Mostrar mensagens com a etiqueta Pe. Tolentino Mendonça. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Pe. Tolentino Mendonça. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 19 de junho de 2018

Pe. TOLENTINO MENDONÇA - ELOGIO DA SEDE

TOLENTINO MENDONÇA, José (2018). Elogio da Sede. Lisboa: Quetzal. 178 páginas.
O Pe. José Tolentino Mendonça foi convidado, na última Quaresma (2018) para orientar os Exercícios Espirituais do Papa Francisco e da Cúria Romana. Este Livro recolhe as suas reflexões que tem como ponto de ancoragem o encontro de Jesus com a Samaritana. Ao abeirar-se do poço de Jacob, Jesus pede à mulher samaritana: dá-me de beber. Em Jesus, Deus faz-Se sedento da humanidade. A nossa sede de sentido tem correspondência à sede de Deus por nós. No final, é Jesus a Água viva que sacia a nossa sede, a da Samaritana, a minha sede e a tua sede.

       O Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura publicou os textos, as intervenções do Pe. Tolentino Mendonça, dirigidas ao Papa e à Cúria Romana, mas que é útil também para nós. Siga a hiperligação: 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Pe. José Tolentino Mendonça - A MÍSTICA DO INSTANTE

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA (2014). A Mística do Instante. O tempo e a promessa. Prior Velho: Paulinas Editora. 222 páginas.
       O Pe. Tolentino Mendonça é sobejamente conhecido para que tudo o que escreva tenha de imediato visibilidade, mas para chegar aqui não basta aparecer, é certamente resultado de muito trabalho e de muita alegria no trabalho realizado. O padre-poeta, ou o teólogo-poeta, apresenta textos que nos fazem sentir parte integrante, dando sentido a cada palavra, frase ou texto, buscando, fazendo-nos buscar em nós, no mundo, e nos outros, buscar Deus, a alegria, a felicidade, o amor, a amizade, a beleza.
       Nestas reflexões, o Pe. Tolentino Mendonça, além da diversidade de citações, de estórias, da experiência e dos encontros com pessoas de diferentes vertentes culturais e religiosas, a ambiência bíblica, percorrendo diversos textos mas principalmente a vida, os gestos, as palavras de Jesus e dos Seus encontros com Marta, Maria, Maria Madalena, com os Apóstolos, com a Mulher pecadora, o cego, com Zaqueu... Textos também contextualizadas nesta Teologia dos Sentidos, os Salmos, o livro dos Génesis.
       O autor dá uma atenção (poética) a cada um dos cinco sentidos: olhar/ver; tato/tocar; ouvir/escutar; olfato/odor; sabor/saborear. A espiritualidade não nos afasta de casa, do mundo, do mundo sensível. Na nossa fragilidade e limitação, na vida concreta do dia a dia, onde nos encontramos, no trabalho, no lazer, na escuta e no silêncio, na oração, na pobreza e na riqueza, em todos os lugares, em todas as dimensões da vida podemos viver, aprofundar, mergulhar na espiritualidade. Esta não se contrapõe ao corpo, ao material e sensível, mas radica-se precisamente no nosso corpo, que nos separa dos outros e do mundo, mas é o mesmo corpo que nos aproxima dos outros, de Deus e do mundo.
       A leitura desta obra, como a de outras do autor, é agradável, acessível, evolvente. Como tenho ouvido outras pessoas, os textos de Tolentino Mendonça são para ler, para reler, e ter por perto os livros, sublinhando, meditando, ruminando, sabendo que através das suas reflexões nos sentiremos mais próximos de Jesus e da Sua Boa Nova.
"A pele recobre o nosso corpo, da cabeça aos pés. Ela divide e ao mesmo tempo une o mundo exterior e interno. A pele lê a textura, a densidade, o peso e a temperatura da matéria. O sentido do tato conecta-nos com o tempo e a memória... O tato permite que não esbarremos apenas uns contra os outros, mas que existam encontros".
"O amor é o caminho que leva à esperança"
"São os nossos corpos que rezam, não apenas o pensamento. A oração habita cada um dos nossos sentidos"
"À beira do fim há sempre tanta coisa que começa"

Livros do autor aqui recomendámos:

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Editorial da Voz de Lamego | SOCIEDADE do CANSAÇO

sábado, 5 de abril de 2014

Domingo V da Quaresma - ano A - 6 de abril de 2014

       1 – «Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita em Mim, nunca morrerá. Acreditas nisto?».
       Os cristãos vivem à luz da Ressurreição de Jesus Cristo. O Domingo, o dia do Senhor, marca cadencialmente a vivência cristã. Daí a importância da Eucaristia, na qual se comemora a Páscoa de Jesus, semanal (ou diária). Anunciamos a Sua morte e a Sua ressurreição até que Ele venha, de novo, sempre, à nossa vida e seja Luz para o nosso mundo. Vivemos em constante tensão entre o JÁ e o AINDA NÃO. Jesus encarnou, revelou-nos o Seu projeto de vida de nova, resplandecente de perdão e de amor. Foi morto e ressuscitou. E por isso, tornamo-nos cristãos, enxertados no Seu Corpo que é a Igreja, da qual Ele é a cabeça e nós os membros, tornando presente a Sua vida, paixão redentora e ressurreição, através dos Sacramentos, especialmente na Eucaristia, Sacramento da Caridade. Ele será tudo em todos. Processo que se iniciou com o Batismo, fomos batizados na água e sobretudo no Espírito Santo. Com Cristo morremos para o pecado e para a morte, e ressuscitamos novas criaturas, para vivermos como filhos de Deus, mas o que havemos de ser só se manifestará plenamente na eternidade, porquanto Deus vai desvelando em nós a Sua graça, a Sua misericórdia infinita, agindo pela nossa voz e pelas nossas mãos.
       A Quaresma prepara-nos para a festa anual da Páscoa, mas vivemo-la sempre em lógica de Páscoa, da Qual recebemos a Luz e a Vida nova. É como o pai que continua a ser filho, como o professor que será sempre aluno, como o médico que é também doente, como a sede que se sacia e alimenta da água, e quanto mais se bebe mais vontade tem de se beber. Preparamo-nos para a Páscoa, mas porque JÁ aconteceu Páscoa com Cristo, e connosco através do Batismo.
       A Páscoa está em gérmen na Quaresma e em todo o tempo da nossa vida, como os frutos que surgirão pelo verão estão em gestão no tempo da primavera. Belíssima a conjugação verbal do Pe. Tolentino Mendonça: «eu primavero», «eu (re) começo a primaverar», assistindo à vitalização da natureza que mesmo parecendo adormecida vai rejuvenescendo, ressuscitando.
 
       2 – «Não são doze as horas do dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo. Mas, se andar de noite, tropeça, porque não tem luz consigo».
       A divindade de Jesus não O torna nem Invisível nem Impassível; na Sua humanidade transparece Deus; Ele faz-Se próximo, Caminho, Luz, Ressurreição. Maria, Marta e Lázaro. Amigos de Jesus. "O teu amigo está doente". Uma família, uma casa, onde Jesus encontra carinho, compreensão, onde pode descansar e alimentar-se e onde as ausências se preenchem de saudade e cuja alegria transborda no regresso.
       Maria, antecipando a morte do Seu Mestre, tinha ungido Jesus, enxugando-lhes os pés com os cabelos. Entretanto, a morte do seu irmão Lázaro. Marta e Maria acreditam em Jesus e têm a certeza que a Sua presença (física) evitaria um desenlace tão rápido do irmão. Nota-se, e sublinhe-se, que elas não perdem a confiança em Jesus e reafirmam a fé n'Ele, o Messias de Deus, e na ressurreição dos mortos. Enquadram a morte de Lázaro como um momento da vida.
       Por outro lado, Jesus não Se detém na linearidade da história e do tempo, volta atrás, pois é necessário ir novamente a Betânia, os seus amigos precisam d'Ele. Surgem algumas nuvens no horizonte. Os discípulos chamam-n'O à razão, dizendo-lhe que vai regressar onde há poucos dias esteve quase a ser apedrejado. Evidenciam-se sinais que tornam visível a vizinhança de tempos complicados. Parece que a cruz, o sofrimento, a morte, estão à espreita para a qualquer momento fazerem das suas. Jesus não Se detém. Avança. A onda é a mesma de sempre: fazer a vontade do Pai, agir para glorificação de Deus.
        3 – «Não são doze as horas do dia? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo. Mas, se andar de noite, tropeça, porque não tem luz consigo». Jesus é a nossa LUZ. Ele quer-nos do Seu lado, a caminhar juntamente com Ele, a trabalhar na Sua vinha, querendo viver em nós. Configurados na Sua morte e ressurreição, passamos da morte à vida. É tempo de vivermos nesta condição de novas criaturas: praticando as obras do dia, da luz, para não tropeçarmos.
       Diz-nos São Paulo, na segunda leitura, que "se o Espírito d’Aquele que ressuscitou Jesus de entre os mortos habita em vós, Ele, que ressuscitou Cristo Jesus de entre os mortos, também dará vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que habita em vós".
       Não nos preocupemos em demasia com o dia de amanhã, vivamos AQUI e AGORA junto daqueles e daquelas que Deus colocou junto de nós. A Ele a ameaça não O paralisa. Há tempo para tudo. O tempo dá-o Deus gratuitamente para que o usemos do mesmo jeito. Enquanto é dia, enquanto é tempo. Jesus comunica serenidade. Não Se deixa abater nem pela doença nem pela morte de Lázaro, ainda que o evangelho sublinhe que a notícia O deixou comovido. Falam-lhe da doença de Lázaro. Jesus decide voltar a Betânia. Mas permanece ainda dois dias. Faz o que tem a fazer. O fundamental é realizarmos o que estamos a fazer. Por vezes é necessário deixar tudo para ir. Por vezes é preciso deixar tudo para cumprir a missão de anunciar a Boa Notícia, fazer bem o que se está a fazer.
       “Eu confio no Senhor, a minha alma espera na sua palavra. A minha alma espera pelo Senhor mais do que as sentinelas pela aurora. Porque no Senhor está a misericórdia e com Ele abundante redenção. Ele há de libertar Israel de todas as suas faltas” (Salmo). A confiança em Deus alimenta a vida de Jesus. Que alimente também a nossa vida, especialmente nos momentos de maior dor e maior treva, nos momentos em que as nuvens passam em tons cinzentos.
       Os discípulos vão-se apercebendo, e nós com eles, que o projeto de Jesus pode trazer riscos acrescidos para quem O quiser seguir. «Vamos nós também, para morrermos com Ele». O seguimento de Jesus implicará sempre a Cruz. É inevitável. Jesus não a deseja para Si, muito menos para os Seus, para nós. É incontornável. Optar pela verdade, pela retidão, pela transparência, poderá conduzir a dissabores e violências, pois que esta opção implicará pôr a descoberto tudo o que se afasta da luz. Por vezes as trevas, a noite, o pecado têm, ou parecem ter, uma força maior, numa luta em que procuram anular a força e o brilho da Luz, que vem do amor e do bem.
 
       4 – «Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá; e todo aquele que vive e acredita em Mim, nunca morrerá. Acreditas nisto?»
       Quando chega Jesus a Betânia, Lázaro já está morto há quatro dias. Já está em decomposição.
       Assim fala o Senhor Deus: «Vou abrir os vossos túmulos e deles vos farei ressuscitar, ó meu povo, para vos reconduzir à terra de Israel. Haveis de reconhecer que Eu sou o Senhor, quando abrir os vossos túmulos e deles vos fizer ressuscitar, ó meu povo. Infundirei em vós o meu espírito e revivereis. Hei de fixar-vos na vossa terra e reconhecereis que Eu, o Senhor, digo e faço» (primeira Leitura).
       O diálogo com Marta e a ressurreição de Lázaro mostram que em Jesus se cumprem as promessas de Deus ao Seu povo. Nesta ressurreição, que é provisória, histórico-temporal, Jesus diz ao que vem: identifica-se com a nossa dor, "e Jesus chorou", e coloca-nos no coração de Deus, intercedendo por nós: «Pai, dou-Te graças por Me teres ouvido. Eu bem sei que sempre Me ouves, mas falei assim por causa da multidão que nos cerca, para acreditarem que Tu Me enviaste».
       E Deus, como Pai, não haveria de responder às súplicas do Filho a nosso favor? "O morto saiu, de mãos e pés enfaixados com ligaduras e o rosto envolvido num sudário".
       Um dia e já falta pouco, Jesus será morto. Passados três dias ressuscitará. O Seu corpo, a Sua vida por inteiro, será a mais genuína oração de intercessão por nós. Redimidos nas Suas dores para com Ele ressuscitarmos. Ele é a Ressurreição e a Vida. Procuremos, desde já, viver fazendo que em nós ressuscitam os frutos que nos colocam na vida eterna, na vida de Deus. 
 
Pe. Manuel Gonçalves

Textos para a Eucaristia (ano A):
Ez 37, 12-14; Sl 129 (130); Rom 8, 8-11; Jo 11, 1-45.
 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Pe. Tolentino Mendonça - O Hipopótamo de Deus

José TOLENTINO MENDONÇA. O Hipopótamo de Deus. Quando as perguntas que trazemos valem mais o que as respostas provisórias que encontramos. Paulinas Editora, 320 páginas.
       Mais um extraordinário livro que agrega várias reflexões de Tolentino de Mendonça, com a idiossincrasia bem portuguesa, madeirense, cristão, poeta. Em cada texto um olhar de esperança, de desassossêgo, de provocação, de desafio, numa prosa bem poética como nos tem habituado nas suas publicações e/ou intervenções. Uma linguagem simples, familiar, tocando realidades distintas, cultura, religião, fé e fado, raízes madeirenses, e raízes do poeta, família, vida e morte e sofrimento, pintura, literatura e religião, música, economia, imperfeição, Fátima, e o silêncio de Deus, Advento, Natal e Páscoa, Outono e Inverno, Verão e Primavera e as diferentes idades do ser humano, a vocação, ser padre e ser poeta, a cruz e a bondade, filosofia e filósofos...
       Desde logo a justificação do título deste conjunto de escritos, que acompanha a publicitação do livro:
"Um dos passos mais belos da Bíblia tem a ver com um hipopótamo. E não é propriamente um divertimento teológico, pois surge numa obra que explora muito seriamente a experiência do Mal. Falo do Livro de Job, claro. O que primeiro nos surge ali é o protesto de Job contra o Mal que se abate inexplicavelmente sobre a sua história, protesto que se estende até Deus. Mas depois vem o momento em que Deus se propõe interrogá-lo. E, nesse diálogo, desenvolve-se um raciocínio que não pode ser mais desconcertante. Job só consegue pensar nas suas dores e nos porquês com os quais, inutilmente, esgrime. Deus, porém, desafia-o a olhar de frente para… um hipopótamo. O método de Deus neste singular encontro com Job é abrir a medida do seu olhar, rasgá-lo imensamente a tudo o que é grande, a tudo o que não tem resposta, mostrando-lhe que se o Mal é um enigma que nos cala, o Bem é um mistério ainda maior".
       Muitas reflexões oportunas. Lido em diferentes ocasiões podem haver um texto que chame mais atenção. Curioso o título e o texto: Onde é a nossa casa?
       "Acho que foi Alberto Camus que disse que a questão mais premente do nosso tempo é cada homem descobrir onde é a sua casa... Dia a dia há uma rota que voltamos a trilhar sem especiais hesitações, entre a fadiga e a esperança, cruzando as paredes do tempo: esse é o caminho para a nossa casa. Cada um cumpre, mesmo sem especial reflexão, trajetórias e rituais que são seus: a estrada que escolhe para regressar (sempre a mesma, sempre a mudar...); a forma familiar que tem diariamente de rodar a chave; o modo (mais lento, mais repentino) de abrir para o que ali habita; aquela fração de segundo, absolutamente impressiva, antes da primeira palavra, em que a casa inteira parece que vem ao nosso encontro, ofegante ou em puro repouso...
       ... cada pessoa tem o irrecusável dever de descobrir-se, vivendo com paixão e sabedoria a construção de si, esse processo que, por definição, está em aberto e que ao longo da existência se vai efetivando. NÓS SOMOS A NOSSA CASA. E poder dizer isso, com simplicidade e verdade, equivale a perpetuar aquilo que Albert Camus também escreveu: «no meio de um inverno, finalmente aprendi que havia dentro de mim um verão invencível» (pp 141-142).

Dois lugares para visitar acerca deste livro:

(que publicou alguns dos textos agora coligidos,
por exemplo o que partilhamos aqui: "Onde é a nossa casa?".

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

LEITURAS: Gabriel Magalhães - Espelho meu

GABRIEL MAGALHÃES. Espelho meu. A leitura diária do Evangelho pode mudar a vida. Paulinas Editora. Prior Velho 2013. 128 páginas.
       Mais um título da coleção "Poéticas do viver crente", coordenada pelo Pe. Tolentino Mendonça.
É um testemunho contado na primeira pessoa. O autor partilha a sua experiência de fé, mostrando como a leitura diária do Evangelho, ainda que um pequeno trecho, pode revolucionar a vida cristã e o compromisso com os outros. Também aqui há conversão e vida nova. O Evangelho, como a participação na Missa, pode passar quase indiferente. Faz parte da tradição. Escuta-se mas sem entrar, sem fazer mossa.
       O autor, como refere, pertence à geração daqueles que  achavam que a Igreja e o cristianismo pertenciam à menoridade, como que paralisando o desenvolvimento lúcido do pensamento e da vida. Aos 24 anos, mais ou menos, revolveu ter o Novo Testamento e lê-lo a partir da sua "perspectiva arrogante", sobretudo como forma de aumentar a cultura geral, já que não passaria disso. Mas a leitura revolucionou a sua vida e a forma de ver o Evangelho, como enriquecimento, como descoberta, como encontro. "Aquele livro era a vida, e a vida era aquele livro... Os Evangelho criam com a realidade uma relação de total fraternidade: de comunhão e de identidade... Os Evangelho são capazes desta transparência por causa da presença de Jesus. Ele é o cristal de amor, através do qual a verdade passa. O que há de mais absoluto nestes textos sagrados são as palavras de Jesus".
       Leitura partilhada do Evangelho. Momentos da vida de Jesus nos quais podemos rever-nos e encontrar-nos.
       Esta é uma reflexão muito interessante. Transparece a vivência quotidiana. Não são palavras de um erudito ou do professor universitário, mas as palavras de um crente cristão que se deixou transformar pelas palavras de Jesus e nos contagia com o seu testemunho. Claramente, a fé não obscurece a vida, pelo contrário e apesar das dificuldades que a todos afetam a fé ilumina, aponta mais para além, justifica e dá sentido à existência.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Novas bem-aventuranças para a Família

       Temos de ousar interpretar o caminho da família, e da nossa família, em chave de bem-aventurança. Os anos passam, e com eles os acontecimentos, as estações diferenciadas, as múltiplas etapas que compõem a vida. Vamos sendo os mesmos e, simultaneamente, tornámo-nos outros. Gerimos um património afetivo feito de alegrias e esperanças, mas também de algumas feridas e embaraços. Pode até dar-se o caso de sentirmos que o edifício de uma inteira vida ameaça agora sucumbir. É preciso, por isso, que as bem-aventuranças venham em nosso socorro. A bem-aventurança experimenta-se quando permitimos que a força da graça reconfigure a fragilidade da vida. Ela tem a mesma natureza do amor, isto é, é dialógica, dual, tensional. É fruto da relação. É obra de uma aprendizagem espiritual permanente.

Bem-aventuradas as famílias que entendem a sua missão como uma arte de hospitalidade

       O amor é uma forma incondicional de hospitalidade. Na família experimentámos humildemente que não somos donos de nada nem de ninguém: somos testemunhas, elos de uma corrente, companheiros. Acolhemo-nos na gratuidade e só aí. Bem-aventurada a família que não tem a reivindicação de posse que, muitas vezes, é a do amor exageradamente narcísico. Os seus laços são os de uma intimidade que se pode experimentar, mas não dominar; que se pode escutar profundamente, mas sem deter. A ansiedade de dominar é um equívoco. A companhia é outra coisa: é aceitar que somos uns para os outros passagem, epifania, revelação que, na prática do amor, se aprofunda e fortalece. Aceitar, aceitar - que exercício tão difícil, mas absolutamente decisivo para a edificação da família. Aceitar a noite e o nada, o silêncio e a demora, aceitar a graça e fraqueza, a diferenciação e o desapego. E de tudo fazer caminho, na esperança, sem nunca desistir de ninguém.
       Tomemos uma imagem que nos é oferecida por um autor contemporâneo, Luciano De Crescenzo: «Somos anjos de uma asa só. Temos de permanecer abraçados para poder voar». Nesta sugestiva imagem há dois princípios que sobressaem: o princípio da incompletude, cada um de nós possui uma asa apenas; e o princípio da comunhão, que garante que abraçados podemos voar. O que é a experiência de uma família? É a maturada e criativa conjugação destes dois princípios. Com cada homem e cada mulher vem ao mundo algo de novo que nunca antes existiu, algo de inaugural, mas é na construção da reciprocidade que de forma consistente o podemos descobrir. O “eu” tem imperiosa necessidade de ser olhado amorosamente por um outro, de ser acolhido para aventurar-se no risco de ser. Para haver um “eu” tem de existir um “tu”. A vida não se resolve isoladamente. Sozinhos, ficamos inclusive aquém de nós próprios, pois cada um de nós constrói-se no encontro e na relação. Precisamos desse reconhecimento mútuo: um reconhecimento não fundado no confronto ou na competição, mas na gratuidade e no afeto.
       Do princípio da incompletude transitamos assim, muito naturalmente, para o princípio da comunhão: «abraçados podemos voar». A comunhão supõe certamente decisão, esforço e caminho. Porém, não é propriamente de uma conquista que se trata, mas do espanto inesgotável e comum, da abertura, da dádiva, da radical hospitalidade que um oferece ao outro. Isso que surge de forma tão clara nos versos seguintes de Rainer Maria Rilke: «Se me tapares os olhos: ainda poderei ver-te./ Se me tapares os ouvidos: ainda poderei ouvir-te./ E mesmo sem pés poderei ir para ti./ E mesmo sem boca poderei invocar-te». O fundamental concretiza-se numa gratuidade infatigável, numa geografia sem condições nem reservas. O amor não se explica: implica-se. Acontece sem porquês. É uma voluntária hipoteca, um sigilo de sangue, um entrelaça-mento vital. Apenas apreende o amor aquele que sabe, por experiência, o que significa amar. Os que se amam tornam-se cúmplices. E cúmplices não apenas uns dos outros. Tornam-se cúmplices de Deus.

Manfredi (Dino) Quartana, 2010

Bem-aventuradas as famílias que diariamente combatem o analfabetismo dos afetos
       No célebre filme “Cenas da vida conjugal”, de Ingmar Bergman, há uma personagem que diz a dada altura: «Vou revelar-te uma coisa talvez trivial. Em matéria de sentimentos somos analfabetos. E o mais triste é que isso não é verdade apenas para ti ou para mim, mas para quase todos. Aprendemos o que há a aprender sobre o corpo humano, sobre a agricultura no fim do mundo, sobre o pi grego ou como diabo se chama... Mas ninguém se dá conta de que deveríamos aprender primeiro alguma coisa sobre nós próprios e a nossa alma...». Bem-aventurada a família que se propõe combater diariamente este analfabetismo. Os membros de uma família têm de tornar-se naturalmente (e ainda mais, sobrenaturalmente) grandes artesãos do afeto, num amor que nos aceita por inteiro, que abraça o que somos e o que não somos; o que nós fomos e o que nos tornámos. Num amor que ama as nossas possibilidades infinitas e indefinidas; os nossos desabrochares esperançosos e as nossas quedas frustrantes; as nossas liberdades insensatas e a nossa timidez hesitante. Num amor que é, por si, uma arte da confiança que continuamente relança as histórias.
Arturo Martini, 1920

Bem-aventuradas as famílias que compreendem a importância do inútil

       Porque é o inútil tão importante? Vivemos num mundo em que tudoprecisa de ser caucionado por uma qualquer utilidade e isso desvia-nos de um viver gratuito, disponível e autêntico. Só a inutilidade nos dá acesso à polifonia da vida, na sua variedade, nos seus contrastes, na sua realidade densa, na sua surpresa e na sua inteireza. “Foi o tempo que perdeste com a tua rosa, que tornou a tua rosa tão importante para ti”- explicava Saint-Exupéry. Quer dizer: temos de aceitar “perder” para que a relação valha. E perder é mesmo perder: não só tempo, mas também representações prévias, aspirações, projetos, utilidade, vida. O objetivo é poder alcançar aquela plena liberdade da definição que Montaigne propõe: «Se me intimam a dizer porque o amava, sinto que só o posso exprimir respon-dendo: “Porque era ele. Porque era eu”». As relações familiares não podem reduzir-se à gestão do útil, à gestão do que se vê de fora, dominadas por um pragmatismo epidérmico. É preciso perceber como a inutilidade abre clareiras favoráveis à revelação, à palavra, ao verdadeiro conhecimento, ao encontro.
 
Felice Carena, 1929

Bem-aventuradas as famílias que cultivam uma arte da lentidão
       Talvez precisemos voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados. À conta disso, os ritmos de atividade tornam-se impiedosamente inaturais. Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. E mesmo estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento. Passamos a viver num “open space”, sem paredes nem margens, sem dias diferentes dos outros, sem rituais reconfiguradores, num contínuo obsidiante, controlado ao minuto. Damos por nós ofegantes, fazendo por fazer, atropelados por agendas e jornadas sucessivas em que nos fazem sentir que já amanhecemos atrasados. Deveríamos, contudo, refletir sobre o que perdemos, sobre o que vai ficando para trás, submerso ou em surdina, sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione deste modo. Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver.
       Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno. Lembro-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a aceleração, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.
 
Mario Schifano, 1978-79

Bem-aventuradas as famílias que não deitam fora a caixa dos brinquedos

       Acontece, por vezes, que, à medida que os filhos crescem, desaparece das famílias a caixa dos brinquedos. As casas tornam-se (um pouco) mais ordenadas, aderem a uma rotina perfeita que durante anos não tiveram, numa respeitabilidade estável, segura de si. Principia-se então uma estação de tréguas, sem as surpresas que desesperavam: a chuva de peças órfãs dos seus jogos, os bonecos a ressurgirem onde absolutamente não deviam, o inofensivo módulo encontrado pelo canalizador como única explicação para a monumental avaria. Primeiro respira-se de alívio, portanto. Mas depois, estranhamente, nem tanto. Pois há uma hora em que se percebe a falta que nos faz a caixa dos brinquedos.

       É nessa caixa que se encontram os símbolos, as brincadeiras, os risos distendidos, as férias em família, os aniversários, os jogos intermináveis à volta da mesa com velhos e novos contagiados pelo mesmo entusiasmo, a contemplação carinhosa sem nenhuma finalidade. É nessa caixa que estão as histórias disparatadas e sábias que contamos pela vida fora, aí se conservam os odores, os registos, as palavras de uma canção que cantámos muitas vezes e depois esquecemos, a primeira bicicleta, os livros que nos ofereceram quando ainda não sabíamos ler, os cromos, o silêncio da intimidade, a viagem à aldeia, as conversas à janela voltados para a noite. Nessa caixa está a arte de fazer tempo, de perdê-lo para que se torne mais nosso, permitindo a imaginação, o sentido lúdico, a alegria. A caixa dos brinquedos não serve para nada, e por isso dá-
-nos razões para viver.

       Não nos damos conta do empobrecimento que representa, mas muitos dos conflitos dolorosos que transportamos mais tarde, vida fora, têm aí a sua origem. Lembro-me de uma história que uma querida amiga me contou. O seu pai era juiz em Itália. Um homem severo e absorto, sem tempo a desperdiçar, sem grande vontade de levantar os olhos do seu importante mundo, ainda menos para escutar as minu-dências por que passavam os miúdos. Ela cresceu, formou--se e, durante os primeiros anos, chegou a trabalhar como secretária do pai. Essa proximidade em nada alterou o quadro que conhecia: continuavam dois estranhos, com uma relação puramente formal, e um mundo submerso de coisas por dizer. Ela conta que um dia fizeram uma viagem de trabalho a uma das ilhas gregas. Foram de barco, e podemos imaginar os longos tempos de travessia. De madrugada, porém, sobressaltada, ela percebe que o pai está no seu camarote, a acordá-la. Fixa-o sem perceber bem o que se está a passar. E ele diz-lhe: «Vem ver o sol que está a nascer. É enorme, enorme. Vem depressa. Vais gostar. Vem». Muitos anos depois, o pai já tinha morrido, esta história tinha-se passado há décadas, a minha amiga confiava--me: «Se ele tivesse feito pelo menos mais uma coisa destas, pelo menos mais uma, eu ter-lhe-ia perdoado tudo».
Pablo Picasso, 1947

Bem-aventuradas as famílias que arriscam fazer um bom uso das crises

       Atravessar etapas de crise não é necessariamente mau: permite-nos um olhar a que ainda não havíamos chegado, permite-nos escutar não apenas a vida aparente, mas a insatisfação, a sede de verdade e de sentido, e passar a assumir uma condição mais ativa e assumida. Mudar não significa tornar-se outro, mas fazer uma experiência mais autêntica de si. No fundo, só mudamos quando nos encontramos. Não nos escutarmos, até ao fim, isso sim é desperdiçar uma preciosa ocasião para aceder àquela profundidade que pode devolver sentido à existência. Talvez precisemos descobrir que, no decurso do nosso caminho, os grandes ciclos de interrogação, a intensificação da procura, os tempos de impasse, as experiências de crise podem representar verdadeiras oportunidades. Quanto mais conscientes dos nossos entraves, limites e contradições, mas também das nossas forças e capacidades, tanto mais podemos investir criativamente no sentido da nossa identidade. Isso implica uma mudança de ponto de vista sobre nós próprios e o mundo, e advém daí naturalmente uma instabilidade face a modelos que se tinham por adquiridos. Os partos indolores são uma mistificação. Quem tem de nascer, prepare-se para esbracejar.

       Mas há um momento em que aprendemos que vale mais prestar atenção àquilo que em nós está a germinar, num lento e invisível (e inaudível) processo de gestação, do que àquilo que perdemos.

       Em 1999, uma tempestade varreu drasticamente a Europa. No rastro de desolação, estima-se que terão ficado tombadas cerca de trezentos milhões de árvores. Em França, nas semanas que se seguiram, os gabinetes governamentais elaboraram aprofundados programas de reflorestação, procurando ao mesmo tempo tirar partido do acidente, pois a floresta seria por eles reconstruída com uma racionalidade mais adequada. Mas quando passaram ao terreno, os engenheiros florestais aperceberam-se de que a floresta tinha começado a regeneração mais rapidamente do que supunham. E inclusive, contrariando os planos técnicos, a floresta havia encontrado configurações novas, muito mais vantajosas do que aquelas oficiadas pela abstrata geometria dos gabinetes.
Georges Rouault, 1948
Bem-aventuradas as famílias que dizem de si mesmas: “somos um laboratório para a alegria”

       Tolstoi começa o seu romance “Anna Karenina” dizendo que «Todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira». A felicidade, porém, é tão singular como o sofrimento. Se o modo de chorar é pessoalíssimo, também o é o modo de rir. Diz-nos Jesus no Evangelho de S. João: «Eu quero que a alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa» (Jo 15,11). E: «Ninguém vos poderá roubar a vossa alegria» (Jo 16,22). Há, portanto, uma alegria que nada nem ninguém nos pode tirar, e que constitui o horizonte da nossa vida. É fundamental que a família coloque os olhos no horizonte e sinta que é para a alegria que está a ser chamada. É para a roda dos eleitos. E, por isso, desloca infatigavelmente o seu coração do peso da sombra para a leveza da luz. Na verdade, somos atravessados, somos conduzidos, somos levados pela mão de uma promessa, e essa promessa é a alegria. A alegria é sempre um dom. A alegria nasce quando eu aceito construir a minha vida numa cultura de hospitalidade. Se insonorizo o meu espaço vital, a alegria não me visita.

       Em vez de crescermos na severidade, na intransigência, na indiferença, no sarcasmo, na maledicência, no lamento, caminhemos esperançosamente no sentido contrário. Cresçamos na simplicidade, na gratidão, no despojamento e na confiança. A alegria tem a ver com uma essencialidade que só na pobreza espiritual se pode acolher. Bem-aventuradas as famílias que dizem de si mesmas: «somos um laboratório para a alegria»; «somos uma escola do sorriso»; «somos um ateliê para a esperança»; «somos uma fábrica para o abraço e para a dança».
Armando Spadini, 1918
Bem-aventuradas as famílias que vivem no aberto do mundo e de Deus
       O tempo de Deus é um tempo aberto. E o aberto o que é? É aceitar que o que vemos neste momento é apenas uma etapa e uma estação. Amar é também ouvir aquilo que é novo a cada momento, acompanhar o fluxo do mistério do tempo. Não tenhamos dúvidas: estamos e continuaremos a estar rodeados de perguntas. Nós próprios somos uma pergunta. Aquilo que o teólogo S. Justino expressava assim, há tantos séculos: «Magna quaestio factus sum me». «Tornei-me para mim mesmo uma grande pergunta!» A família é hoje também uma pergunta. Precisaremos talvez trocar o nosso conhecimento muito assertivo, dispondo-nos a aprender, ouvindo, tentando estabelecer o pacto, a aliança, mas nunca a partir de teorias fechadas. Temos de viver o aberto, a transformação e a abertura permanente. Só a reversibilidade nos dá a experiência profunda da salvação. Bem-aventuradas as famílias que sabem que o tempo é uma arte, uma recriação pascal.

       Ser é habitar, em criativa continuação, o seu próprio inacabado e o do mundo. O inacabado liga-se, é verdade, com o vocabulário da vulnerabilidade, mas também (e eu diria, sobretudo) com a experiência de reversibilidade e de reciprocidade. A vida de cada um de nós não se basta a si mesma: precisaremos sempre do olhar do outro. A vida só por intermitências se resolve individualmente, pois o seu sentido só se alcança na partilha e no dom.

Este texto integra o número 20 do "Observatório da Cultura" (novembro 2013).

José Tolentino Mendonça
Pontifícia Universidade Católica-Minas, Belo Horizonte, Brasil, 20.7.2013

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Pe. Tolentino Mendonça - a Alegria dos outros

As pessoas felizes são aquelas capazes de dedicar-se a alegrias que não lhes pertencem. De conspirar discretamente para que elas aconteçam. De favorecê-las de muitas maneiras.
       Acho que me encontrei uma única vez com Miguel Esteves Cardoso. Foi, inclusive, um desses encontros de acaso: eu i-a almoçar com um amigo e encontrei-o num restaurante, pronto para fazer o mesmo com um amigo seu, que era meu também. Rapidamente, as mesas para dois transformaram-se numa única mesa maior. E assim ficámos, fazendo aquilo que à mesa de faz: alimentando-nos da comida, mas igualmente (ou sobretudo) da presença, esperada e inesperada, uns dos outros. O Miguel Esteves Cardoso estava nessa altura com um projeto de um livro sobre um mestre de cozinha japonês, que fez questão de tratar, ele próprio, de tudo aquilo que nos foi servido. Recordo-me que, no breve tempo que durou a refeição, aprendi imensas coisas sobre aquele mundo. Aprendi, por exemplo, que o prato mais exigente da cozinha japonesa, aquele que constitui a prova suprema para qualquer chefe, é... o arroz. Não se deve estranhar. Nada nos pede mais trabalho e arte do que a simplicidade. E foi dessa maneira que, conversa vai, conversa vem, o Esteves Cardoso disse uma coisa que não mais deixou de acompanhar-me. Não sei se seriam exatamente estas as suas palavras, mas era este o sentido: não há nada mais miserável em nós do que não sabermos alegrar-nos com a alegria dos outros. Compreender a dor dos outros e sair-lhes ao encontro é uma regra indiscutível. Mesmo quando pouco podemos fazer paca alterar as circunstâncias dolorosas que vivem, a presença é uma confirmação preciosa e necessária daquilo que nenhum sofrimento poderá abalar a certeza de que, aconteça o que acontecer, não estão sós. E todos experimentamos como isso se torna determinante em certas horas. Porem, acompanhar os outros na sua alegria não é tarefa de menor préstimo. Não é certamente por acaso que, em algumas parábolas de Jesus, o pedido a que a alegria seja acompanhada se confunda com as possibilidades de a própria alegria tomar-se o que ela é: júbilo, canto, riso, estremecimento feliz que se expande. “AIegrai-vos comigo, porque achei a minha ovelha perdida" (Lc. 15.6); “Alegrai-vos comigo, porque encontrei a moeda perdida" (Lc. 15.9). E, na mesma linha o pai do filho pródigo explicando ao filho mais velho, perplexo com o perdão concedido àquele seu irmão desencaminhado: "Tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e encontrou-se" (Lc 15,32). Uma alegria que não se possa partilhar parece uma alegria que a meio caminho se rompe, que não chega sequer a consumar-se.
       E preciso, contudo, que aprendamos a disponibilidade para nos alegrarmos com o bem que acontece aos outros, e a fazê-lo gratuitamente, sem pensar no que possamos receber em troca. Implica vencermos o tique contínuo de nos compararmos (e, quase sempre, em plano de superioridade); contrariarmos pulsões mesquinhas, mesmo se travestidas de grandes sentimentos ou razoes; suspendermos juízos cínicos sobre méritos e deméritos; distanciarmo-nos dessa forma destrutiva de admiração que a inveja é. Bernanos escreveu que "saber encontrar a alegria na alegria dos outros é o segredo da felicidade". As pessoas felizes são aquelas capazes de dedicar-se a alegrias que não lhes pertencem. De conspirar discretamente para que elas aconteçam De favorecê-las de muitas maneiras. E, por fim, de apagar-se para dar-lhes todo o lugar.
       Talvez, para isso, tenhamos de reinventar a gramática humana que utilizamos e, com ela, reinventar itinerários, atitudes e até formas verbais. Como aquela surpreendente, que aparece ligada à alegria num poema de Fernando Pessoa: "Passou a nuvem: o sol volta/ A alegria girassolou."
 
Pe. Tolentino Mendonça, in iMissio: AQUI.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

LEITURAS: Antonio Spadaro - Ciberteologia

ANTONIO SPADARO. Ciberteologia. Pensar o cristianismo na era da internet. Paulinas Editora, Prior Velho 2013, 192 páginas.
       Uma sugestão de leitura que antes nos foi sugerida. Quando sugerimos uma leitura, fazemo-la por ser envolvente, pelo conteúdo, pela forma, pela beleza, pela importância deste ou daquele texto. Na última Assembleia do Clero, da Diocese de Lamego, no dia 5 de outubro de 2013, alguém, em plenário, recomendou esta leitura. Seguindo a recomendação, logo procurámos o livro, e depois da nossa leitura, recomendamo-lo nós também.

       António Spadaro, diretor da Revista Cevittá Cattolica, entrevistou há pouco tempo o Papa Francisco, o que o tornou bem mais conhecido. A entrevista, de que já demos nota, é a primeira grande entrevista do Papa Francisco, concedida às revistas da Companhia de Jesus, a que também o papa pertencia. Spadaro é consultor nos Pontifícios da Cultura e das Comunicações Sociais. É docente na Universidade Gregoriana.
       Ao longo dos tempos têm-se dedicado a refletir sobre os meios de comunicação social, nomeadamente no contexto da REDE. O livro Ciberteologia é resultado das reflexões colocadas no blogue com o mesmo nome, com conferências dadas, com investigação e estudo.
       É uma obra de pensamento amadurecido. Apresenta a Internet como um ambiente humano. Não apenas um instrumento, ou um meio, para chegar mais longe, mas uma realidade que facilmente passa do virtual ao encontro.
       São muitos os termos presentes nestes meios que são transferidos da teologia: justificar, apagar, partilhar, grupos, busca, pesquisa, caminho, links, salvar, converter, navegar, home (casa, o ambiente da família). Linguagem da teologia na internet, mas também termos que se tornam mais compreensíveis quando voltam para a teologia.
        Antonio Spadaro traça a evolução técnica da rede, a grande revolução, a necessidade de refletir sobre este ambiente humano. As pessoas estão interligadas, conectadas, de certa maneira, em comunhão. Quando se fala de internet fala-se de vida, e não de fios, cabos, modens, gadgets. É uma experiência de vida. Um EU que se encontra com um TU. A internet é uma ambiente de evangelização.
       Sublinha-se no livro, e na entrevista que se segue, que a Internet não substitui o encontro pessoal, como não substitui a liturgia da Igreja, a inserção na comunidade crente. Ambiente digital que ajuda a conhecer o mundo, aproxima as pessoas,...
       A era da Rede também altera a comunicação, influencia a evangelização, a educação, a relação com a Igreja e com as instituições tradicionais.
       Nos dias 3 e 4 de outubro de 2013, decorreram, em Fátima, as Jornadas de Comunicação Social. Um dos convidados foi precisamente Antonio Spadaro. Segue-se a conferência que ajuda a perceber o que significa ciberteologia, motivando a leitura deste livro, ou a leitura deste livro poderá despertar um maior interesse para escutar esta exposição:



Veja também a pré-publicação de Cibertelogia na página do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura: AQUI.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Tolentino Mendonça - noção de resto - resta sempre Deus

       Relativizada a cerca confessional, a religião torna-se um apetecível baldio para a produção científica e cultural mais diversa, num fenómeno aparentemente inesgotável de mediatização, onde todos têm alguma coisa a dizer: sociólogos, antropólogos, pensadores de teoria política, novelistas... Ao mesmo tempo, vão ganhando plausibilidade, aplicadas ao religioso, expressões que aos ouvidos de outros séculos pareceriam de todo insólitas, como «restrição de campo», «reconfiguração», «deslocação para a esfera intima», «mudança de papel social», «religião implícita», expressões que muito dizem do processo epocal em que estamos.
       Este é um processo que se percebe ser de longa duração e que não é apenas externo em relação às religiões. Também no interior destas se tem sentido equivalente reverberação. Para expressar o estremecimento interno ao religioso, Danièle Hervieu-Léger recorre à expressão «religião em movimento», entendendo-a como o complexo e diversificado processo de autorrecomposição em curso (particularmente no universo religioso cristão ocidental).
       Neste clima dominado por uma certa hesitação, há mesmo espaço para posições mais exasperadas, como as que defendem: «Será necessário um dia nos desembaraçarmos deste termo falacioso: a religião» (Régis Debray). Numa cena hilariante de um filme de Pedro Almodóvar, uma escritora de thrillers, a passar por uma turbulência criativa, diz: «Não é fácil desembaraçar-se de um cadáver.» Ora, no debate entre religião e modernidade, precisamente este embaraço ou, para dizer com maior rigor, esta impossibilidade radical de um polo excluir o outro tem sido um dos traços mais persistentes e porventura também mais portadores de futuro.
       Marcel Gauchet, por exemplo, apropria-se do sintagma «desencantamento do mundo» para uma marcante viagem pela paisagem da modernidade. A proposta de Gauchet não é anunciar o fim da religião, mas descrever sim as transformações que a época contemporânea regista. E fá-lo através de uma inusual categoria, que a meu ver ainda não tem colhido a atenção critica que merece: a noção de resto. Explicitando a dialética entre o declínio da religião como função social e a sua persistência no plano pessoal, o autor fala de «um resto, talvez inalienável», que pode detetar-se em determinadas vivências fundamentais. Veja-se, a título de ilustração, tanto a experiência estética como a experiência dilemática que somos para nós próprios. Para Marcel Gauchet, a nossa capacidade de emoção perante o desabalado espetáculo das coisas provém, de um modo vital e recôndito, da inscrição no ser, e através dessa inscrição nós comunicamos com isso que foi por milénios o sentido do sagrado. Isto que, sem dúvida, pode desencadear um interminável debate, é por ele sintetizado de um modo liminar: «A arte, no sentido específico em que nós modernos a compreendemos, é a continuação do sagrado por outros meios.»
       Por outro lado, se alguma coisa resume a consciência que vamos ganhando de nós mesmos é que constituímos um enigmático objeto de pensamento. Somos uma pergunta que se sobrepõe às respostas que existencialmente (e historicamente) vamos encontrando. As nossas sociedades tomaram-se psiquicamente extenuantes para os indivíduos e parece faltar um suporte para as difíceis questões que sopram com maior frequência: «Porquê a mim?»; «Que fazer da minha vida quando estou sozinho a decidir?»; «Para que serve ter vivido se devemos desaparecer sem deixar traço?» Um resto de religião é assim o que se observa nesta dor humana, nunca completamente resolvida. Por isso, mesmo quando parece que de Deus nada resta, persiste e insinua-se sempre mais do que julgamos.

José Tolentino Mendonça, in Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura.

domingo, 6 de outubro de 2013

António Spadaro - Ciberteologia

       António Spadaro, estudioso jesuíta que há poucos dias entrevistou o Papa Francisco, em entrevista memorável. Veja-se aqui a sua intervenção em Fátima, nas Jornadas Nacionais da Comunicação Social:


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Pe. Tolentino Mendonça: Que fizemos nós da Alegria?

       Mas o que é a alegria? A alegria é expansão pessoalíssima e profunda. Não há duas alegrias iguais, como não há duas lágrimas ou dois prantos iguais. A alegria é uma gramática singular. Por um lado, tem uma expressão física, mas, por outro, conserva uma natureza evidentemente espiritual. Não se reduz a uma forma de bem-estar ou a um conforto emocional, embora se possa traduzir também dessas maneiras. A alegria é uma revelação da vida profunda. É abrir uma porta, um caminho, um corredor para a passagem do Espírito.
       No espaço teológico e eclesial, infelizmente, a alegria tornou-se um motivo tratado com alguma parcimónia. Falamos pouco do Evangelho da Alegria e, entre tudo aquilo que assumimos como dever, como tarefa, raramente ele está. O dever da alegria, estarmos quotidianamente hipotecados à alegria, enviados em nome da alegria, não nos é tantas vezes recordado quanto devia. As nossas liturgias, pregações, catequeses e pastorais abordam a alegria quase com pudor.
       Isto para dizer que a alegria tornou-se um tópico mais ou menos marginal, uma espécie de subtema e, por vezes, até uma espécie de interdito. Nietzsche dizia que o cristianismo seria mais credível se os cristãos parecessem alegres. Que fizemos nós do Evangelho da Alegria?
       Definimo-nos culturalmente como homo faber, homem artesão, fabricante, aquele que se realiza na própria ação. E distanciamos da nossa própria vida o horizonte do homo festivus, isto é, o que é capaz de celebrar, aquele que conduz a criação à sua plenitude.
       A alegria nasce do acolhimento. Nasce quando aceitamos construir a vida numa cultura de hospitalidade. Há um filme de Ingmar Bergman em que uma personagem é uma rapariga anoréxica - e sabemos como a anorexia é uma forma de desistir da própria vida, de desinvestir afetivamente. A rapariga vai falar com um médico e ele diz-lhe isto, que também vale para todos nós: “Olha há só um remédio para ti, só vejo um caminho: em cada dia deixa-te tocar por alguém ou por alguma coisa”. A alegria é esta hospitalidade.
 
Pe. Tolentino Mendonça, Editorial da Agência Ecclesia.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Por vezes luto com Deus, por vezes danço (III)

       Quando se dança, diz-se a verdade. Quando se ora também se diz a verdade. É impossível haver fingimento na oração.
       O verdadeiro encontro com Deus, se por vezes é tão difícil, é porque nos pede essa nudez. Pede-nos a aceitação da pobreza, que com frequência é o mais difícil de alcançar; a aceitação do nosso limite, do que não podemos, do que não sabemos, do que não conseguimos, do que não fomos, do que não quisemos, e que, contudo, nos foi dado e temos de viver.
       Na terceira e última parte da conferência "Por vezes luto com Deus, por vezes danço", o P. José Tolentino Mendonça cruza os caminhos da dança com os da espiritualidade cristã:

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Por vezes luto com Deus, por vezes danço (II)

       O Batismo não é a entrada num estado de isenção, de neutralidade. O viver crente está a fazer-se, é sempre inacabado, é sempre o lugar da turbulência, da agitação.
       Lutando com Deus, também dançamos com ele. A fé uma dança, e Abraão mostra-nos isso. Quando já não tinha grandes expectativas acerca da vida, Deus convoca-o para uma forma de nomadismo singular que é a fé. Abraão vai viver na viagem, e essa é a dimensão da própria fé.
       Com o movimento da fé, sabemos de onde partimos mas, ao contrário dos caminhos que habitualmente percorremos, tantas vezes estreitos e utilitários, desconhecemos para onde vamos. Com a fé, viajamos sem mapas para lá de tudo o que se pode prever.
       Segunda parte da conferência "Por vezes luto com Deus, por vezes danço", pelo P. José Tolentino Mendonça:

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Por vezes luto com Deus, por vezes danço (I)

       O silêncio e a ausência são sinais que, misteriosamente, insinuam uma presença.
       A aceitação do silêncio é um trabalho preparatório para a escuta. A disciplina de fazer silêncio no coração, calar os pensamentos e as imagens, as maledicências e superficialidades.
       O silêncio ainda não é Deus, mas é também a possibilidade de abrir a vida ao Outro, deixando que a possibilidade do Outro nos habite.
       A fé vive como hipótese, como lugar contínuo de expectativa, vive de um combate: nunca nada está acabado, nunca nada é completamente conhecido.
       Primeira parte da conferência "Por vezes luto com Deus, por vezes danço", pelo P. José Tolentino Mendonça:



terça-feira, 23 de julho de 2013

7 bem-aventuranças para a Família

       O padre José Tolentino Mendonça propôs este sábado em Belo Horizonte, no Brasil, uma reflexão sobre sete bem-aventuranças para a família cristã, durante a conferência "Família, Amizade, Afetividade e Sexualidade: desafios para um amor integral".
       A palestra abriu o terceiro dia do Congresso Mundial das Universidades Católicas (CMUC), realizada entre quinta-feira e domingo na Pontifícia Universidade Católica - Minas.
       Na primeira das duas conferências que apresentou no encontro, o diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura e vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, propôs sete bem-aventuranças para a família cristã.

Bem-aventurada a família hospitaleira.
       Não somos nada e de ninguém. Precisamos aceitar as graças e fraquezas de todos os integrantes da família. É o princípio da incompletude e da comunhão, ou seja, cada um completa-se com as suas qualidades e defeitos. Sozinhos, ficamos aquém de nós mesmos.

Bem-aventurada a família que combate o analfabetismo do afeto.
       Os membros da família precisam de acolher as pessoas como elas são, o que fizeram e o que serão. É preciso abraçar as hesitações e ter afeto com todos.

Bem-aventurada a família que dá importância ao inútil.
       Vivemos num mundo em que tudo precisa de motivo, função e posição. Precisamos aceitar a perder para dar.
 
Bem-aventurada a família que não deita fora a "Caixa de Brinquedos".
       A "Caixa de Brinquedos" da família é o tempo para conversar, lembrar acontecimentos do dia a dia, realizar atividades lúdicas, interagir idosos com crianças, resgatar momentos de alegria, como receitas de avós e o Natal. Muitas famílias deixaram de abrir as "Caixas de Brinquedo", tendo perdido a oportunidade de construir um amor integral.
 
Bem-aventurada a família que usa bem a crise.
       «Somente por meio da crise é que podemos ver a verdade e o sentido da vida. A experiência da crise é importante para evitar o pior, e viver a vida com profundidade e não superficialmente. Crise é libertação e independência.»

Bem-aventurada a família que acredita ser um laboratório da alegria.
       A felicidade é singular como rir e chorar. A família que é laboratório da alegria é fábrica de abraço e doação.

Bem-aventurada a família que vive aberta ao mundo e a Deus.
       Vivemos rodeados de perguntas, e a família de hoje é uma delas. A família precisa de estar aberta para trocar conhecimentos para alcançar o amor.

        Para o consultor do Pontifício Conselho para a Cultura, a família não pode ficar desagregada: «É o lugar onde aprendemos a amar, compartilhar, resolver conflitos e dar o valor ao afeto. A família precisa ser uma escola da vida».

Pontifícia Universidade Católica - Minas, 22.07.13,

quinta-feira, 6 de junho de 2013

A nossa humanidade é narração de Deus

"A nossa humanidade é narração de Deus: o nosso rosto conta como é o Seu; as nossas mãos dão a ver as Suas; Ele fala pelas nossas palavras e respira melhor à medida que os nossos gestos se tornam amplos; os nossos olhos testemunham como os d'Ele cintilam; os nossos silêncios e o nosso riso são mapas muito aproximados para quem quiser chegar a Ele. A nossa fragilidade dá a ver a força da Sua compaixão. As ausências em que nos perdemos permitem que se revele ainda mais a Sua amizade. Como qualquer mãe ou pai, Ele não deseja que o filho seja mais alto ou mais baixo, mais louro ou mais tisnado. Ele só quer que os seus filhos sejam o que são de maneira plena. Nada há em nós que lhe seja desconhecido ou indiferente: interrupções e recomeços, frustrações e desafios, turbulências ou tempos de paz. Ele chega a toda a hora, sem nunca verdadeiramente partir. Ele entra quando lhe abrimos a porta, mas está sempre presente. Ele está aqui e além. Está abraçado a nós e à nossa espera para o abraço sem fim"

in TOLENTINO MENDONÇA. Nenhum Caminho será Longo.

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Abrir, abrir, abrir

       "Construir mais praças do que paredes; mais mesas do que despensas; abrir, abrir, abrir. Pode até acontecer que este gesto de abertura seja denunciado como traição dos interesses do grupo. Mas, para sermos fiéis ao núcleo mais fundo da autenticidade, temo-nos de interrogar constantemente: «o que é trair?» Não esqueçamos o que ensina Kierkegaad: a única traição é não ter querido nada, profunda e autenticamente".

in TOLENTINO MENDONÇA. Nenhum Caminho será Longo.

Pe. Tolentino Mendonça - A arte da lentidão

       Talvez precisemos voltar a essa arte tão humana que é a lentidão. Os nossos estilos de vida parecem irremediavelmente contaminados por uma pressão que não dominamos; não há tempo a perder; queremos alcançar as metas o mais rapidamente que formos capazes; os processos desgastam-nos, as perguntas atrasam-nos, os sentimentos são um puro desperdício: dizem-nos que temos de valorizar resultados, apenas resultados.
       À conta disso, os ritmos de atividade tornam-se impiedosamente inaturais. Cada projeto que nos propõem é sempre mais absorvente e tem a ambição de sobrepor-se a tudo. Os horários avançam impondo um recuo da esfera privada. E mesmo estando aí é necessário permanecer contactável e disponível a qualquer momento. Passamos a viver num open space sem paredes nem margens, sem dias diferentes dos outros, sem rituais reconfiguradores, num contínuo obsidiante, controlado ao minuto. Damos por nós ofegantes, fazendo por fazer, atropelados por agendas e jornadas sucessivas em que nos fazem sentir que já amanhecemos atrasados.
       Deveríamos, contudo, refletir sobre o que perdemos, sobre o que vai ficando para trás, submerso ou em surdina, sobre o que deixamos de saber quando permitimos que a aceleração nos condicione deste modo. Com razão, num magnífico texto intitulado “A lentidão”, Milan Kundera escreve: «Quando as coisas acontecem depressa demais, ninguém pode ter certeza de nada, de coisa nenhuma, nem de si mesmo.» E explica, em seguida, que o grau de lentidão é diretamente proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é diretamente proporcional à do esquecimento. Quer dizer: até a impressão de domínio das várias frentes, até esta empolgante sensação de omnipotência que a pressa nos dá é fictícia. A pressa condena-nos ao esquecimento.
       Passamos pelas coisas sem as habitar, falamos com os outros sem os ouvir, juntamos informação que nunca chegamos a aprofundar. Tudo transita num galope ruidoso, veemente e efémero. Na verdade, a velocidade com que vivemos impede-nos de viver. Uma alternativa será resgatar a nossa relação com o tempo. Por tentativas, por pequenos passos. Ora isso não acontece sem um abrandamento interno. Precisamente porque a pressão de decidir é enorme, necessitamos de uma lentidão que nos proteja das precipitações mecânicas, dos gestos cegamente compulsivos, das palavras repetidas e banais. Precisamente porque nos temos de desdobrar e multiplicar, necessitamos de reaprender o aqui e o agora da presença, de reaprender o inteiro, o intacto, o concentrado, o atento e o uno.
       Lembro-me de uma história engraçada que ouvi contar à pintora Lourdes de Castro. Quando em certos dias o telefone tocava repetidamente, e os prazos apertavam e tudo, de repente, pedia uma velocidade maior do que aquela que é sensato dar, ela e o Manuel Zimbro, seu marido, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pelo espaço da casa. E divergindo dessa forma com a aceleração, riam-se, ganhavam tempo e distanciamento crítico, buscavam outros modos, voltavam a sentir-se próximos, refaziam-se.
       Mesmo se a lentidão perdeu o estatuto nas nossas sociedades modernas e ocidentais, ela continua a ser um antídoto contra a rasura normalizadora. A lentidão ensaia uma fuga ao quadriculado; ousa transcender o meramente funcional e utilitário; escolhe mais vezes conviver com a vida silenciosa; anota os pequenos tráficos de sentido, as trocas de sabor e as suas fascinantes minúcias, o manuseamento diversificado e tão íntimo que pode ter luz.

José Tolentino Mendonça, in Secretariado Nacional da Cultura.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Judas, o predileto discípulo de Jesus

       "... nenhuma perturbação provoca em nós tanto impacto, nem golpe nenhum fere como aqueles que nos chegam de um irmão, de um amigo".

       "... só quem nos ama pronuncia corretamente o nosso nome, sabe o seu significado até ao fim, está apto a nomear o nosso mundo na sua complexa e enigmática inteireza. Só quem nos ama é capaz de ver-nos como realmente somos: esta mistura apaixonada e contraditória, esta aventura conseguida e, ainda assim, inacabada, esta pulsão de nervos e de alma, de opacidade e vislumbre. escreveu com razão o poeta: «Quem não me deu Amor, não me deu nada». Só quem nos ama deposita no fundo da terra oscilante do nosso coração uma semente de bondade, um fragmento de amanhã. E, contudo, tal como a noite, a certa hora, espera inevitável pelo dia, ou como tempestade brota, sem sabermos explicar como, do interior da própria bonança, assim é na amizade. Pode existir um momento, uma hora da vida, uma situação em que, com menor ou maior gravidade, sintamos, ao arrepio de tudo, o contacto com um gesto, com uma palavra que a atraiçoa...
       ... A traição estilhaça o nosso quadro interno, precipita-nos na deceção, amarra-nos a um intensa e desconhecida dor...
       ... só quem me ama me pode trair"
        "Em hebraico, Judas significa «o predileto». Tal como Cefas (o nome Pedro) significa «pedra».. Há quem veja aqui traços do humor de Jesus, que chama «pedra» a um seguidor assustado como Pedro e tem como discípulo traidor um de nome «predileto»... Jesus não escolheu Judas por outra razão que não fosse o amor...
       Quando ele se dispôs a seguir Jesus, certamente existia nele idealismo, convicção e verdade... O desejo de verificar com os seus próprios olhos, de se envolver eram genuínos. Depois, foram-se acumulando poeiras, embaraços, esfriamentos, discórdias...

       "Tal como os restantes discípulos, ele estava convencido de que Jesus se dirigia para Jerusalém para instaurar o Reino de Deus e o Verus Israel (verdadeiro Israel), sob a forma de um poder político, a tal ponto que as discussões entre eles era sobre o lugar que caberia a casa um no futuro governo (cf. Lc 9, 46 e Mc  10, 35-40)...

       "Judas, no fundo, traiu porque se sentiu traído. É a traição que determina o seu gesto. Que, da sua parte, tudo fique decidido durante a Última Ceia, evidencia bem a densidade do desfecho: quando, no partir e repartir do pão, Jesus anuncia que aceita viver a morte como dom, Judas considera isso intolerável. Ele não quer um Messias que morre. E abandona a sala..."

in TOLENTINO MENDONÇA. Nenhum Caminho será Longo.