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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Bento XVI - o que é o cristianismo

BENTO XVI (2023). O que é o Cristianismo. Quase um testamento espiritual. Cascais: Lucerna. 200 páginas.


Existem muitos livros publicados de Bento XVI, enquanto Papa, além de conjuntos de homilias, discursos, encíclicas, exortações apostólicas, entrevistas; enquanto teólogo, muitos mais. Mas este não é mais um livro. Aliás, nenhuma das obras refletidas e escritas por Joseph Ratzinger / Bento XVI é mais uma a acrescentar a outra, como soma, mas é única, pois, mesmo em textos próximos, apresenta novos estudos, achegas, referências. Este é um livro, por vontade própria de Bento XVI, publicado a título póstumo.
Recolhe diversos textos, estudo, reflexão, entrevista, intervenções, alguns já conhecidos, mas aperfeiçoados, outros inéditos sobre os fundamentos do cristianismo, sobre a identidade católica, sobre a relação da Igreja com outras igrejas e com o judaísmo. 
O subtítulo diz bem do objetivo desta coletânea, é quase um testamento espiritual! Noutras obras, como Introdução ao Cristianismo ou Jesus de Nazaré, em três volumes, escrito já como Papa, pode ver-se as intuições fundamentais do teólogo e do papa, do estudioso e do pastor, ou ainda, por exemplo, a Introdução à Liturgia, ou os livros de entrevistas, como o Sal da Terra.
Neste livro póstumo, fruto de uma reflexão mais amadurecida, tendo em conta ulteriores desenvolvimentos teológicos, morais, históricos, sociais e culturais, permitem que o autor refaça ou enquadre temáticas e problemáticas, desafiando outros a refletir sobre as questões que se colocam ao mundo de hoje e concretamente à Igreja e à fé.
Nas diferentes temáticas, a linguagem do Papa é muito acessível, mesmo naqueles temas que exige maior cuidado e argumentação. Nesses casos, Bento XVI recorre a uma ou outra imagem facilitando a compreensão, como quando aborda a realidade da transubstanciação na Eucaristia.
Há apontamentos que mostram a delicadeza para com o seu sucessor, o Papa Francisco, o que merece registo. "No final das minhas reflexões gostaria de agradecer ao papa Francisco por tudo o que faz para nos mostrar continuamente a luz de Deus, que mesmo hoje não se extinguiu. Obrigado, santo Padre!" Ao abordar a teologia moral e a misericórdia divina: "... Aqui devemos encontrar a unidade interior da mensagem de João Paulo II e as intenções fundamentais do papa Francisco: contrariamente ao que por vezes se diz, Jão Paulo II não foi rigorista moral. Demonstrando a importância da misericórdia divina, ele dá-nos a oportunidade de aceitas as exigências morais que se colocam ao homem, ainda que não possamos nunca satisfazê-las cabalmente. Os nossos esforços morais são empreendidos sob a luz da misericórdia de Deus, que se revela uma força que cura a nossa fraqueza".
Ao responder a uma questão sobre o Ano de são José, proclamado pelo Papa Francisco: "Naturalmente, fico particularmente feliz por o Papa Francisco ter reavivado nos fiéis a consciência da importância de são José; e depois li com enorme gratidão e profunda adesão a carta apostólica Patris Corde que o Santo Padre escreveu para o 150.º aniversário da proclamação de são José como patrono universal da Igreja universal. É um texto muito simples que vem do coração e vai ao coração, e que exatamente por isso é muito profundo. Penso que este texto deve ser lido e meditado assiduamente pelos fiéis, contribuindo assim para a purificação e para o aprofundamento da nossa veneração dos santos em geral e de são José em particular".
Verifica-se que Bento XVI não foge a questões, em forma de resposta a perguntas que lhe são colocadas ou no desenvolvimento dos temas, mostrando a discordância com este ou aqueloutro autor, num convite à persistência da reflexão dos temas mais problemáticos. Sobre a Comissão da Teológica Fundamental, cujo Presidente era o mesmo que o da Congregação para a Doutrina da Fé e também da Pontifícia Comissão Bíblica, tendo assumido ele, cardeal Ratzinger, esse mandato e serviço durante muitos anos, quase na totalidade do pontificado de João Paulo II, reflete questões como a Teologia da Libertação, com momentos de grande debate. É curioso o apontamento pessoal que faz sobre um teólogo: "O meu amigo padre Juan Alfaro SJ, que na Gregorina ensinava sobretudo a Doutrina da Graça, por razões que me são totalmente incompreensíveis, com o passar do tempo tornara-se num apaixonado defensor da teologia da libertação. Não queria perder a amizade com ele e assim essa foi a única vez, em todo o período da minha pertença à comissão, que faltei à Assembleia Geral".  Também nisto se vê a sua humanidade: a amizade prevaleceu à disputa e discordância teológica.

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

BENTO XVI e ARIE FOLGER - JUDEUS E CRISTÃOS

BENTO XVI e ARIE FOLGER (2020). Judeus e Cristãos. Cascais: Lucerna. 120 páginas.


Por ocasião dos 50 anos da Declaração Nostra Aetate, documento do concílio Vaticano II sobre o diálogo inter-religioso, com o número quatro a ser dedicado ao diálogo entre a Igreja Católica e os Judaísmo, vieram a lume alguns documentos que ajudam a aprofundar as relações amistosas entre as duas religiões.
No diálogo bilateral, os judeus foram convidados a preparar uma resposta ao n.º 4 da Nostra Aetate. É nesse contexto, que o rabino Arie Folger mantém um debate público e por escrito, como o próprio refere no prefácio a este pequeno livro, primeiro contra e depois com Bento XVI, Papa Emérito, com quem se viria a encontrar.
Bento XVI escreve “Graça e chamamento sem revogação. Observações sobre o tratado De Iudaeis”. A publicação gera contestação, não da parte dos judeus, mas da parte de teólogos católicos. Porém, ajuda à reflexão, num pressuposto imediato: o diálogo não se faz à custa de abdicar das convicções e da identidade de cada um. Há caminho para o diálogo, para a reflexão, para aprofundar o conhecimento mútuo, para trabalhar temáticas que levem a um efetivo compromisso com a paz, com a justiça social, com a ecologia e a erradicação da pobreza, com a tolerância religiosa e com a liberdade de expressão. Arie Folger coloca-se do lado de Bento XVI, defendendo que o Papa Emérito propõe a leitura cristã-católica. Não se compreenderia que um Papa defendesse uma visão judaica da Bíblia e da Aliança. Bento XVI agradece e responde a Folger, por escrito, clarificando alguns pontos, como o facto de não haver revogação da Aliança de Deus com o Povo Eleito, e não haver lugar à substituição de uma Aliança por outra, mas de haver sucessivas Alianças de Deus com o Seu Povo, com Abraão, com Noé, com Moisés. Na fé e visão cristã, a nova e definitiva Aliança acontece com Cristo, na oferenda do Seu Corpo, na sua morte e ressurreição.
Há outros pontos de contacto, aproximações, compreensão mútua, compromisso moral, permitindo encontrar-se e rezar juntos.


Este livro contém a reflexão de Bento XVI; o prefácio de Arie Folger; a correspondência entre o Papa Emérito e o Rabino; o número 4 da Nostra Aetate; duas intervenções do Papa Francisco; o documento “Entre Jerusalém e Roma – Reflexões a 50 anos da Nostra Aetate”.
Papa Francisco: “De inimigos e estranhos tornámo-nos amigos e irmãos. Tenho esperança de que a proximidade, a mútua compreensão e o respeito entre as nossas duas comunidades continuem a crescer”.
Bento XVI: “De acordo com as previsões humanas, este diálogo nunca conduzirá à unidade das duas interpretações durante a história atual. Essa unidade está reservada para Deus no fim da história”.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Joseph Ratzinger (BENTO XVI) - Por amor

JOSEPH RATZINGER/BENTO XVI (2019). Por Amor. Cascais: Lucerna. 144 páginas. 
Quando uma criança agarra um brinquedo dos irmãos, de algum amigo ou num centro comercial, é muito difícil convencê-la a largar o brinquedo, mesmo que tentem dar-lhe um melhor. Há tantas pessoas que continuam agarradas ao brinquedo que a comunicação social vendeu acerca do Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI. Muitos tiveram a oportunidade de corrigir a imagem que lhes tinham vendido, muitos continuam a fazer birrice, e daí também a necessidade de contrapor a humildade e bondade do atual Papa Francisco ao distanciamento e reserva de Bento XVI. Claro que são diferentes, mas a bondade, a simplicidade, a humildade e a sabedoria são características agrafadas à personalidade dos dois Papas. Mesmo no tempo em que era Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, quando recebia alguém, era sempre atencioso, delicado, com um trato familiar, próximo, direto, simples. Não deixava de ser amável, mesmo que houvesse desencontro de ideias. Uma das biógrafas do atual Papa Francisco, refere que quando o então Cardeal Jorge Mario Bergoglio ia ao Vaticano, o também Cardeal Joseph Ratzinger (Bento XVI) era dos poucos que o tratava de igual para igual, sem tiques de superioridade, mas como a um irmão! 
Neste pequeno livro que hoje sugerimos - Por amor - publicado pela Lucerna, vem ao de a humildade do pastor, a simplicidade do padre, a sabedoria do teólogo, a fé do cristão, a melodia da mensagem cristã, a ternura maternal de Maria, a luz do Evangelho, a compaixão de Jesus. 24 homilias (inéditas, pelo menos no facto de serem publicadas em livro, como um conjunto) que vão do ano 1978 a 2003, portanto antes de ser eleito Papa. Muitos dos textos são anteriores à sua nomeação para Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé. Cada reflexão é uma pérola. Não adianta tentar explicar a alguém que não quer, à partida, compreender. Para sacerdotes – como eu e outros – que já fizeram muitas homilias e tenham ouvido outras tantas, aprendemos sempre com o Cardeal Ratzinger. Há sempre apontamentos e leituras novas. Quando se lê, fica a ideia: como é que não me lembrei disto? 
Nota-se que os textos foram preparados como homilias, tem um tom muito reflexivo, pastoral, dialogante com a assembleia celebrante. Como curiosidade, há uma reflexão/mensagem na bênção de tratores, numa interessante interpretação do que é a bênção e a razão de benzer "máquinas", e há também a homilia do então Cardeal, em Fátima, em 13 de outubro de 1996. 
Também através dos textos nos aproximamos de quem os escreve. Vejamos uma ou outra passagem: 
"Ser cristão é passar da morte para a vida. O cristianismo é portanto um movimento, um caminho; não é uma teoria, nem um conjunto de doutrinas; o cristianismo é vida, é um impulso vital que nos leva à verdadeira vida e, por conseguinte, abre também os nossos olhos para a verdade, que não é pensamento puro mas força criadora fundamentalmente idêntica à caridade... a vida humana é, segundo a sua tendência natural, um caminho em direção à morte... 'Nós sabemos que passámos da morte para a vida'... o que é a vida? ... o amor é vida. O amor é síntese, a morte é dissolução. Quem encontrou o amor pode dizer: 'encontrei a vida'. A inversão do processo da morte, numa passagem para a vida, realiza-se na conversão da cupidez ao amor. O cristianismo é a conversão ao amor divino e, portanto, ao amor fraterno e, por conseguinte, passagem da morte para a vida". 
"Só o amor conhece o amor... o amor faz ver, e faz amar" 
"Em Maria, o Antigo Testamento torna-se Novo, a esperança transforma-se em cumprimento, em realidade concretizada. Ela é o advento em pessoa, isto é, o templo vivo em que Deus habita corporalmente. O sim de Maria é o momento em que o Antigo testamento se torna Novo: este sim é a porta através da qual Deus entra no mundo... Maria pode acreditar porque ama. Eva, por seu turno, perde a fé na Palavra de Deus e experimenta o contrário, no momento em que abre o seu coração à suspeita de que Deus talvez não fosse inteiramente bom. Envenenada por esta suspeita, procura a sua felicidade, colocando-se contra Deus, teme que Deus seja o adversário que a impede de ser livre, e foge da presença de Deus... O diálogo entre o Anjo e a Virgem conclui-se não só com uma profissão de fé, mas com o ato de submissão: «Eis a servas do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra» (Lc 1, 38). A Palavra de Deus não é só informação, comunicação da verdade; esta Palavra é missão, é mandato. A fé tem uma consequência prática: transforma a vida por completo. Deus tem necessidade de Maria, do seu sim, da sua obediência. A fé só é completa se se tornar obediência concreta ao mandato divino. Deus espera o nosso sim, espera a fé que se torna vida, na transformação da nossa vontade até à plena conformidade com a Sua vontade... a fé tende a ser comunicada. A fé é dinâmica, coloca-nos em movimento em direção aos outros... Ninguém crê só por si. Todos devem testemunhar com a sua vida a fé..." 
"Um dos costumes mais antigos da liturgia cristã é um pequeno gesto no início da preparação dos dons. Deita-se uma pequena gota de água no cálice com vinho. A origem deste gesto remonta simplesmente ao velho costume dos países mediterrâneos que não tinham hábito de beber vinho puro. Por esta gota de água estamos assim ligados à origem da Eucaristia: fazemos o que Jesus Cristo fez... A mistura da água e do vinho surgiu como uma interpretação para o grande mistério de que fala o Natal: o tornar-se um só do Homem com Deus, Cristo, em quem se dá a admirável troca. Deus assume a natureza humana para que o Homem possa participar da natureza de Deus. A pobre gotazinha de água, que cai no vinho delicioso e forte, representa a Encarnação de Deus. O pobre humano é mergulhado no oceano da divindade. No coração de Deus está o Homem... Regressemos uma vez mais á gota de água no vinho destinado à Eucaristia! Ele representa o facto de Deus e o Homem se tornarem um só em Cristo. Mas é também a orientação muito prática para o dia de hoje. Deixemo-nos simplesmente mergulhar no abismo de Deus, no vinho do seu amor!" 
"Não é possível estar junto da Cruz, junto dos mistérios da nossa redenção, sem estar também junto de Maria. É aqui que Maria se torna Mãe da Igreja. A Igreja nasceu no momento em que Jesus viu a sua Mãe e, ao lado dela, o discípulo que Ele amava… Tudo está consumado a partir do momento em que o discípulo «recebe» Maria «em sua casa»... Maria conduz-nos à Cruz. A presença eucarística do Senhor provém da Cruz. Não é possível aproximar-se de Jesus evitando a Cruz... O discípulo torna-se o filho, torna-se naquilo que é Jesus. Esta admirável identificação é o fruto do amor crucificado. Essa identificação, porém, torna-se realidade quando o discípulo «recebe» Maria «em sua casa». A comunhão com a Mãe é o caminho para a união com Jesus, o caminho da santa transformação. A Igreja nasce no momento em que, do alto da Cruz, o discípulo é confiado à Mãe... O facto de Maria ser recebida pelo discípulo em sua casa comporta dois aspetos. Por um lado, o discípulo de Jesus torna-se também discípulo da Mãe. Ele aprende a ser filho na escola da Mãe. Com a Mãe, ele aprende as palavras guardadas e ponderadas no coração materno. Com Maria, aprende não só as palavras, mas também o significado do silêncio de Jesus, o silêncio de 30 anos em Nazaré, o silêncio da sua origem eterna no regaço do Pai. Com a Mãe, que é a Igreja em pessoa, ele aprende a ser Igreja. A escola da Mãe é condição indispensável para se tornar filho, para reconhecer o Pai. Por outro lado, Maria é confiada ao discípulo: «Ele recebeu-a em sua casa». Santo Agostinho comenta a propósito desta passagem que o discípulo, tendo deixado tudo, não pode receber a Mãe em sua morada física - em «sua casa»... Ele «recebe-a» realmente «na sua intimidade», no seu ser, no seu pensamento e na sua vida". 
Quando Jesus esteve na Terra… escolheu o último lugar. Nasceu num estábulo. Viveu como trabalhador no meio dos pobres de Israel. Ensinou no meio dos publicanos, dos pecadores, dos desprezados. Reuniu pescadores à sua volta. E morreu fora dos muros da cidade, entre dois criminosos. A verdadeira imagem de Deus revela-se precisamente nisso, porque o verdadeiro Deus não é um tirano que exerça o poder como Lhe apetece, que Se apresente fechado em Si mesmo para se afirmar. O verdadeiro Deus é o amor trino que se oferece… 
Na Ceia do Senhor, vemos acontecer o que também acontece no banquete com os fariseus por causa dos primeiros lugares. Os evangelistas contam-nos que, na Última Ceia, os discípulos discutiram por causa do primeiro lugar (Lc 22, 24-30). Com este seu comportamento, mais uma vez, representam entre eles, em ponto pequeno, por assim dizer, o drama da história universal. Com isso, O Evangelho quer dizer-nos que também na Igreja há mundo. Não deve ser para nós motivo de espanto que a Imagem da história universal também atinja o âmago da Igreja, podendo chegar até ao mais sagrado, até à Eucaristia. A isso, no entanto, o Senhor contrapõe a inversão de valores que que é Ele próprio. Sobre o Seu lugar na Última Ceia, Ele também já decidiu. O seu lugar não é o lugar do Senhor, o lugar do poderoso, o lugar das tigelas cheias ou o mais confortável. Ele nem sequer Se senta com o grupo; pelo contrário, anda de um lado para o outro como o servo e, em especial, Se dá a Si mesmo. 
É este o significado do relato lava-pés de São João. O Senhor lava os pés dos discípulos da sujidade e do suor do dia-a-dia para que eles possam sentar-se à mesa. João, mais ainda do que os outros evangelistas, afirma claramente que não se trata aqui de um ato moral isolado. Ao longo de toda a sua vida, o próprio Senhor é o ato do lava-pés para connosco. A sua natureza consiste em baixar-Se; Ele é, na sua essência, humildade, porque o facto de Ele, o Filho de Deus, existir enquanto homem deve-se a Ele ter tirado a túnica da Sua glória e Se ter cingido com o linho grosseiro da natureza humana. E, agora, ajoelha-Se diante de nós, as suas criaturas. Ele lavou-nos, limpou-nos com o Seu próprio corpo, através do Seu sofrimento, do fedor da nossa soberba e da sujidade do nosso egoísmo, a fim de podermos sentar-nos à mesa do banquete do amor de Deus. 
«Dei-vos o exemplo, para que, assim como Eu fiz vós façais também» (Jo 13, 15). Esta frase é mais do que uma exortação moral à prática de atos morais. É a razão de ser cristão, uma iniciação à comunhão com Jesus Cristo que tem a humildade de Se baixar. Só conseguiremos identificar-nos com Ele se entrarmos nesse movimento, se nós próprios nos tornarmos humildes. Não é possível acreditar sem humildade. Sem humildade, não é possível sequer afirmar o mistério no meio do mundo que não O reconhece, nem aceitar até ao limite do nosso entendimento o caráter insondável de um Deus que Se ajoelha diante de nós. E, assim como não há fé, também não há amor sem humildade. Todos sabemos que amar implica ser capaz de engolir algumas coisas e calar outras tantas e ainda suportar a humilhação. O amor só subsiste envolto numa enorme humildade. E como, sem fé e sem amor, o Homem não tem por que ter esperança, e a fé e o amor não podem existir onde não há humildade, esta última é também a condição indispensável para a nossa esperança.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

VL – A Páscoa gera esperança, vida e comunidade

Jesus é a nossa Páscoa. A vida toda se encaminha para este grande e admirável mistério da nossa salvação. Tudo acontece e tudo parte da Páscoa de Jesus, da Sua paixão redentora, da Sua ressurreição e ascensão aos Céus, para junto do Pai, que Ele nos revela e que n'Ele e por Ele Se nos dá na oferenda da Sua vida por inteiro. 

A morte, diante da Ressurreição, é, afinal, um momento provisório. Sério, intenso, dramático, desolador, mas ainda assim passageiro, momentâneo, pois o que é definitivo é a vida em Deus. Se tudo tivesse ficado naquele sepulcro, onde 40 horas antes foi depositado, então a dispersão seria completa, a vida incompleta, o vazio encheria e destruiria a esperança que n'Ele muitos colocaram. 

Depois do sábado, dia sagrado para os judeus, Maria Madalena, na versão joanina e que nos foi proposta em dia de Páscoa, ainda escuro, vai ao sepulcro, vê a pedra retirada e imediatamente corre para avisar Sião Pedro e o discípulo amado: «Levaram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde O puseram». A desolação continua! Pedro e o discípulo amado correm para ir ver o que aconteceu. Ao entrarem no túmulo e, vendo a disposição das ligaduras e do sudário, percebem que algo de extraordinário aconteceu, conforme o Mestre predissera e segundo as Escrituras, Jesus já não Se encontra no túmulo, mas está vivo, ressuscitou! 

A Páscoa de Jesus, a ressurreição de entre os mortos, algo de inusitado e ao alcance somente de Deus – «A ressurreição é um acontecimento dentro da história, que, todavia, rompe o âmbito da história e a ultrapassa» (Joseph Ratzinger/Bento XVI) –, gera conforto, alegria, esperança, gera comunidade e encontro. 

A condenação de Jesus, a Sua crucifixão e a Sua morte são geradoras de dispersão, de abandono, de desolação. Os discípulos perderam Aquele que os mantinha unidos como grupo. Há, ainda, resquícios dos elos que antes se tinham criado, veja-se a cadeia de testemunho: Maria Madalena vai ter com Pedro e com o discípulo amado e os dois vão juntos ao túmulo de Jesus. É possível que a presença de Maria, Mãe de Jesus, tenha agilizado e fortalecido os laços de proximidade e comunhão. 

Na estrada de Emaús, os dois discípulos expressam bem o desconforto que provocou a morte de Jesus, as esperanças que n'Ele tinham depositado e como tudo se esboroou! Com o Seu regresso ao convívio dos vivos, os elos que ligavam os discípulos, a motivação para estarem juntos regressa em força. A esperança é alimentada pela presença do Senhor ressuscitado!

Publicado na Voz de Lamego, n.º 4455, de 3 de abril de 2018

terça-feira, 20 de março de 2018

VL – Acolher Maria, escutá-la e viver ao jeito de Jesus

Maria, Mãe de Jesus e nossa Mãe, embeleza e humaniza toda a vida da Igreja, desde sempre e por todas as gerações. É Bem-aventurada, escolhida e preparada por Deus para ser a Mãe de Jesus, Deus humano que vem para habitar connosco, como um de nós, assumindo-nos na nossa humanidade, na nossa fragilidade e na nossa finitude.

Entramos em modo de Advento, para prepararmos interior e exteriormente a vinda de Jesus, o nascimento do nosso Salvador. Maria conduz-nos ao Presépio, Maria dá-nos Jesus, Ela mostra-nos Jesus e ensina-nos a gerá-l’O em nós, nas diferentes circunstâncias da vida. 

A solenidade da Imaculada Conceição, Padroeira de Portugal, Rainha e Senhora Nossa, litúrgica e cronologicamente divide o Advento. Corrijamos, Maria recentra-nos na pureza original, no silêncio que perscruta a voz de Deus, na disponibilidade total para perceber a vontade de Deus. Faz com que o Advento não seja formal, não fique num conjunto de gestos, de adereços, de adornos, ainda que importantes, introduz-nos no mistério misericordioso do Pai, na ternura materna de Deus. Ela é concebida sem qualquer marca de pecado, toda santa, por vontade de Deus que partilha a Sua santidade para n’Ela fazer a Sua morada humana, terrena, histórica. É um mistério que nos vai sendo revelado e que nos desafia, nos envolve e nos provoca, nos compromete e nos dá esperança. 

Ela é uma de nós! E ainda assim é escolhida por Deus! Sabemos então que n’Ela Deus nos ama e nos ama tanto que está disposto a fazer-Se pequeno, a fazer-Se um de nós, carne da nossa carne, sangue do nosso sangue, osso dos nossos ossos. "No momento da queda começa também a promessa… Na saudação do anjo torna-se claro que a bênção é mais forte que a maldição. O sinal da mulher tornou-se sinal de esperança, a mulher torna-se a guia da esperança… Tal como a fé de Abraão esteve no início da Antiga Aliança, assim a fé de Maria inicia a Nova Aliança na cena da Anunciação... Maria põe o seu corpo, todo o seu ser à disposição de Deus para abrigar a Sua presença..." (Joseph Ratzinger – Bento XVI). 

Louvar e bendizer Maria é predispormo-nos a imitá-la, a seguir as suas instruções que, em última análise, nos colocam a agir ao modo de Jesus, pois o seu mandato é esse: “Fazei tudo o que Ele vos disser”. O olhar de Maria que nos acolhe faz-nos olhar na direção de Jesus. É um olhar cheio de graça que transluz o seu filho Jesus.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Leitura: ANDREA MONDA - BENDITA HUMILDADE

ANDREA MONDA (2012). Bendita Humildade. O estilo simples de Joseph Ratzinger. Prior Velho: Paulinas Editora. 176 páginas.
       No dia 10 de novembro (2017), desloquei-me com três amigos sacerdotes, o Giroto, o Diamantino e o Diogo à VIII Jornada de Teologia Prática na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, e um dos conferencistas era precisamente o italiano Andrea Monda, testemunhando o anúncio do Evangelho às gerações atuais. O professor Andrea Monda leciona o equivalente a EMRC, tem um programa na TV2000, num formato semelhante a uma aula de 25 minutos, interagindo com a turma.
       Bastava o livro ser referido a Bento XVI / Joseph Ratzinger para me despertar o interesse, mas a conferência de Andrea Monda despertou-me mais o interesse. Mas como digo, bastava ser uma obra sobre Joseph Ratzinger, que já o lia e estudava, para uma ou outra disciplina de Teologia, longe do tempo em que viria a ser eleito Papa. O testemunho da D. Fernanda, que dedicou uma parte importante da sua vida ao Seminário de Lamego, aquando uma missão em Roma, era que àquele Cardeal era muito afável, muito simpático e atencioso, muito simples e muito humano. São características que Andrea Monda também descobrir, sem precisar de muito esforço, bastando o encontro com Bento XVI e os milhentos testemunhos dados por quem conviveu ou convive com o agora Papa Emérito.
       O autor mostra que este Homem de Deus, simples, afável, de fácil trato, que olha as pessoas olhos nos olhos, com um olhar profundo e interpelante, atento aos interlocutores, não foi uma novidade, sempre foi assim, como seminarista, como padre, como Bispo, como professor, como Prefeito da Congregação para a Doutrina na Fé (ex-Santo Ofício). A comunicação social, desde a primeira hora, não lhe concedeu qualquer interregno de simpatia, pois sendo já conhecido, agora era tempo de levantar suspeitas, insinuações, colocando com rótulos, com preconceitos, pelo facto de ser alemão e pelo facto de ter sido durante tantos anos o fiel guardador da fé, da doutrina católica, como se isso fosse um crime.
       Segundo o autor, a HUMILDADE é uma palavra que marca a vida de Joseph Ratzinger / Bento XVI, nas diferentes etapas da vida, como sacerdote, como professor, como Bispo, Cardeal e Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, como Papa. Numa biografia do atual Papa Francisco é sublinha a atenção e o cuidado com que o então Cardeal Ratizinger tratava as pessoas que encontrava, com atenção, colocando-se ao mesmo nível da pessoa. Era um dos poucos cardeais, consta, que não tratava o então Cardeal Jorge Mario Bergoglio com sobranceria, como um Cardeal das periferias, como fazia outras eminências, mas de igual para igual, com respeito, deferência, respeito e simpatia.
       É uma humildade assente na verdade, sobretudo a Verdade do Evangelho. A fé é antes de mais um encontro com Jesus. Humildade que assenta na transparência, na comunhão com a Igreja, em comunhão com a "maioria" formada pelos santos. Uma humildade caracterizada pela simplicidade. Basta recordar a primeira vez que apareceu na varanda pontifícia como Papa, o simples servidor da vinha do Senhor, com uma camisola preta, normal, debaixo da batina branca. Mais tarde confessará q dificuldade em usar botões de punho.
       Como Prefeito era conhecida a rotina que mantinha, manhã cedo e no final do dia, atravessava a praça de São Pedro, com uma boina na cabeça, sempre disponível para quem se aproximava. Por vezes fazia-se acompanhar por gatos. Sempre cordial e simples. Já como professora passava como segundo ou terceiro coadjutor de uma paróquia de cidade, tal a simplicidade com que interagia com os alunos, nesse caso. Permaneceu sempre assim, simples, cordato e acessível, um sacerdote a caminho, que se move em direção aos outros, colocando-se sempre ao nível dos seus interlecutores.
"Se João Paulo II foi definido como «o pároco do mundo», nesta aceção de simplicidade e humildade, pode-se tranquilamente definir Bento XVI como «coadjutor paroquial do mundo»... Em Bona, Ratzinger podia andar a pé, em Munique, como jovem sacerdote, andava de bicicleta de um lado para o outro, em Tubinga, voltou a recorrer às duas rodas".
       A sua vida é marcada pela renúncia. O autor apresenta essa característica fundamental antes de se sonhar que o Papa bávaro iria renunciar ao pontificado, assumindo-se como simples Padre Bento (terá sido essa a designação que propôs usar depois da renúncia). Humildade obediente. Outros foram conduzindo o seu percurso. Vai numa direção e de repente alguém o desafia para outra missão, sempre com o sentido de obediência aos seus superiores.
       Como teólogo marcante, o próprio confessou que nunca se propôs apresentar/criar uma linha teológica, mas aprofundar a teologia dentro da comunidade, da Igreja, em comunhão com o testemunho dos santos, uma teologia de joelhos.
       A verdadeira grandeza de homem reside na sua humildade". É uma caracterização que lhe assenta bem. Numa das catequeses, ao apresentar a figura do Papa Gregório Magno, quase poderia falar de si mesmo, lembrando como o monge que se tornou Papa "procurou de todos os modos evitar aquela nomeação; mas, no fim, teve de render-se e, tendo deixado pesarosamente o claustro, dedicou-se à comunidade, consciente de cumprir um dever e de ser simples 'servo dos servos de Deus'".
       "Todas as pessoas que de algum modo se encontraram com Joseph-Bento, «ao vivo», puderam constatar a doçura deste homem simples e dialogante, sem traços de altivez nem de afetação... ele é o primeiro a movimentar-se e ir ao encontro dos outros, pondo-se ao seu nível, delicadamente".
       Um dos aspetos relevantes do autor - tendo em conta os 24 anos de Joseph na Congregação responsável por ajudar o Papa e a Igreja a manter-se fiel a Jesus Cristo e ao Evangelho, ao nível dos princípios e das palavras em cada tempo -, o dogma! O dogma é o que nos liberta e nos ajuda a viver em dinâmica de amor. «Se na Igreja existem os dogmas, é para que ninguém se engane sobre o amor. Eles expõem-se à acusação de ideologia: na realidade, têm por efeito impedir que o amor seja transformado em ideologia».

BENTO XVI: «Deus não nos deixa tatear na escuridão. Mostrou-se como homem. Ele é tão grande que pode permitir-se tornar-se pequeníssimo».

domingo, 3 de abril de 2016

O encontro com o Ressuscitado gera a fé na Ressurreição

       Na manhã de Páscoa, as mulheres correm ao sepulcro e encontram-no vazio, sem o corpo de Jesus. Como tem acentuado o nosso Bispo, o sepulcro está cheio de sinais que importa ler, a disposição das roupas de Jesus, o anjo ou os dois homens vestidos de branco, a luz, e o desafio a procurar Jesus fora do túmulo.
       Em todo o caso poder-se-á fazer uma outra acentuação que é clarividente na leitura dos Evangelhos. O que provoca a fé na ressurreição é o encontro com o Ressuscitado e não o sepulcro vazio. As mulheres aproximam-se do sepulcro, não encontram o corpo de Jesus e ficam atemorizadas. Maria Madalena pergunta ao próprio Jesus, pensando que é o jardineiro, onde puseram o corpo de Jesus, deduzindo-se a possibilidade de roubo ou de colocação em outro túmulo. A corrida de Pedro e do discípulo amado ao sepulcro é consequência do anúncio que as mulheres fizeram; no túmulo confirmam as informações e começa o processo de fé na ressurreição, mas esta só se clarifica no encontro de Jesus com os discípulos.
       Segundo o Papa Bento XVI / Joseph Ratzinger, o túmulo vazio é um pressuposto da fé da Ressurreição, bem com o Corpo incorruptível de Jesus. O túmulo está vazio até hoje, pois Jesus ressuscitou.
       Não sendo um dado histórico e empírico, continua o Papa Emérito, “ultrapassa a história, mas deixou o seu rasto na história”. 
       O decisivo para a fé na ressurreição será sempre o encontro com Jesus Ressuscitado. A este respeito diz José Antonio Pagola, que “o relato do sepulcro vazio, tal como foi recolhido no final dos escritos evangélicos, encerra uma mensagem de grande importância: era um erro procurar o crucificado no sepulcro. Não estava lá. Não pertencia ao mundo dos mortos. Era um equívoco render-lhe homenagem de admiração e de reconhecimento pelo seu passado. Ressuscitou. Estava mais cheio de vida do que nunca. Ele continuava a animar e a guiar os seus seguidores. Era preciso ‘voltar à Galileia’ a fim de seguir os Seus passos: continuar a curar os que sofriam, a acolher os excluídos, a perdoar os pecadores, a defender as mulheres, a abençoar as crianças. Era preciso continuar a organizar refeições abertas a todos e a entrar nas casas com o anúncio da paz… Era preciso continuar a anunciar que o Reino de Deus estava próximo. Com Jesus, era possível um mundo diferente, mais amável, mais digno e mais justo. A esperança para todos”.

publicado na Voz de Lamego, n.º 4355, de 22 de março de 2016

sábado, 30 de agosto de 2014

XXII Domingo do Tempo Comum - ano A - 31 de agosto

       1 – E vós que dizeis que Eu sou? Pergunta essencial que Jesus nos faz sobre o testemunho que estamos dispostos a dar, identificando-nos com Ele e permitindo que Ele transpareça em nós, através de nós, diante de todas as pessoas que encontramos.
       Pedro, como víamos, responde também por nós. Tu és o Messias, o Filho de Deus. Isto é, não és um dos profetas, és o Messias de Deus, és único para mim. Seguir-Te-ei por onde fores.
       Tu és Pedro, pedra, sobre ti edificarei a minha Igreja. Recordava o nosso Bispo, D. António Couto, que aquela pedra, que é Pedro, é frágil, esburacada, alcofa, berço, para nele e através dele, e também em nós e através de nós, Cristo possa agir no mundo.
       A profissão de fé de Pedro é reveladora. Mas a consciência do que acaba de dizer parece não ter ainda a consistência do seguimento, a luz da fé que brotará com toda a força na Ressurreição de Jesus Cristo.
       O Mestre vai prevenindo os seus discípulos para que não se deixam iludir por facilidades. Ele é o Messias, o Enviado de Deus, mas não dispensa ninguém de trabalhar, de fazer o seu próprio caminho. Ele é Guia, mas não nos substitui os pés, a vontade. Teremos que viver a nossa vida, enfrentando os dias bons e os dias nebulosos. Ele estará sempre connosco. Sempre de mão estendida para não nos deixar afundar. Esta confiança que nos vem da fé ajuda-nos a encarar as intempéries que advirão pelo caminho.
       O Filho do Homem, que é também o Filho de Deus, vai sofrer. Vai passar as passas do Algarve, vai ser entregue às autoridades e será morto. No entanto, não há que se deixar afugentar pela morte, pois a ressurreição, três dias depois, trará a vitória do amor, da entrega, a vitória de Deus sobre o mal, a injustiça, o sofrimento.
       2 – Quando nos dão uma má notícia deixamos de ter disponibilidade para boas notícias. Os discípulos já não ouvem Jesus a falar de ressurreição e logo Pedro O contesta, dizendo: «Deus Te livre de tal, Senhor! Isso não há de acontecer!».
       Jesus volta-Se para Pedro e diz-lhe: «Vai-te daqui, Satanás. Tu és para mim uma ocasião de escândalo, pois não tens em vista as coisas de Deus, mas dos homens». E logo para todos os discípulos, que hoje somos nós: «Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me. Pois quem quiser salvar a sua vida há de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa, há de encontrá-la. Na verdade, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua vida? Que poderá dar o homem em troca da sua vida? O Filho do homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus Anjos, e então dará a cada um segundo as suas obras».
       Aí estão as linhas de orientação para sermos verdadeiramente discípulos, seguidores de Jesus. Seguir atrás do Mestre. Quando queremos ir à frente, ou sem Jesus Cristo e o Seu Evangelho de amor e de perdão, corremos o risco de perder a vida em vão. É preciso sermos aquela pedra frágil cuja força nos vem do alto, de Jesus Cristo, pelo Espírito Santo. Precisamos de não impedir que Deus trabalhe em nós e através de nós. Podemos ter o mundo inteiro nas mãos, mas se nos faltar a caridade, faltar-nos-á a própria vida, como dom partilhável. Precisamos de GASTAR a vida a favor dos outros, a exemplo de Jesus que dá a vida pela humanidade inteira.
       3 – Há tantos caminhos quantas as pessoas. Resposta do então Cardeal Joseph Ratzinger, em Sal da Terra (1996), quando lhe perguntaram quantos caminhos havia para Jesus Cristo, lembrando que a própria Igreja é definida como caminho de Cristo. Ou Jesus, como único caminho que nos conduz ao Pai.
       Dito isto, facilmente se conclui que cada um é chamado a fazer o seu próprio caminho. Mas não estamos sós. A reprimenda dada a Pedro surge neste contexto. Se queremos passar à frente de Jesus ou prosseguir sem Ele, estaremos sob o domínio de Satanás, diabolizando a nossa ligação com os outros. Há que avançar seguindo Jesus, procurando orientar-nos pelas suas pegadas.
       No campo ou na cidade, os pais levam a criança pela mão. Ou, vão à frente (na vida), dando o exemplo pela palavra e pela postura. A criança larga a mão dos pais e pode perder-se se avança demasiado ou se se atrasa e deixa de os ver. Seguimos por um trilho, por entre giestas, arvoredo, e procuramos que os nossos pés pisem onde outros pisaram, ainda que as nossas pegadas sejam nossas. Será mais seguro, pois sabemos que aqueles que nos precederam trilharam caminhos que nos dão segurança, sem nos iludirmos no arvoredo, com o perigo de tropeçarmos numa pedra, ou cairmos em algum buraco, ou irmos diretos a uma ribanceira. Ainda que possamos retomar a caminhada.
       Cai neve que cobre por completo o chão que pisamos. Se alguém já passou, nós vamos prosseguindo sabendo onde podemos pisar com segurança. Deslocámo-nos por um caminho que desconhecemos. Nada melhor que uma bússola ou o GPS. Isto mesmo diz Jesus a Pedro. Afasta-te de Mim. Passa para trás. Eu Sou o alfa e o ómega, o Teu Norte. Vem por Mim e serás salvo. A minha Palavra é bússola para o teu peregrinar, o meu Evangelho é o melhor GPS para saberes para onde vais. Chega mais depressa não quem corre mais mas quem sabe para onde ir. Quem se mete em atalhos pode muito bem meter-se numa carga de trabalhos. Seguir no encalço de Jesus dá-nos a confiança para prosseguirmos com alegria, criatividade, segurança, sabendo que encontraremos dificuldades, mas sabendo também que o nosso olhar não se despegará do de Jesus.
       Por outro lado, o testemunho dos santos, ou de pessoas luminosas que vamos encontrando nas nossas comunidades, cuja vivência de compromisso com os irmãos, nos leva, ainda hoje, a descobri mais facilmente as pegadas de Jesus. Voltando ao exemplo anterior, seguindo um trilho, se outros forem decalcando as pegadas que encontram, tornam-se mais visíveis para nós.

       4 – São Paulo admoesta, ao jeito de Jesus, para que não nos conformemos com o tempo presente, com este mundo, com os nossos interesses, mas em tudo procuremos "o que é bom, o que Lhe é agradável, o que é perfeito", discernindo segundo a vontade de Deus.
       Se nos preocuparmos apenas connosco e com o nosso umbigo, conformar-nos-emos com o mundo, deixando-nos transformar por ele. Mas, seguindo Jesus, deveremos gastar a nossa vida para transformar o mundo, oferecendo-nos a nós "mesmos como sacrifício vivo, santo, agradável a Deus, como culto espiritual", sob o domínio da misericórdia de Deus. Vivamos à sombra das Suas asas (Salmo)!
       Esta é a nossa vocação: fazer com que o nosso caminho, seguindo a vontade de Deus, nos aproxime do caminho que é Jesus Cristo. Se nos faltarem as forças, não temamos pois a nossa vida está unida a Deus, cuja mão nos serve de amparo (Salmo).
       Jeremias sente, como Pedro, como Paulo, e como nós, o chamamento de Deus ao qual não pode virar costas, ou fazer de conta. O profeta reconhece as dificuldades do caminhos, mas sabe que não lhe cabe desistir: "Em todo o tempo sou objeto de escárnio, toda a gente se ri de mim; porque sempre que falo é para gritar e proclamar: «Violência e ruína!». E a palavra do Senhor tornou-se para mim ocasião permanente de insultos e zombarias. Então eu disse: «Não voltarei a falar n’Ele, não falarei mais em seu nome». Mas havia no meu coração um fogo ardente, comprimido dentro dos meus ossos. Procurava contê-lo, mas não podia".
       Por vezes pode ser mais fácil deixar andar, ao sabor do vento. Mas se Ele verdadeiramente nos seduziu, a Sua voz há de ressoar dentro de nós até ao Infinito. Mas também a Sua Mão nos guiará.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Jer 20, 7-9; Sal 62 (63); 2 Rom 12, 1-2; Mt 16, 21-27.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

LEITURAS: Walter Kasper - o EVANGELHO da FAMÍLIA

WALTER KASPAER (2014). O Evangelho da Família. Prior Velho: Paulinas Editora. 72 páginas.
       No dia 17 de março de 2013, o Papa Francisco, na oração do ANGELUS, a primeira aparição na varanda do Palácio Apostólico, referiu que a leitura de um livro de Walter Kasper, sobre a misericórdia de Deus, lhe tinha feito muito bem. Menos de um ano depois, Walter Kasper recebeu o convite do Papa para refletir sobre a problemática da família, tendo em conta o Sínodo Extraordinário dos Bispos, no outono de 2014, e o Sínodo ordinário dos Bispos, em 2015, que terão como pano de fundo os "Desafios pastorais sobre a família no contexto da evangelização".
       Com efeito, foi enviado às Dioceses, paróquias, comunidades eclesiais, e disponibilizados em diferentes plataformas um extenso questionário procurando abranger os vários temas relacionados com a Família, dificuldades e potencialidades, a família e a Igreja, a família e a sociedade, novas formas de entender ou viver a família.
       No Consistório extraordinário dos Cardeais, 20 e 21 de fevereiro de 2014, coube a Walter Kasper a reflexão sobre a família, não antecipando conclusões do Sínodo, mas deixando pistas de reflexão, partindo da dinâmica bíblica, contextos, evoluções, conjugando a estrutura do matrimónio e da família com o anúncio do Reino de Deus, acentuando a misericórdia de Deus com a fidelidade às promessas feitas.
        Uma das problemática afloradas nesta apresentação, agora em livro, é a dos divorciados recasados, com a sugestão de uma prática pastoral de acolhimento, procurando dar respostas novas e acolhendo o contributo daqueles que vivem essas situações difíceis, para que a solução, o caminho encontrado, sob a sintonia do Papa, possa brotar dos anseios e preocupações das pessoas.
        Com grande sentido e abertura, o Cardeal avança com algumas hipóteses, para que a verdade esteja revestida da misericórdia de Deus, procurando que as respostas vão de encontro às sugestões das comunidades eclesiais de todo o mundo. A unidade a encontrar na reflexão não será fácil, mas como em outros momentos da história da Igreja, há que procurar um caminho comum, comprometendo-nos com a vivência do reino de Deus. É uma obrigação. Um compromisso. Um desafio, para que não se percam as gerações seguintes, dos filhos e dos netos.
       O livrinho, além da exposição feita aos Cardeais, apresenta alguns anexos explicativos das propostas apresentadas, entre as quais a sugestão do então professor Joseph Ratzinger (depois Papa Bento XVI) para se retomar de um modo novo a posição de Basílio, também partilhada pelo próprio Walter Kasper.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Hans Urs Von Balthasar - Em Maria a Palavra faz-Se Carne

"A Palavra de Deus que quer tomar carne em Maria, necessita de sim 'sim' acolhedor, que seja dito por toda a pessoa, corpo e espírito, sem qualquer restrição (mesmo inconsciente) e que ofereça toda a natureza humana como lugar de incarnação. Receber e permitir não tem que ser uma atitude passiva; perante Deus, receber e permitir, quando realizados na fé, são sempre uma altíssima atividade" (p 103).
"Nenhuma espiritualidade aprovada pela Igreja pode permitir-se pretender chegar a Deus passando ao lado deste modelo de perfeição cristã e não sendo também mariana. De facto não há em toda a realidade eclesial nenhum outro momento em que a resposta de fé esperada da Igreja tenha soado de forma mais pura e tenha sido vivida de forma mais consequente" (p 120).
in RATZINGER e VON BALTASHAR. Maria, primeira Igreja. AQUI.

Ratzinger/Bento XVI - Maria é habitável por Deus

"Tudo o que é dito na Bíblia da ecclesia vale para a Maria, e vice-versa: o que a Igreja é e deve ser, é por ela aprendido na contemplação de Maria. Esta é o seu espelho, a verdadeira medida da sua natureza, porque existe à medida de Cristo e de Deus, 'habitada' por Ele. E para que existiria a Igreja senão para ser habitação de Deus no mundo? Deus não age com coisas abstratas. Ele é Pessoa, e a Igreja é pessoa. Quanto mais nós e cada um de nós nos tornarmos pessoa, pessoa no sentido da inabitação de Deus em nós, Filha de Sião, tanto mais seremos um e tanto mais seremos Igreja, e tanto mais a Igreja será ela própria" (p 64).
"Ela vive de tal maneira que é permeável a Deus, habitável por Ele. Ela vive de tal maneira que se torna um lugar para Deus. Ela vive ao ritmo da dimensão comunitária da história santa de tal forma que não nos aparece bela o estreito e mesquinho 'eu' de um indivíduo isolado, mas sim o todo do verdadeiro Israel" p 65
"Deus não dá menos do que Ele próprio. O dom de Deus é Deus, que, enquanto Espírito Santo, é comunhão connosco. 'És cheia de graça' - isso significa portanto também que Maria é uma pessoa totalmente aberta, que se dilatou totalmente, que se entregou audaciosa e ilimitadamente, sem temor quanto ao seu próprio destino, nas mãos de Deus. Significa que vive inteiramente a partir da relação com Deus e no interior dessa relação. Maria é uma pessoa à escuta e em oração, cujo sentido e cuja alma estão despertos para múltiplos apelos sussurrados pelo Deus vivo. É um ser orante, totalmente tenso para Deus e, por isso, um ser amante com a amplitude e a generosidade do verdadeiro amor, mas também com a sua capacidade infalível de discernimento e com disponibilidade para o sofrimento que existe no amor" (p 67).
"Engrandecer o Senhor - isso significa não se engrandecer a si próprio, ao seu próprio nome, ao seu próprio 'eu', ampliar-se e reivindicar um lugar, mas dar-lhe espaço a Ele para que se torne presente no mundo. Quer dizer: tornarmo-nos mais verdadeiramente o que somos, não uma monada fechada que só se representa a si própria, mas imagem de Deus. Significa libertarmo-nos do pó e da fuligem que torna a imagem opaca e a recobre, e tornarmo-nos verdadeiramente pessoas, inteiramente referidas a Deus" (p 73).
"Só nela a imagem da cruz se cumpre inteiramente, porque é a cruz assumida, a cruz partilhada no amor que nos permite, na sua compaixão maternal, experimentar a compaixão de Deus. Assim, a dor da mãe é dor pascal que já agora opera a abertura da transformação da morte à presença salvífica do amor" (p 77).
"Maria é a Igreja viva. Sobre Ela desce o Espírito Santo e assim se torna no novo Templo. José, o justo, é tornado gerente dos mistérios de Deus, como pai de família e protetor do santuário que constituem a Esposa e o Verbo nela" (p 86).
in RATZINGER e VON BALTASHAR. Maria, primeira Igreja: AQUI.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Ratzinger/Bento XVI - a fé de Maria inicia a Nova Aliança

"Tal como a fé de Abraão esteve no início da Antiga Aliança, assim a fé de Maria inicia a Nova Aliança na cena da Anunciação... Maria põe o seu corpo, todo o seu ser à disposição de Deus para abrigar a Sua presença..." (p 46).
"No momento da queda começa também a promessa" (p 49)
"Na saudação do anjo torna-se claro que a bênção é mais forte que a maldição. O sinal da mulher tornou-se sinal de esperança, a mulher torna-se a guia da esperança"  (p 50).
"A Igreja não inventou nada de novo quando começou a enaltecer Maria; não desceu do cume da adoração do Deus único para um mero louvor humano. A Igreja faz o que deve fazer e o que lhe foi cometido desde o princípio" (p 59).
"O louvor de Maria, conservado, pelo menos, num dos ramos da tradição do cristianismo mais antigo, é o fundamento do Evangelho de infância de Lucas. O registo destas palavras no Evangelho eleva esta veneração de Maria  de um mero facto a uma tarefa da Igreja de todos os lugares e de todos os tempos.
A Igreja negligencia algo que lhe é comandado se não louva Maria. Quando o louvor de Maria nela emudece, a Igreja afasta-se da palavra bíblica. Quando isso acontece também não louva a Deus de forma suficiente. Pois, por um lado, conhecemos Deus através da sua criação: 'O que é invisível em Deus - o seu eterno poder e divindade - tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras' (Rom 1,20). Por outro lado, conhecemos Deus, de forma mais próxima, através da história que ele fez com os homens...
O verso do Magnificat mostra-nos que Maria foi uma dessas pessoas que se inserem de forma muito especial no nome de Deus, tanto que não O louvamos suficientemente quando A pomos de parte" (pp 60-61)
"O fundamento da nossa tristeza é a caducidade do nosso amor, a supremacia da finitude, da morte, do sofrimento, da maldade, da mentira; é a nossa solidão no mundo contraditório, no qual os misteriosos e luminosos sinais da bondade de Deus irrompendo pelas frinchas do mundo, são postos em causa pelo poder das trevas, o qual ou faz com que se atribua o mal a Deus ou faz com que Deus pareça ausente" (p 63).
in RATZINGER e VON BALTASHAR. Maria, primeira Igreja: AQUI.

Ratzinger/Bento XVI - A Igreja precisa do mistério mariano

"A Igreja não é um produto 'feito' mas sim a semente viva de Deus que quer crescer e amadurecer. Por isso a Igreja precisa do mistério mariano, por isso é ela própria mistério mariano. A fecundidade só pode acontecer nela quando a Igreja se coloca sob este signo, quando se torna terra sagrada para a Palavra" (p 11).
"Igreja é mais que 'povo', mais que a estrutura e ação: nela vive o mistério da maternidade e do amor esponsal que permite a maternidade. A piedade eclesial, o amor pela Igreja só é realmente possível no seio deste mistério. Onde a Igreja é vista só como masculina, estrutural, institucional, aí desvanece-se o que é a especificidade da Igreja..." (p 20)
"A Igreja é o corpo, a carne de Cristo na tensão espiritual do amor, na qual se cumpre o mistério esponsal de Adão e Eva, e, assim, na dinâmica da unidade que não elimina o face a face. Isto quer dizer que precisamente o mistério eucarístico-cristológico da Igreja, anunciado na expressão 'corpo de Cristo', preserva a sua justa medida só ao incluir o mistério mariano: a serva que escuta, que - tornada livre pela graça - diz o seu fiat e nele se torna esposa e, por isso, corpo" (p 21)
in RATZINGER e VON BALTASHAR. Maria, primeira Igreja: AQUI.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

RATZINGER . Von BALTHASAR - Maria, primeira Igreja

Cardeal JOSEPH RATZINGER e HANS URS VON BALTASHAR (2014). Maria, primeira Igreja. Coimbra: Gráfica de Coimbra 2, 190 páginas.

       Uma colaboração curiosa entre dois dos maiores teólogos do século XX. Aquele que viria a ser eleito Papa, adotando o nome de Bento XVI, Cardeal Ratzinger, alemão. Hans Urs Von Balthasar, teólogo e sacerdote suíço, morreu (1988) dois dias antes de ser escolhido para Cardeal pelo Papa João Paulo II.
       O livro foi publicado pela primeira vez na Alemanha em 1980. A versão que temos entre mãos é a tradução portuguesa da quarta edição alemã de 1997, aumentada com novos artigos dos dois amigos que enriqueceram o pensamento da Igreja na segunda metade do século XX.
       É certo que não se devem ler os livros só pelo nome dos seus autores. Mas estes dois, em conjunto, ou individualmente, são uma garantia de fidelidade a Jesus Cristo e ao Seu Evangelho, de fidelidade comprometida com a Igreja e com a sociedade. Hans Urs Von Balthasar foi considerado como o homem "mais culto" do século XX, e um dos maiores teólogos do seu tempo. De Ratzinger não existem dados novos: um dos teólogos mais brilhantes do século XX e nos começos do século XXI. Ligação dos dois ao papa que agora é santo, João Paulo II, que elevaria Balthasar a Cardeal e que escolheu o Cardeal para o ajudar no serviço da Igreja, nomeando-o como Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé e não lhe concedendo a reforma que algumas vezes lhe solicitou. Até ao fim, Ratzinger foi o "braço direito" de João Paulo II, sucedendo-lhe no ministério petrino.
       Mas vamos ao livro que motiva esta sugestão de leitura. Os textos recolhidos foram escritos como intervenções, artigos, homilias, sintonizados na figura ímpar de Maria, a primeira Igreja. São textos acessíveis, de fácil compreensão, como estamos habituados em Ratzinger/Bento XVI e que não difere muito no que se refere a Von Blathasar. Procuram-se dos dados bíblicos sobre a figura e a missão de Maria, procurando apresentar linhas e critérios para uma sã devoção. Um e outro mostram a evolução da devoção a Nossa Senhora, fazendo a ponte para o diálogo com os protestantes e com os ortodoxos. Mostram que Maria não apenas é a primeira discípula de Jesus, mas tem um papel especialíssimo, como primeira Igreja, a Igreja espiritual. Por exemplo, Balthasar, fala na Igreja petrina, ministerial, masculina, e na Igreja mariana, anterior, que nasce com a Encarnação, espiritual e feminina. Maria é Mãe de Jesus, e torna-se Mãe da Igreja. O que se diz da Igreja pode dizer-se de Nossa Senhora, e o que se diz de Maria pode dizer-se da Igreja. O SIM de Maria vem antes, Ela é a Igreja sem mácula, santa, pura. A Igreja é santa também neste fundamento. É pecadora nos seus membros.
       Um dos aspetos abordados e curiosos, e que temos ouvido expressar ao Papa Francisco, é precisamente o papel da Mulher na Igreja e que valeria uma reflexão mais aprofundada como desafio o atual Papa. Maria tem uma missão precedente em relação a Pedro, a Igreja Espiritual, santa, imaculada, feminina. Maria, criatura como nós, assume-se primeira discípulo, envolvida pelo mistério pascal do Seu Filho Jesus. Pelo Espírito Santo, nasce Jesus, nasce a Igreja. É verdadeira intercessora, mesmo onde Jesus a coloca no silêncio como nas Bodas de Caná: Mulher, que temos nós a ver com isso? Ainda não chegou a Minha hora. No entanto, Maria prossegue: Fazei o que Ele vos disser. É um papel que continua a desempenhar.
       A Igreja é, com Maria, sobretudo feminina, custodia a vida biológica e a vida espiritual. Mas a Igreja é também uma realidade sociológica, que se rege com regras e estrutura e daí a necessidade da dimensão masculina, o ministério petrino. Como Cristo encarnou, por Maria, também a Igreja tem que encarnar no tempo e na história.
       Outro aspeto importante, que ambos os autores sublinham, é a necessidade de não descurar as devoções populares que traduzem uma grande sensibilidade. A esse propósito, o então Cardeal Ratzinger sublinhava como os teólogos da libertação deram um contributo decisivo nomeadamente partindo do Magnificat, pelo qual se mostra a exaltação dos humildes e o derrube dos poderosos.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Cardeal Ratzinger - Homilia no funeral de João Paulo II

Praça de São Pedro, 8 de Abril de 2005
"Segue-me", diz o Senhor ressuscitado a Pedro, como sua última palavra a este discípulo, escolhido para apascentar as suas ovelhas. "Segue-me" esta palavra lapidária de Cristo pode ser considerada a chave para compreender a mensagem que vem da vida do nosso saudoso e amado Papa João Paulo II, cujos despojos mortais hoje depomos na terra como semente de imortalidade o coração cheio de tristeza, mas também de jubilosa esperança e profunda gratidão.

São estes os sentimentos do nosso ânimo, Irmãos e Irmãs em Cristo, presentes na Praça de São Pedro, nas estradas adjacentes e em diversos outros lugares da cidade de Roma, povoada nestes dias por uma imensa multidão silenciosa e orante. A todos saúdo cordialmente. Também em nome do Colégio dos Cardeais, desejo dirigir a minha deferente saudação aos Chefes de Estado, de Governo e às Delegações dos vários Países. Saúdo as Autoridades e os Representantes das Igrejas e Comunidades cristãs, assim como das diversas religiões. Saúdo depois os Arcebispos, os Bispos, os sacerdotes, os religiosos, as religiosas e todos os fiéis que vieram dos cinco Continentes; de modo especial os jovens, que João Paulo II gostava de definir futuro e esperança da Igreja. A minha saudação alcança também aqueles que, em todo o mundo, estão unidos a nós através da rádio e da televisão nesta coral participação no solene rito de despedida do amado Pontífice.
"Segue-me" quando era jovem estudante Karol Wojtyla entusiasmava-se com a leitura, o teatro, a poesia. Trabalhando numa fábrica química, circundado e ameaçado pelo terror nazista, ouviu a voz do Senhor: "Segue-me"! Neste contexto muito particular começou a ler livros de filosofia e de teologia, entrando depois no Seminário clandestino criado pelo Cardeal Sapieha e, depois da guerra, pôde completar os seus estudos na faculdade teológica da Universidade Jagelónica de Cracóvia. Muitas vezes nas suas cartas aos sacerdotes e nos seus livros autobiográficos falou-nos do seu sacerdócio, para o qual foi ordenado a 1 de Novembro de 1946. Nestes textos interpreta o seu sacerdócio particular a partir de três palavras do Senhor. Em primeiro lugar, esta: "Não fostes vós que me escolhestes; fui eu que vos escolhi a vós e vos destinei a ir e dar fruto, e fruto que permaneça" (Jo 15, 16). A segunda palavra é: "O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas" (Jo 10, 11). E finalmente: "Assim como o Pai me tem amor, assim eu vos amo a vós. Permanecei no amor" (Jo 15, 9). Vemos nestas três frases toda a alma do nosso Santo Padre. Ele foi real e incansavelmente a todas as partes para levar fruto, um fruto que permanece. "Levantai-vos, vamos!", é o título do seu penúltimo livro. "Levantai-vos, vamos!" com estas palavras despertou-nos de uma fé cansada, do sono dos discípulos de ontem e de hoje. "Levantai-vos, vamos!" diz-nos também hoje a nós. O Santo Padre depois foi sacerdote até ao fim, porque ofereceu a sua vida a Deus pelas suas ovelhas e por toda a família humana, numa doação quotidiana ao serviço da Igreja e sobretudo nas difíceis provas dos últimos meses. Assim tornou-se uma só coisa com Cristo, o bom pastor que ama as suas ovelhas. E por fim, "permanecei no meu amor": o Papa que procurou o encontro com todos, que teve uma capacidade de perdão e de abertura do coração a todos, diz-nos, também hoje, com estas palavras do Senhor: Habitando no amor de Cristo aprendemos, na escola de Cristo, a arte do verdadeiro amor.

"Segue-me"! Em Julho de 1958 começa para o jovem Karol Wojtila uma nova etapa no caminho com o Senhor e no seu seguimento. Karol foi, como de costume, com um grupo de jovens apaixonados de canoa aos lagos Masuri para umas férias a transcorrer juntos. Mas levava consigo uma carta que o convidava a apresentar-se ao Primaz da Polónia, Cardeal Wyszynski e podia adivinhar a finalidade do encontro: a sua nomeação para Bispo Auxiliar de Cracóvia. Deixar o ensino académico, deixar esta estimulante comunhão com os jovens, deixar a grande arena intelectual para conhecer e interpretar o mistério da criatura homem, para tornar presente no mundo de hoje a interpretação crista do nosso ser tudo isto lhe devia parecer um perder-se a si mesmo, perder precisamente quanto se tinha tornado a identidade humana deste jovem sacerdote. "Segue-me" Karol Wojtyla aceitou, sentindo na chamada da Igreja a voz de Cristo. E depois deu-se conta de quanto é verdadeira a palavra do Senhor: "Quem procurar salvar a vida há-de perdê-la; e quem a perder, há-de conservá-la" (Lc 17, 33). O nosso Papa todos nós o sabemos nunca quis salvar a própria vida, tê-la para si; quis oferecer-se a si mesmo sem limites, até ao último momento, por Cristo e também por nós. Precisamente desta forma pôde experimentar como tudo o que confiara nas mãos do Senhor voltou de novo: o amor à palavra, à poesia, às letras foi uma parte essencial da sua missão pastoral e deu renovado vigor, renovada actualidade, renovada atracção ao anúncio deste sinal de contradição.
"Segue-me"! Em Outubro de 1978 o Cardeal Wojtyla ouviu de novo a voz do Senhor. Renova-se o diálogo com Pedro narrado no Evangelho desta celebração: "Simão, Filho de João, tu amas-Me? Apascenta as minhas ovelhas!". À pergunta do Senhor: Karol, tu amas-Me?, o Arcebispo de Cracóvia respondeu do fundo do seu coração: "Senhor, tu sabes tudo, sabes que te amo". O amor de Cristo foi a força dominante do nosso amado Santo Padre; quem o viu rezar, quem o ouviu pregar, bem o sabe. E assim, graças a este profundo enraizamento em Cristo pôde carregar um peso, que vai além das forças meramente humanas: ser pastor do rebanho de Cristo, da sua Igreja universal. Este não é o momento para falar de cada um dos conteúdos deste Pontificado tão rico. Gostaria apenas de ler dois trechos da liturgia de hoje, nos quais se encontram elementos centrais do seu anúncio. Na primeira leitura São Pedro e o Papa com São Pedro diz-nos: "Reconheço, na verdade, que Deus não faz acepção de pessoas, mas que, em qualquer povo, quem o teme e põe em prática a justiça, lhe é agradável. Enviou a sua palavra aos filhos de Israel, anunciando-lhes a Boa-Nova da paz, por Jesus Cristo, Ele que é Senhor de todos" (Act 10, 34-36). E, na segunda leitura, São Paulo e com São Paulo o nosso Papa defunto exorta-nos em voz alta: "Meus caríssimos e saudosos irmãos, minha coroa e alegria, permanecei assim firmes no Senhor, caríssimos" (Fl 4, 1).
 "Segue-me"! Juntamente com o mandato de apascentar o seu rebanho, Cristo anunciou a Pedro o seu martírio. Com esta palavra conclusiva e recapitulativa do diálogo sobre o amor e sobre o mandato de pastor universal, o Senhor recorda outro diálogo, tido no contexto da última ceia. Nele, Jesus dissera: "Para onde Eu vou, vós não podeis ir". Disse Pedro: "Senhor, para onde vais?". Jesus respondeu-lhe: "Não podes seguir-me agora aonde eu vou; mas me seguirás mais tarde" (Jo 13, 33.36). Jesus, da ceia vai para a cruz, para a ressurreição entra no mistério pascal; Pedro ainda não o pode seguir. Agora depois da ressurreição chegou este momento, este "mais tarde". Apascentando o rebanho de Cristo, Pedro entra no mistério pascal, encaminha-se para a cruz e para a ressurreição. O Senhor diz isto com as seguintes palavras, "... quando eras mais novo... ias onde querias, mas quando fores velho, estenderás as mãos e outro há-de atar o cinto e levar-te para onde não queres" (Jo 21, 18). No primeiro período do seu pontificado o Santo Padre, ainda jovem e cheio de forças, sob a guia de Cristo ia até aos confins do mundo. Mas depois, entrou cada vez mais na comunhão dos sofrimentos de Cristo, compreendeu cada vez mais a verdade das palavras: "Outro há-de atar o cinto...". E precisamente nesta comunhão com o Senhor sofredor anunciou incansavelmente e com renovada intensidade o Evangelho, o mistério do amor que vai até ao fim (cf. Jo 13, 1).

Ele interpretou para nós o mistério pascal como mistério da divina misericórdia. Escreveu no seu último livro: o limite imposto ao mal "é definitivamente a divina misericórdia" (Memória e identidade, pág. 70). E reflectindo sobre o atentado diz, "Cristo, ao sofrer por todos nós, conferiu um novo sentido ao sofrimento; introduziu aquele amor numa nova dimensão, numa nova ordem... E o sofrimento que queima e consome o mal com o fogo do amor e haure também do pecado um florescimento de bem" (pág. 199). Animado por esta visão, o Papa sofreu e amou em comunhão com Cristo e foi por isso que a mensagem do seu sofrimento e do seu silêncio foi tão eloquente e fecundo.
Divina Misericórdia: o Santo Padre encontrou um reflexo mais puro da misericórdia de Deus na Mãe de Deus. Ele, que ainda em tenra idade perdeu a mãe, amou muito mais a Mãe divina. Ouviu as palavras do Senhor crucificado como se fossem ditas precisamente a ele: "Eis a tua mãe!". E fez como o discípulo predilecto: acolheu-a no íntimo do seu ser, Totus tuus. E da mãe aprendeu a conformar-se com Cristo.
Para todos nós permanece inesquecível como neste último domingo de Páscoa da sua vida, o Santo Padre, marcado pelo sofrimento, se mostrou mais uma vez da janela do Palácio Apostólico e pela última vez deu a bênção "Urbi et Orbi". Podemos ter a certeza de que o nosso amado Papa agora está na janela da casa do Pai, vê-nos e abençoa-nos. Sim, abençoe-nos, Santo Padre. Nós confiamos a tua amada alma à Mãe de Deus, tua Mãe, que te guiou todos os dias e te guiará agora à glória eterna do Seu Filho, Jesus Cristo nosso Senhor. Amen.

Cardeal Joseph Ratzinger

sexta-feira, 28 de março de 2014

Cardeal Gerhard Müller - A verdade leva-nos aos pobres

       "A Igreja, como comunhão dos fiéis, serve a humanidade com a Palavra de Deus, com a realização sacramental da sua salvação vivificante e a prova do ser-para-o-outro de Cristo, no serviço aos pobres, aos desamparados e à generalidade dos que foram defraudados na sua dignidade e justiça...
       A Igreja e, portanto, toda a comunidade cristã e cada cristão individualmente, a partir da fé, deve assumir responsabilidade pela sociedade humana como um todo, nos campos do mundo do trabalho, da economia internacional, da justiça social e individual, da paz no mundo" (p. 47).
       O Teólogo profissional, como perito em religião, não se contrapõe aos fiéis ou não especialistas. Ele entende-se, tal como todos os discípulos, como ouvinte e aprendiz diante do único Mestre e Palavra de Deus, isto é, Cristo. Desse modo, ele penetra no contexto da experiência da fé e da religiosidade da vida do povo, ou seja, da comunidade daqueles que professam a fé em Jesus Cristo e ousam percorrer o caminho do seu seguimento na existência - para os outros. Participa dos seus sofrimentos e das suas esperanças. Desse modo, Teologia da Libertação, no melhor sentido da palavra, é teologia contextual, amadurecida a partir da comunidade (p. 51)

       "A opção pelos pobres não exclui os ricos. De facto, também eles são meta do agir libertador de Deus, dado que são libertados da ansiedade ma qual julgam dever aproveitar a vida somente à custa dos outros. O agir libertador de Deus em relação a pobres e ricos visa a subjetivação do ser humano e, portanto, a sua liberdade perante toda a forma de opressão e de dependência" (p 56).

       "Como se pode falar de Deus, de Cristo, do Espírito Santo, da Igreja, dos sacramentos, da graça e da vida eterna perante a miséria, a exploração e a opressão do sr humano, no terceiro mundo, quando compreendemos o ser humano como uma criatura que é feita à imagem e semelhança de Deus, pela qual Cristo morreu, a fim de que ela, em todos os âmbitos da vida, experimentasse Deus como salvação e vida?... Deus é o Deus da vida e da salvação, na medida em que oferece e realiza a salvação e a vida no interior do único mundo criatural, social e histórico do ser humano, na unidade espiritual-corporal do ser humano" (p 105).

       "A experiência da exploração e a análise das suas circunstâncias históricas e sociais devem ser agora interpretadas à luz da revelação. Os testemunhos bíblicos mostram-nos Deus como o criador que escolhe a história enquanto lugar do seu agir libertador. A sua ação redentora liberta o ser humano não da história, mas para a história, como campo da efetivação das condições materiais adequadas ao ser humano para a sua realização como pessoa espiritual...
       A salvação não jaz simplesmente na interioridade da alma, que não seria atingida pelos chicotes egípcios. Aos israelitas oprimidos, também nãos e promete simplesmente um além-túmulo melhor, pensado objetivamente. Pelo contrário, a salvação acontece no agir libertador real de Deus, na retirada da escravidão... (p. 120).

       "A prática da verdade leva-nos para o lado dos pobres" p 204.

João Paulo II:
       "A fome de pão deve desaparecer, mas a fome de Deus permanecerá" p 53)
       "Que a fome de Deus permaneça e a fome de pão desapareça" p 154

in GUSTAVO GUTIÉRREZ e GERHARD LUDWIG MÜLLER. Ao lado dos Pobres.

Gustavo Gutiérrez - Onde dormirão os pobres?

       "A teologia é um falar de Deus à luz da fé. O discurso acerca do que Ele é e o que Ele é para nós representa o único tema da teologia. Devemos aproximar-nos do mistério de Deus com temor e humildade" (p 30).

       "A teologia afunda sempre as suas raízes na densidade histórica do presente da fé...
       Com efeito, o futuro não chega, constrói-se; fazemo-lo com as nossas mãos e as nossas esperanças, os nossos fracassos e projetos, a nossa obstinação e a nossa sensibilidade ao novo (p 72-73)
Onde dormirão os pobres?
(texto publicado em 1996 e inserido no livro "Ao lado dos pobres", pp 135-198)

       "A fé é graça. Acolher esse dom é colocar-se atrás das pegadas de Jesus, pondo em prática os seus ensinamentos e continuando a sua proclamação do Reino. No ponto de partida de toda a teologia está o ato de fé. Pensar a fé é algo que surge espontaneamente no crente, na reflexão motivada pela vontade de tornar mais profunda e mais fiel a sua vida de fé. Esta, porém, não é assunto puramente individual: a fé é vivida sempre em comunidade. Ambas as dimensões - a pessoal e a comunitária . marcam quer a vivência da fé quer a inteligência dela.
       A tarefa teológica é uma vocação que surge e é exercida no seio da comunidade eclesial. Ela está ao serviço da missão evangelizadora da Igreja. Essa localização e essa finalidade dão-lhe o seu sentido e esboçam os seus alcances. A teologia é falar acerca de Deus animado pela fé. Deus é, na verdade, o primeiro e último tema da linguagem teológica... a abordagem teológica é sempre insuficiente... Evangelizar é anunciar com obras e palavras a salvação de Cristo... libertação do pecado vai ao próprio coração da existência humana, lá onde a liberdade de cada um aceita ou rejeita - em última instância - o amor gratuito e redentor de Deus, nada escapa à ação salvífica de Jesus Cristo. Esta alcança todas as dimensões humanas, pessoais e sociais, e nelas deixa a sua marcas.
       As teologias trazem, necessariamente, a marco do tempo e do contexto eclesial em que nascem" (pp 137-139).

       "Desde os sues começos, a Teologia da Libertação, que nasceu de uma intensa preocupação pastoral, esteve ligada à vida da Igreja, aos seus documentos, à sua celebração comunitária, à sua inquietude evangelizadora e ao seu compromisso libertador com a sociedade latino-americana, particularmente com os mais pobres dos seus membros. As conferências episcopais latino-americanas [CELAM] dessas décadas (Medellín, Puebla, Santo Domingo), numerosos textos de episcopados nacionais e outros documentos referendam esta asseveração, inclusive quando nos convidam a um discernimento crítico diante de afirmações infundadas e de posições que alguns pretendiam deduzir dessa perspetiva teológica...
       A reflexão da Igreja... Parece-me que a sua preocupação fundamental gira em redor da chamada opção preferencial pelo pobre. Ela organiza, aprofunda e, eventualmente, corrige muitos compromissos assumidos nestes anos, bem como as reflexões teológicas a eles vinculados. A opção pelo pobre é radicalmente evangélica, constitui, portanto, um critério importante para operar uma filtragem nos precipitados acontecimentos e nas correntes de pensamento dos nossos dia" (p 141).

       "O nosso é o único continente, maioritária e simultaneamente, pobre e cristão... três aceções do termo pobre: a) a pobreza real (chamada frequentemente de pobreza material), como estado escandaloso, não desejado por Deus; b) pobreza espiritual, como infância espiritual, que tem como uma das suas expressões, - não a única - o desprendimento perante os bens deste mundo; c) a pobreza como compromisso: solidariedade com o pobre e protesto contra a pobreza. (p 142)

       "Na raiz dessa opção está a gratuidade do amor de Deus. Esse é o fundamento último da preferência.
       O próprio termo «preferência» rejeita toda a exclusividade e procura ressalvar os que sevem ser os primeiros - não os únicos - na nossa solidariedade... universalidade do amor de Deus e a sua predileção pelos últimos da história.
       ... a opção pelo pobre é... uma opção pelo Deus do Reino anunciado por Jesus... esse compromisso baseia-se fundamentalmente na fé do Deus de Jesus Cristo. É uma opção teocêntrica e profética, que ficam as suas raízes na gratuidade do amor de Deus e é requerida por ela....
       O pobre deve ser preferido não porque seja necessariamente melhor do que outros, a partir do ponto de vista moral ou religioso, mas porque Deus é Deus. Toda a Bíblia está marcada pelo amor de predileção de Deus pelos fracos e maltratados da história humana" (p 143-144).

       "A economia moderna desafia as normas morais admitidas comummente, e não somente nos círculos que podemos chamar de tradicionais. A inveja, o egoísmo, a cobiça converteram-se em motores da economia; a solidariedade, a preocupação com os pobres são vistas, em contrapartida, como travões ao crescimento económico e são, finalmente, contraproducentes para alcançar uma situação de bem-estar de que todos possam, um dia beneficiar" (p 153)

       "As nações pobres jazem ao lado das nações ricas, ignoradas por estas; no entanto, é preciso acrescentar que o fosso entre ambas é cada vez maior. O mesmo acontece no interior de cada país. A população mundial coloca-se de modo crescente nos dois extremos do espetro económico e social.
       Por outro lado, e de forma surpreendente, no texto lucano (isto é, no Evangelho de São Lucas) o pobre tem um nome: Lázaro; o rico, o poderoso, pelo contrário, não tem. A situação atual é inversa: os pobres são anónimos e parecem fadados a um anonimato ainda maior, pois nascem e morrem sem se fazer notar. Peças descartáveis numa história que se lhes escapa das mãos e os exclui" (p 158).

       "... os pobres, insignificantes e excluídos, não são pessoas passivas, à espera de que alguém lhes estenda a mão. Não têm apenas carências; nelas fervilham muitas possibilidades e riquezas humanas. O pobre e o marginalizado da América Latina é, muitas vezes, possuidor de uma cultura com valores próprios e eloquentes, que vem da sua raça, da sua história, da sua língua. Tem energias como as demonstradas pelas organizações de mulheres, em todo o continente, em luta pela vida da sua família e do povo pobre, com uma imaginação e força criadora impressionantes para enfrentar crises.
       Para a grande parte dos pobres da América Latina, a fé cristã desempenhou um papel decisivo nessa atitude; foi fonte de inspiração e razão poderosa para se negar a perder a esperança no futuro" (p 164).

       "Os pobres viram-se, muitas vezes, manipulados por projetos que se pretendem globais, sem consideração pelas pessoas e pela sua vida quotidina, e que, devido à tensa orientação ao futuro, se esquecem do presente. No entanto, o pensamento pós-moderno não se limita a isso: solapa também todo o sentido da história, e isso repercurte-se sobre o significado a ser conferido a acada exstência humana...
       ... Numa perspetiva cristã, a história tem o seu centro na vinda do Filho, na Encarnação, sem que isso queira signifciar que a história human avança ineludivelmente seguindo os sulcos traçados e dominados por um férreo pensamento regente. Jesus Cristo, como centro da história, é igualmente Caminho (cf. Jo 14, 5) para o Pai, movimento que dá sentido à existência humana a que todos estamos chamados. Essa vocação confere plena densidade ao presente, ao hoje... (pp 170-171).

       "... a razão última do compromisso com os pobres não reside nas suas qualidades morais ou religiosas - posto que elas existem -, mas na bondade de Deus, que deve inspirar a nossa própria conduta" (p 181).

       "O diálogo implica interlocutores conscientes da sua própria identidade. A fé cristã e a teologia não podem renunciar às suas fontes e à sua personalidade para entrar em contacto com outros pontos de vista. Ter convicções firmes não é obstáculo ao diálogo; é, antes, uma condição necessária. Acolher não por mérito próprio, mas por graça de Deus, a verdade de Jesus Cristo nas nossas vidas não somente não invalida o nosso trato com pessoas de outras persptetivas, as confere-lhes o seu autêntico sentido. Perante a perar de referências que alguns parecem viver, é importante recordar que a identidade humilde e aberta, é um componente essencial de uma espiritualidade...
       ...a capacidade de ouvir os outros é tanto maior quanto mais firme for a nossa convicção e mais transparente a nossa identidade cristã" (pp 186-187)

       "Devo confessar que estou menos preocupado pelo interesse ou pela sobrevivência da Teologia da Libertação do que pelos sofrimentos e pelas esperanças do povo a que pertenço, e especialmente pela comunciação da experiência e da mensagem de salvação de Jesus Cristo. Esta última é a matéria da nossa caridade e da nossa fé. Uma teologia, por mais relevante que seja o seu papel, não passa de um meio para o aprofundamento nesse amor e nessa fé. Por essa razão, trata-se, efetivamente, de proclamar a esperança ao mundo no momento que vivemos como Igreja" (p 198).

in GUSTAVO GUTIÉRREZ e GERHARD LUDWIG MÜLLER. Ao lado dos Pobres.