coincidências"...

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

São Cristóvão, mártir

(São Cristóvão, de Hans Memling)

São Cristóvão é padroeiro dos motoristas (e dos archeiros, moços de fretes, carregadores dos mercados, pisoeiros, negociantes de frutas, automobilistas; é invocado contra a morte súbita, as tempestades, o granizo, as dores de dentes e a impenitência final) e comemorado, pelo martirológio jeronimiano, a 25 de julho. O seu nome, Cristofóro, para nós Cristóvão, significa porta-Cristo. Foi-lhe dedicada uma Igreja, na Bitínia, a 22 de setembro de 452. O seu martírio terá ocorrido no século III, um século de muitos mártires e de grande perseguição à Igreja e aos cristãos.
A lenda grega diz que ele era antropófago, da tribo dos cinéfalos (homens com cabeça de cão). Converteu-se ao cristianismo. Alistou-se no exército imperial e recusou-se a negar a sua fé. Morreu em suplícios inimagináveis.
A lenda ocidental: era um gigante com a mania das grandezas. Servia só os mais importantes. Primeiro um rei que ele pensava ser o rei mais importante do mundo. Depois encontrou o Demónio e achando que era a pessoa mais importante do mundo, seguiu-se, verificando que ele se desviava sempre que via uma cruz, contornando o caminho. Perguntou-lhe porque é que se desvia da cruz, ficando a saber a referência ao crucificado-ressuscitado.
Conhecendo Jesus Cristo, convenceu-se que era o maior rei que podia servir. Converteu-se. Pediu a um ermitão que o instruísse. Certo que Jesus apreciava a bondade, tornou-se transportador de pessoas num rio. Uma noite coube-lhe passar um menino, que se tornou tão pesado, obrigando-se a firmar-se bem nas pernas e com a ajuda de um cajado, com o receio real de ser derrubado. Quando chegou à margem disse ao menino que nem o mundo era tão pesado. Então o menino respondeu-lhe: “Tiveste às costas mais que o mundo inteiro; transportaste o Criador dele. Sou Jesus a quem tu serves”.
O martírio foi o último testemunho que deu de Jesus Cristo.
Paróquias que o têm como Padroeiro em Portugal: em Évora - Paróquia de São Cristóvão; em Lisboa Paróquia de São Cristóvão; em Viseu - São Cristóvão de Lafões; em Lamego - São Cristóvão de Nogueira (Zona Pastoral de Cinfães); em Vila Real - São Cristóvão do Douro; em Braga - Paróquia de São Cristóvão de Selho (Guimarães).
São Cristóvão, de Filippo Mazzola

Fonte: Santos de Todos os Dia, da Editorial A.O., referente ao mês de julho, publicado em 2005.
As imagens, digitalizadas, são as que aparecem neste mesmo volume.

Domingo XIX do Tempo Comum - ano A - 9.agosto.2020

quarta-feira, 10 de junho de 2020

ZACHARIAS HEYES - Como encontrar Deus

ZACHARIAS HEYES (2020). Como encontrar Deus... e porque nem é preciso procurá-l'O. Lisboa: Paulus Editora. 128 páginas
Jesus, com a Sua encarnação, vida, mensagem, com a Sua morte e ressurreição mostra-nos que Deus é um Deus tão próximo, tão próximo, que Se confunde com a humanidade. Em Jesus, Deus não apenas vem à procura da humanidade "perdida", mas faz-Se Ele mesmo humanidade, assumindo a nossa carne, a nossa fragilidade. Por conseguinte, se diz que o cristianismo não é tanto uma religião, mas um encontro, um acontecimento: Deus, Pai/Mãe, faz-Se ser humano, vem e faz a Sua morada em nós e no mundo que é a nossa casa, a casa de todos.
"Como encontrar Deus... e porque nem é preciso procurá-l'O". O título do livro faz-nos intuir o propósito do autor com estas reflexões. O Padre Zacharias Heyes é monge na Abadia de Münsterschwarzach, na Alemanha. Logo a abrir diz o que pretende. "Aquele que parte em busca de Deus não precisa de ficar constantemente no 'modo de procura', mas ter apenas a disposição interna de permitir que Deus o encontre e de O encontrar no meio das pessoas... em Jesus é evidente que Deus não só Se aproximou das pessoas, mas que Ele está nas pessoas, Ele mesmo tornou-Se homem e, como tal, pôde ser vivenciado pelos outros... O caminho leva à descoberta de Deus em mim e no outro, pois em Jesus evidencia-se que aquele que deseja encontrar Deus precisa de procurar o ser humano... se Deus está no meio da vida, no quotidiano das pessoas, então é exatamente aí que a Igreja precisa de estar".
A Encarnação de Jesus é o acontecimento decisivo. "Os cristãos acreditam que em Jesus o próprio Deus Se tornou homem. Ele viveu entre as pessoas, deu-lhes o seu amor, a sua amizade, curou-as e instruiu-as. As pessoas que conhecem Jesus recebem uma nova esperança e força através desse encontro. Deus encontrou o ser humano no homem Jesus. O desejo de Deus é estar presente entre as pessoas porque Ele ama os seres humanos".
A primeira parte do livro apresenta as experiências bíblicas essenciais e a certeza que Deus encontra o ser humano. O autor apresenta algumas personagens bem conhecidas: Adão e Eva, a certeza que não somos fruto do ocaso, mas somos criados pelo amor de Deus; Abraão, que Deus encontra através dos Seus mensageiros, revelando-Se como um Deus da partida e do caminho, num encontro que muda a sua vida e parte para outra terra; Moisés, salvo pelas águas e a certeza que "não existe lugar neste mundo que não seja lugar da presença de Deus, não existe lugar que não seja chão sagrado, não existe lugar em que não possamos encontrar Deus"; David, que Deus encontra para o ungir e tornar Rei do Seu povo; Maria, moça simples do Povo de Israel, que é surpreendida pelo Anjo Gabriel e se entrega à vontade de Deus, permitindo que n'Ela se realize a encarnação, tornando-Se a Mãe de Deus; José, a quem Deus Se comunica pelos sonhos, e que aceita o que lhe é pedido em sonho; Zaqueu, cobrador de impostos, é encontrado por Jesus, na sua banca, na certeza que Deus vem ao nosso encontro na nossa vida, antes de qualquer exigência moral, vem para ficar em nossa casa; a mulher junto ao poço: "Deus não está preso a nenhum lugar geográfico, as pessoas podem encontrá-l'O em qualquer sítio; os discípulos de Jesus: "ninguém deve acreditar que está sozinho e abandonado... a maneira mais simples de experimentar o amor de Deus é no amor de outra pessoa, porque esse amor é palpável", e Jesus, na certeza que "Deus não Se esconde. Ele deseja ser encontrado e redescoberto; nunca para de bater à porta, de chamar a nossa atenção para se relacionar connosco".
Num segundo momento - Não procures, encontra! - o autor conduz-nos a encontrar Deus em mim, partindo do facto de sermos imagem de Deus, aceitando Deus na nossa vida e no nosso corpo e com Ele tornando-nos cocriadores; a encontrar Deus nos outros - "Se eu quiser encontrar Deus no outro, o 'mapa do tesouro' que me leva até Ele é a conduta e as palavras de Jesus. Como ser humano, Ele viveu como todos os outros, entre os seres humanos. Ele amou, sofreu e zangou-se como todos não fazemos. Mas fez algumas coisas de modo diferente ao que as pessoas estavam acostumadas a fazer na época que não só surpreendeu mas também chocou aquelas que conviviam com Ele. Mas isso também significa encontrar Deus, e ás vezes pode ser incómodo... Deus pode ser experimentado no outro, no diálogo que aquece, fortalece, cura, edifica e que não julga nem condena"; a comunhão na Igreja - o encontro com Deus passa pelo encontro das pessoas umas com as outras, estamos vinculados uns aos outros, comungamos o mesmo corpo, o mesmo pão. "Eu encontro-me no outro". Solidariedade radical; o Deus em mim busca e encontra o Deus no outro, como João e Jesus, no encontro entre Isabel e Maria e todos são lugar para encontrar Deus, todos "são lugar da presença de Deus. são imagem de Deus; ou, por outras palavras, o outro é sarça ardente... o Ser humano é local da presença de Deus. Ele é a luz do mundo.. Deus deseja brilhar em cada um e por meio de cada um neste mundo". Jesus há de lembrar-nos, a propósito: o que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos é a Mim que o fazeis. Entra aqui então o programa das obras de misericórdia... Na terceira parte: "Onde é a Igreja?" e obviamente que a Igreja é... a caminho, mosteiro, peregrinação, convívio, rituais, para o espírito do tempo, misericórdia. A Igreja é com cada um, em caminho e em comunhão, na busca e sobretudo na descoberta e no encontro de Deus em cada ser humano.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

ROBERT CHEAIB - EDUCAR OS FILHOS NA FÉ

ROBERT CHEAIB (2019). Educar os filhos na fé. Prior Velho: Paulinas Editora. 208 páginas.
"Enquanto os filhos são pequenos, os limites, as regras e a disciplina não são apenas úteis, são necessários e cruciais. Somos responsáveis pelos nossos filhos quando são pequenos e é ingénuo pensar que podem ser deixados entregues a si próprios logo em tenra idade. É uma espécie de «abandono de menores»... Um dos primeiros segredos da educação dos filhos na fé é mesmo: começar cedo. Ao invés, um dos erros da educação religiosa dos filhos é ficar à espera que cresçam, que «tenham idade para conversarmos sobre estas coisas»... Se não fores tu a semear, outro semeará por ti e, muito provavelmente, semeará uma semente diferente - se não mesmo contrária - da tua... «Não os ensino a falar português porque tenho receio que no futuro a língua portuguesa nãos eja a língua da sua preferência». É um raciocínio ridículo porque, assim, privo os meus filhos de uma ferramenta relacional importante como a língua".
Por estas palavras do próprio autor, podemos calcular a importância da educação da fé das crianças, a começar no berço. Achar que se deve deixar a religião para quando os filhos puderem escolher é um erro infantil, uma vez que em todas as dimensões da vida, os pais procuram dar as ferramentas aos filhos para que, ao crescerem, possam tomar as próprias decisões. Também assim no campo da religião. Esta deve ser como a língua materna. Se os pais se escusarem a educar o filhos, haverá quem o faça, a televisão, a Internet, os colegas.
O autor é doutorado em Teologia Fundamental, pela Universidade Pontifícia Gregoriana, exercendo a docência em várias universidades, é conferencista, em Itália e em outros países, abordando temáticas relativas à vida de casal, educação dos filhos, juventude e fé, desafios do ateísmo. É casado e pai.

Os cinco pilares propostos pelo autor e desenvolvidos ao longo do livro:
  • Educação preventiva: é preciso começar cedo. É preciso prevenir a queda da fé reforçando as fundações enquanto os filhos são pequenos.
  • Educação no dia a dia: a fé não se vive dentro de uma redoma de vidro nem de maneira isolada do resto da educação. A vida de fé precisa de uma educação integral e de uma experiência diária. Só experimentando o amor no dia a dia é que os nossos filhos vão percecionar e sentir o Amor de Deus como credível e familiar.
  • Educação narrativa: a fé não é feita de conceitos, mas de narrações, de um povo que faz experiência de um Deus que vem ao seu encontro; de uma comunidade que faz experiência de um Deus que se faz homem, fala do Pai através de parábolas e de histórias convidando-nos a sermos, como Ele, testemunho e parábola de Deus.
  • Educação responsável: como pais não podemos delegar aos outros a responsabilidade da educação na fé dos nossos filhos. Aliás, somos mesmo os primeiros catequistas deles. E somo-lo, em primeiro lugar, com o exemplo de vida que não deve desmentir as nossas palavras. Somos também responsáveis no sentido que temos a tarefa de dar respostas às perguntas dos nossos filhos ou, pelo menos, temos a responsabilidade de os saber orientar para as pessoas que estão em condições de dar resposta às legítimas perguntas e dúvidas em matéria de fé.
  • Educação responsabilizadora: ou os nossos filhos se tornam crentes ativos ou então serão para sempre clientes passivos que, mais tarde ou mais cedo, se aproximam de fornecedores de respostas mais perspicazes (cf. Lc 6,8). Os filhos sentir-se-ão parte da Igreja e que a fé é a fé deles, se tiverem feito experiência pessoal de Deus. A nossa tarefa, enquanto eles forem pequenos, é a de lhes proporcionar oásis onde possam ir buscar a água de Cristo, oásis que podem ser comunidades oficiais ou encontros «informais» com a prole de outras famílias desejosas, como nós, de criar os filhos na fé».
Ao longo do livro, o autor vai sublinhando a presença dos pais em relação aos filhos, arranjar tempo, proximidade, as primeiras testemunhas da fé, o exemplo é crucial, o amor entre os esposos, que nunca deve ser descurado. A educação, também na fé, passa pela vivência. "Para sermos bons catequistas dos nossos filhos devemos ser bons pais". A amabilidade há de ser a referência na educação: "Quem não se sente amado não quererá ouvir razões. Quem não se sente amado e não experimenta o amor não acreditará no Deus-amor. Sem amor a nossa existência permanece indecifrável e insensata... o amor exige proximidade" e escuta.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

DOROTHY DAY - A LONGA SOLIDÃO

DOROTHY DAY (2019). A Longa Solidão. Autobiografia de Dorothy Day. Lucerna. 264 páginas
A autora, Dorothy Day, nasceu no seio de uma família protestante da classe média norte-americana, em 1897. Viria a tornar-se sufragista, escritora social e política e, mais tarde, uma conhecida ativista católica. O exemplo de alguns vizinhos católicos, vendo a forma como rezavam, encontrando uma outra senhora a rezar de joelhos, a recitação do terço, a participação na Santa Missa, a cada domingo, ou mesmo todos os dias, foram despertando nela o interesse pelo catolicismo, ainda que tivesse dificuldade em entender o pouco envolvimento da Igreja Católica no campo social, não se vislumbrando a opção pelos pobres e pelos trabalhadores, deixando a outros essa luta.
Aquando do nascimento da filha, Tamara, decidiu que queria o melhor para a filha, e o melhor era fazê-la católica, batizando-a. Foi encontrando algumas dificuldades, vivia em união de facto e o marido era descrente e contrário a tudo o que tivesse a ver com religião. Já que queria batizar a filha, foi-lhe recomendado que faria mais sentido se também ela estivesse mais comprometida. Viria a ser batizada no mesmo dia que a filha. Apesar de gostar muito do marido, decidiu que o seu caminho seria outro, de total comprometimento com a condição de batizada, acolhendo as orientações da Igreja.
Esteve ligada a diversos movimentos de trabalhadores, de pobres, de anarquistas, de comunistas, trabalhando como jornalista, como repórter ou participando em manifestações contra a guerra, a favor dos direitos das mulheres, pela melhoria de condições dos mais pobres. Esteve presa por duas vezes, em condições sub-humanas e também aí a luta por melhores condições para as prisioneiras.
Marcante nesta autobiografia, e por certo no seu compromisso social, o encontro com Peter Maurin. Juntamente com Peter nasceu a ideia de publicar um jornal, que teria o nome de The Catholic Worker, a fim de divulgar as ideias e mensagens de Peter, mas também outros textos de intervenção, na defesa dos trabalhadores. Sem muitos meios e com a preocupação de ser um jornal muito barato, deitaram mãos à obra e rapidamente se transformou num jornal de grande tiragem, chegado inclusivamente à Europa.
Com as ideias do Jornal, com voluntários que se foram juntando, ajudando a vender o jornal, a distribui-lo. Os voluntários foram também contando com a ajuda do jornal, refazendo as suas vidas ou pelo menos podendo ter acesso a refeições, o pão dos trabalhadores. Daí à criação de casas de acolhimento foi um quase nada. O jornal e o movimento caminharam e cresceram juntos, alugando casas, para albergar famílias, investindo em quintas, para serem auto-suficientes, divulgando a doutrina social da Igreja, defendendo o pacifismo, o regresso aos campos, a objecção de consciência face à guerra.
O movimento seguiu uma linha de inclusão de trabalhadores e intelectuais. O trabalho não é apenas o físico, mas também o intelectual, o espiritual. O propósito do movimento era alimentar os famintos, acolher os pobres, os vulneráveis, os doentes e os necessitados, no espírito da caridade cristã.
O remédio para a grande solidão é a comunidade. "Não só a comunidade básica da família, mas também uma comunidade de famílias, combinando a propriedade privada com a propriedade comunitária... Havia um grande desejo de propriedade privada, mas um desejo ainda maior de comunidade. O Homem não foi feito para viver sozinho... A única resposta nesta vida para a solidão que todos acabamos por sentir é a comunidade. Vivendo juntos, partilhando, amando a Deus e amando o nosso irmão, e vivendo perto dele em comunidade, para podermos demonstrar o nosso amor por Ele"
"Sentia, já aos quinze anos, que Deus queria que o Homem fosse feliz, que Ele pretendia dar-lhe aquilo de que ele precisava para levar um vida com o objetivo de ser feliz, e que não era necessário termos tanta pobreza e tanta miséria quantas as que eu via à minha volta e sobre as quais lia na imprensa diária"
"Tinha 17 anos e sentia-me completamente só no mundo, divorciada da minha família, de toda a segurança, e até de Deus. Sentia a arrogância imprudente e, com essa imprudência, uma sensação de perigo na qual me comprazia.
Havia uma interrogação na minha cabeça: porque se fazia tanta coisa para remediar os males sociais em vez de se começar por evitá-los?"

"Estou a rezar porque estou feliz e não porque estou infeliz. Eu não me voltei para Deus por infelicidade, por tristeza, por desespero -  para obter consolo, para obter algo d'Ele... comecei a ir à missa regularmente ao domingo de manhã... o meu amor ardente pela criação levou-me ao Criador de todas as coisas"
"Sabia que iria batizar o meu bebé, custasse o que custasse. Sabia que não queria que ela se debatesse durante muitos anos como eu, duvidando e hesitando, indisciplinada e amoral. Sentia que era a melhor coisa que poderia fazer pela minha filha. Para mim, rezei pelo dom da fé... Tornar-me católica significava enfrentar a vida sozinha e eu sentia-me presa à vida familiar. Era difícil pensar em desistir de um companheiro para que a minha filha e eu pudéssemos tonar-nos membros da Igreja. O Forster não iria ter nada a ver com a religião, ou comigo se a abraçasse. Por isso esperei..."
"Aprendi a rezar o terço..."
"Eu amava a Igreja por Cristo tornado visível. Não por ela mesma, porque muitas vezes era um escândalo para mim. Romano Guardini disse que a Igreja é a Cruz na qual Cristo foi crucificado; não se pode separar Cristo da sua Cruz e temos de viver num estado permanente de insatisfação com a Igreja".
"Mas a palavra final é o amor. Às vezes foi, usando as palavras do padre Zossima, algo duro e terrível, e a nossa própria fé no amor foi provada pelo fogo.
Não podemos amar a Deus a não ser que nos amemos uns aos outros e, para amar, temos de conhecer-nos uns aos outros. Conhecemo-l'O pelo partir do pão, conhecemo-nos uns aos outros partindo o pão, e deixamos de estar sós. O Céu é um banquete e a vida também é um banquete, ainda que de côdeas duras, em que exige companheirismo.
Todos conhecemos a longa solidão e aprendemos que a única solução é o amor, e que o amor vem com a comunidade".

segunda-feira, 11 de março de 2019

Tomáš Halík e Anselm Grün - O abandono de Deus

TOMÁŠ HALÍK e ANSELM GRÜN (2017). O Abandono de Deus. Prior Velho: Paulinas Editora. 224 páginas
       Tomáš Halík nasceu a 1 de junho de 1948, em Praga, na Checoslováquia num ambiente e numa família ateia ou a-religiosa. Batizados os pais pararam na Primeira Comunhão e, seguindo a tradição, batizam o filho, mas não têm mais ligações à Igreja. Por volta dos 18 anos, Halík encontra-se com a fé e, particularmente, com o cristianismo. Licenciou-se em Ciências Sociais e Humanas pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Charles, em Praga e, clandestinamente, estudou teologia em Praga, tendo entretanto começado a frequentar a Igreja, a escutar os sermões, tornando-se acólito e sentindo a vocação ao sacerdócio, foi ordenado em Erfurt, em 1978. Durante o período comunista, considerado inimigo do regime, é impedido da docência universitária. Assume, então, a profissão de psicoterapeuta de toxicodependentes, situando-se na linha dos padres operários, pois não pode revelar a sua identidade eclesial. Com o fim do comunismo no seu país natal, pode então viajar pelo mundo inteiro. Em 1989, Papa João Paulo II desafia-o a estudar na Universidade Pontifícia de Roma, Lateranense, frequentando aí um curso de pós-graduação. Frequentará outra pós graduação na Faculdade Pontifícia de Teologia de Wroclaw, na Polónia. Trabalhou de perto com o futuro Presidente Václav Havel e, após 1989, tornou-se num dos seus conselheiros. Depois da queda do Comunismo, serviu como Secretário-geral da Conferência Episcopal da República Checa (1990-93).
Halik continua a ser professor de sociologia na Universidade de Charles, em Praga (Departamento de Estudos Religiosos, Faculdade de Letras), pároco da Paróquia Académica e Presidente da Academia Cristã da República Checa. Em 1992, o Papa João Paulo II nomeou-o conselheiro do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso e, em 2009, o Papa Bento XVI concedeu-lhe o título de Monsenhor – Prelado Honorário de Sua Santidade.

       Anselm Grün, monge beneditino e doutor em teologia, nasceu em 1945 em Junkershausen, na Alemanha, numa ambiente católico, com a família comprometida com a Igreja, é sobrinho de um padre. Cresceu em Munique, ajudava na loja de materiais elétricos de seus pais. Aos 19 anos, entrou para a Abadia Beneditina Muensterschwarzach, perto de Würzburg, na Bavária, onde vive até hoje. Ali aprendeu sobre a arte da liderança e da gestão de pessoas descobrindo conexões entre a Regra de São Bento, a Bíblia e a psicologia moderna. Esse, provavelmente, tenha sido o ponto de partida para aperfeiçoar-se e dar início às suas atividades de conselheiro espiritual, palestrante e mestre em autoconhecimento. Nos seus livros e cursos, procura responder às necessidades e problemas mais comuns e urgentes da existência humana, como os desafios que conduzem ao amadurecimento, os relacionamentos pessoais, a presença de Deus no quotidiano e outras questões ligadas à espiritualidade, recorrendo aos seus conhecimentos filosóficos, teológicos e da tradição cristã, assim como de psicologia, meditação e contemplação. Publicou o seu primeiro livro em 1976. Hoje é autor de mais de 300 obras, traduzidas para 28 idiomas, sempre em linguagem acessível e clara. Em 2013, a Universidade de Friburgo, na Suíça, sediou o simpósio “Teologia e linguagem em Anselm Grün”, organizado pela cátedra de Teologia Pastoral, Pedagogia Religiosa e Homilética e pela Pastoral Universitária de Berna.

        Claro que a biografia destes dois homens de fé é importante. O livro que escreveram em conjunto tem muita das suas vidas de fé. Halík, nascido num ambiente ideologicamente contrário à fé, numa família, segundo o próprio, sem ligação à Igreja mas que vivia um humanismo secular. Foi descobrindo a fé e a Igreja, ordenando-se sacerdote clandestinamente. A democracia na Checoslováquia (a partir de 1 de janeiro de 1993, a Checoslováquia deu lugar à República Checa e  Eslováquia) trouxe novos desafios e problemas. Não foi fácil conciliar a Igreja que vivia clandestinamente com a Igreja que conviveu com o regime, sendo que agora já não havia um inimigo a combater. Um dos propósitos de Halík é o diálogo com a cultura, o seu ambiente natural é a Universidade, o ecumenismo, o diálogo com outras religiões, mas também o diálogo com os descrentes ou os ateus. Uma das figuras com que dialoga é com Nietzsche, o filósofo alemão que pregou a morte de Deus.
       Por sua vez, Anselm Grün nasce num ambiente cristão. Aos 19 anos entrou para uma abadia beneditina, aperfeiçoando a arte da liderança e da gestão de pessoas, relacionando Bíblia, regra de São Bento e psicologia moderna, escrevendo livros, ministrando cursos, procurando responder a problemas concretos das pessoas. A temática da fé está bem patente nas suas palestras e nos seus livros. No diálogo com o "ateísmo", Grün tem como interlocutor Ludwig Feuerbach, filósofo alemão, conhecido pelo seu ateísmo humanista.
       Ambos os autores têm uma referência comum: a psicologia da profundidade de CG. Jung. A psicologia pode não demonstrar Deus, mas conclui que a imagem de Deus está profundamente gravada na nossa psique. É possível que um crente esteja mais próximo de um ateu do que de outro crente. Para Halík o cristianismo é a religião dos paradoxos que abarca a Sexta-feira santa e a alegria da Páscoa. O negativo é quando só se fixa na sexta-feira santa e não se abre à Páscoa.
Grün recorre a Karl Rahner, para quem Deus é sempre um mistério incompreensível. E o mistério exige uma busca permanente. O crente está a caminho. Melhor, crente e descrente convivem em cada um de nós. Também nós, cristãos, fomos ateus durante 400 anos, assim considerados por judeus e romanos.

         A obra visa dialogar com os ateus, com os descrentes, não para a fé, para para a enriquecer com as interrogações dos descrentes, no reconhecimento que também as pessoas de fé passam por momentos de crise, de dúvida, como Santa Teresinha ou Madre Teresa de Calcutá, ou São João da Cruz. Por outro lado, a certeza que há muitas formas de ateísmo, ateísmo prático, de quem não quer saber, científico, de quem quer provar a inexistência de Deus, ao ateísmo do sofrimento, de quem perdeu alguém ou o sentido para a via, de quem busca. Os dogmáticos de um lado e de outro, excluem-se, talvez combatendo o que neles próprios é medo e trevas. Quem não se interroga, crente ou descrente, perde a oportunidade de aprender e de crescer.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

E vós, quem dizeis que Eu sou?

       Jesus fez-lhes esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?». Eles responderam: «Uns dizem João Baptista; outros, Elias; e outros, um dos profetas». Jesus então perguntou-lhes: «E vós, quem dizeis que Eu sou?». Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias». Ordenou-lhes então severamente que não falassem d’Ele a ninguém. Depois, começou a ensinar-lhes que o Filho do homem tinha de sofrer muito, de ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas; de ser morto e ressuscitar três dias depois. E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas. Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O. Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos, repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás, porque não compreendes as coisas de Deus, mas só as dos homens» (Mc 8, 27-33).
        O episódio do Evangelho desta quinta-feira diz-nos que a nossa relação com Jesus Cristo não é de mero conhecimento. Não basta saber muitas coisas sobre Jesus, mas saber quem é para nós, que implicações tem na nossa vida, como pode modificar as nossas opções?
       Diz-se, por exemplo, que ninguém conhece tão bem a Deus como o Diabo e nem por isso ele é crente ou seguidor da verdade que vem de Deus. Por outras palavras, o conhecer é importante, mas quando nos envolve e compromete com o seguimento.
       Este episódio, bem nosso conhecido, mostra por um lado como a opinião pública diverge das nossas opções concretas. É certo que não faz mal saber o que nos rodeiam e até o pensam de nós, mas não deve ser isso a decidir a nossa vida, mas a nossa convicção profunda, em que devem contar sobretudo a comunhão daqueles que nos são mais próximos. Jesus mostra aos seus discípulos que o importante é a adesão pessoal...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

TOMÁŠ HALÍK - DIANTE DE TI OS MEUS CAMINHOS

TOMÁŠ HALÍK (2018). Diante de Ti os meus caminhos. Prior Velho: Paulinas Editora. 384 páginas.
       Tomáš Halík nasceu a 1 de junho de 1948, em Praga, na Checoslováquia num ambiente e numa família ateia ou a-religiosa. Com efeito, os pais, batizados, pararam na Primeira Comunhão, e seguem aquilo que autor designa "humanismo secular". Batizam o filho, mas não têm mais ligações à Igreja. Por volta dos 18 anos, Halík encontra-se com a fé e, particularmente, com o cristianismo. Uma das leituras, que fazia parte da biblioteca do seu pai, que o ajudou no encontro com a fé, foi Cherston, com as suas dúvidas e questionamentos. O autor deixa-se provocar por tais interrogações, até que se vai aproximando da fé.
       Licenciou-se em Ciências Sociais e Humanas pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Charles, em Praga e, clandestinamente, estudou teologia em Praga, tendo entretanto começado a frequentar a Igreja, a escutar os sermões, tornando-se acólito e sentindo a vocação ao sacerdócio, foi ordenado em Erfurt, em 1978. Mas terá que manter segredo deste facto.
       Durante o período comunista, considerado inimigo do regime, é impedido da docência universitária, o seu ambiente natural. Assume, então, a profissão de psicoterapeuta de toxicodependentes, situando-se na linha dos padres operários, pois não pode revelar a sua identidade eclesial. Em 1989, desafiado pelo Papa João Paulo II, tira um curso de pós-graduação na Universidade Pontifícia de Roma, Lateranense e outro na Faculdade Pontifícia de Teologia de Wroclaw, na Polónia..
       Trabalhou de perto com o futuro Presidente Václav Havel e, após 1989, tornou-se num dos seus conselheiros. Depois da queda do Comunismo, serviu como Secretário-geral da Conferência Episcopal da República Checa (1990-93).
       Hoje em dia, Halik é professor de sociologia na Universidade de Charles, em Praga (Departamento de Estudos Religiosos, Faculdade de Letras), pároco da Paróquia Académica e Presidente da Academia Cristã da República Checa. Desde 1989 tem proferido uma série de palestras em diversas universidades e comparecido em conferências internacionais na Europa, nos Estados Unidos da América, na Ásia, Austrália, Canadá e África do Sul.
       Os seus livros já foram publicados em várias línguas e diferentes países e recebeu diversos prémios literários nacionais e internacionais pelo diálogo intercultural e inter-religioso e pela defesa dos direitos humanos e pela liberdade espiritual. O seu livro “Paciência com Deus” recebeu o prémio do Melhor Livro Europeu de Teologia 2009/10 e, nos Estados Unidos da América, foi distinguido como “Livro do mês” em julho de 2010. Em 1992, o Papa João Paulo II nomeou-o conselheiro do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso e, em 2009, o Papa Bento XVI concedeu-lhe o título de Monsenhor – Prelado Honorário de Sua Santidade.
       Os leitores de Tomáš Halík já conhecem a forma entusiasta como escreve, melhor, como testemunha a fé no tempo atual, no contexto da Europa, mas muito da Checoslováquia e depois República Checa, de onde é natural, do ambiente comunista, para lá da cortina de ferro, da perseguição e silenciamento da Igreja e como a fé sobreviveu num contexto árido, ainda que o país pareça continuar a ser um dos mais "descrentes".
       Há muitas formas para se conhecer uma pessoa e o seu mundo, ou pelo menos, para fazer uma aproximação, já que a pessoa é sempre um mistério, o que diz, o que faz, além das abordagens feitas por terceiros. É sempre preferível, penso, ler o próprio, deixar que nos abra a sua casa e sobretudo a sua vida, a sua história, com os seus sonhos, projetos, desencantos e desencontros. É o que faz com esta obra, esta autobiografia. O autor percorre a história da sua vida, a família, o encontro com a fé e com a Igreja, a clandestinidade, sacerdote sem o poder revelar (quase) a ninguém. A sua mãe morreu sem o saber, muitos, tal como o seu Bispo, só o souberam muito mais tarde.
       Se viver num terreno árido no que à fé diz respeito, sob o domínio ideológico, social, cultural e político do comunismo, não foi fácil, pois havia sempre o risco de ser descoberto, ser denunciado, sujeito a interrogatório infindáveis, perseguido, encarcerado, a transição para a democracia revelou-se difícil e conturbada, até pela convivência entre os que se estiveram distantes em relação ao regime e os que colaboraram de perto, havendo sacerdotes nos dois lados da barricada. Foi necessário sarar feridas, mas também não se acomodar. O João Paulo II, o papa polaco, pela proximidade geográfica, mas sobretudo pela proximidade na luta contra o comunismo, foi uma referência, sancionando a democracia com uma visita histórica à Checoslováquia. O autor esteve com João Paulo II em diferentes ocasiões, nomeadamente para preparar a visita. João Paulo II, como vimos, desafiou-o a estudar numa das Universidades de Roma, para aprofundar os seus estudos teológicos, mas também para conhecer melhor a realidade mundial. A Universidade, com efeito, foi, tem sido, o seu mundo, como Professor. O seu sonho e o seu projeto de vida. Outro sonho foi viajar por todo o mundo. Impedido durante a regência comunista, logo após a democratização do país voltou a viajar para diversos países, entre os quais se conta Portugal.
       É um autor de pontes, acolhendo o cristianismo como paradoxo que enquadra a fé e a descrença, a Sexta-feira Santa e a Páscoa, relevando um diálogo vivo e honesto entre a fé e o ateísmo, a Igreja e a sociedade, a vivência religiosa e a cultura, apostando no ecumenismo e no diálogo inter-religioso. As dúvidas e os desencantos (desencontros) também existiram na sua caminhada de fé, mas optou por inseri-los na sua pertença à Igreja. O cristianismo abarca o dia e a noite, a luz e as trevas, a morte e a ressurreição. Os questionamentos ajudam a clarificar a fé, a aprofundar as razões da nossa esperança, fazem-nos retomar a busca por Deus, nunca nos deixando totalmente satisfeitos, mas procurando sempre, prosseguindo caminho, até à eternidade.
       Porquê esta autobiografia de Halík:
«Os meus leitores e ouvintes têm o direito de conhecer não só o contexto exterior, mas também o contexto interior da minha criação, não só o contexto da época e do meio social e cultural, mas também o contexto da minha história de vida, do meu drama da procura e do amadurecimento espiritual. Se quiserem, encontrarão aqui a chave para uma compreensão mais profunda daquilo que lhes tento comunicar nos meus livros e nas minhas palestras... 
Quem sou, na verdade? “A questão que me tornei para mim mesmo”, diz Santo Agostinho. Sim, o nosso eu, tal como o nosso Deus, deve ser para nós objeto de perguntas, dúvidas e buscas constantes. Também procuramos o nosso Eu e o nosso Deus através da narração da nossa história e de não escondermos a nossa emoção ao narrá-la. Apenas o coração que não deixou de se emocionar com o desassossego santo pode, no final, descansar no mar da paz divina»
Para ler outros trechos: