Mostrar mensagens com a etiqueta São Francisco de Assis. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta São Francisco de Assis. Mostrar todas as mensagens

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

São Francisco de Assis

       1 – São Francisco de Assis não foi sacerdote mas é incontornavelmente sacerdote, porque na sua santidade nos mostra Deus e leva até a Deus a humanidade inteira.
       Em 1209, São Francisco, com alguns companheiros, apresentou-se diante do Papa Inocêncio III, que aprovou oralmente a primeira Regra: procurar viver o Evangelho, a divisa que se manteve ao longo da história dos franciscanos.
       2 – É, sem dúvida, uma das figuras maiores do cristianismo. Nasceu em Assis, na Úmbria, no centro de Itália, no dia 26 de setembro de 1181 (ou 1182). Filho de Pietro Bernardone, rico comerciante de tecidos, e de Pica Bernardone, que pertencia a uma família nobre de Provença, recebeu o nome de João, pelo Batismo, mas pouco depois o pai mudou-lho para Francisco (francês). Tinha vários irmãos. Estudou mas com pouca dedicação. Os negócios não lhe despertaram muito interesse e parece que era pejado de atenções dos pais, permitindo-lhe fazer tudo o que quisesse.
       Tornou-se um verdadeiro rei da boémia. Jovem, audaz, rico, simpático, alegre, bem educado, era benquisto pela alta sociedade. Com 20 anos de idade, juntamente com outros conterrâneos, foi lutar contra os jovens de Perugia, onde ficaria em prisão por mais de um ano.
       Entretanto abraçou a carreira militar. Foi para a guerra como cavaleiro. Na noite anterior teve um sonho em que se via num grande salão, com várias armaduras com a insígnias da cruz, ouvindo uma voz: “Estas são para ti e para os teus soldados”. Quanto se dirigia para Apúlia, caiu em Espoleto. Terá tido outro sonho no qual uma voz lhe disse para voltar a Assis. Passou por um período de incerteza.
       Em 1208, numa Missa na capela de Santa Maria dos Anjos, escutou o Evangelho que dizia que os discípulos de Jesus Cristo não deveriam possuir nem ouro nem prata, nem duas túnicas, nem calçado nem bastão. Entendeu que as palavras lhe eram dirigidas. Encontra a sua vocação. Despoja-se de tudo o que tem e passa a trajar uma túnica de lã, áspera, com uma corda atada à cintura, como os camponeses mais pobres, e começa a exortar à penitência, ao amor fraterno e à paz.
       Outros seguem o seu exemplo, deixam a riqueza e acompanham-no. Entretanto reparou a Igreja de São Nicolau e para saber a vontade de Deus, abriu três vezes a Bíblia, à sorte, encontrando passagens em que Jesus dizia aos seus discípulos para deixarem tudo e segui-lo. “Esta será a nossa regra de vida”, exclamou Francisco. Com os companheiros, saiu para a praça e entregou todos os bens que tinha aos pobres.

       3 – O número de companheiros chegou a 11 e Francisco achou por bem escrever uma “Regra”. Seguiram para Roma a fim de obterem a aprovação por parte do Papa.
       Entretanto, o Papa Inocêncio III, numa noite do ano de 1209, teve um sonho em que via a Basílica de São João de Latrão a oscilar, com rachas e a desmoronar-se. Apareceu um mendigo que segurou o edifício e este voltou à solidez original. Quando uns dias mais tarde Francisco estava à sua frente, o papa lembrou-se do sonho, reconheceu nele o mendigo e aprovou a “Regra”: “Eis aqui o homem destinado por Deus para escorar e reparar a Igreja”.
       Por volta de 1211, fixaram-se em Assis. Os beneditinos cederam-lhes a Igreja de Santa Maria dos Anjos. O convento franciscano foi construído, tornando-se a sede dos franciscanos, de onde eram enviados a pregar, por toda a parte.

       4 – Em 1212, dá-se o encontro com aquela que viria a ser chamada de Irmã de São Francisco, Santa Clara de Assis. Tocada pela pregação do santo, esta jovem rica de Assis, procurou-o e pediu-lhe que a deixasse seguir esta nova forma de vida. Tinha 18 anos. Permaneceu durante algum tempo com as monjas beneditinas, mas logo o santo arranjou um lugar, para Clara, para Santa Inês, sua irmã, e para outras virgens piedosas. A casa reconstruída por São Francisco, doada pelos beneditinos, serviu de mosteiro à Segunda Ordem Franciscana das Damas Pobres, atualmente Clarissas Pobres.

       5 – Em 1214, viaja, numa segunda tentativa para evangelizar os “sarracenos”, para Marrocos, mas atacado por forte doença em Espanha, regressou a Itália.
       Em maio de 1217 reuniu o primeiro capítulo geral dos Frades Menores, enviando os companheiros para Toscânia, Provença, Lombardia, Espanha e Alemanha, deixando a França para si, mas em seu lugar acabou por ir o irmão Pacífico.
       Por insistência do cardeal Ugolino, foi a Roma, durante os anos de 1217 e 1218, pregando diante do Papa e dos cardeais. É por essa altura que se dá o encontro com São Domingos. Dedicou-se a viagens por Itália, mas com a preocupação de missionar os “infiéis”, o que veio também a acontecer.
       No verão de 1224, com os companheiros, jejua durante quarenta dias, a preparar a festa de São Miguel. É durante este tempo de retiro, na festa da exaltação da Santa Cruz, que teve a visão do Serafim repleto de luz, cuja sequela foi o aparecimento das 5 chagas de Jesus Cristo.
       No princípio do outono de 1226, sentiu próxima a morte. Pediu que lhe lessem a Paixão de Jesus segundo o Evangelho de São João, despojando-se das suas roupas e vestindo umas emprestadas, para morrer sem nada seu.
       Morreu no dia 3 de outubro de 1226, com 45 anos de idade. Foi canonizado em 16 de julho de 1228, pelo Papa Gregório IX.

sábado, 11 de agosto de 2018

Santa Clara, Virgem

Nota biográfica:
       Nasceu em Assis no ano 1193. Imitando o exemplo do seu concidadão Francisco, seguiu o caminho da pobreza e fundou a Ordem monástica (Clarissas). A sua vida foi de grande austeridade, mas rica em obras de caridade e de piedade.
        Em 1212, dá-se o encontro São Francisco de Assis. Tocada pela pregação do santo, esta jovem rica de Assis, procurou-o e pediu-lhe que a deixasse seguir esta nova forma de vida. Tinha 18 anos. Permaneceu durante algum tempo com as monjas beneditinas, mas logo o santo arranjou um lugar, para Clara, para Santa Inês, sua irmã, e para outras virgens piedosas. A casa reconstruída por São Francisco, doada pelos beneditinos, serviu de mosteiro à Segunda Ordem Franciscana das Damas Pobres, atualmente Clarissas Pobres.
       Morreu em 1253.

Oração (de Coleta):
       Senhor, que na vossa infinita misericórdia inspirastes a Santa Clara um profundo amor à pobreza evangélica, concedei, por sua intercessão, que seguindo a Cristo na pobreza espiritual, mereçamos um dia contemplar Vos no reino dos Céus. Por Nosso Senhor.
Imita a pobreza, a humildade e a caridade de Cristo
(Da Carta de Santa Clara, virgem, à Beata Inês de Praga)
       Feliz de quem pode gozar as delícias do sagrado banquete e unir-se intimamente ao coração de Cristo, cuja beleza os Anjos admiram sem cessar, cujo afecto atrai os corações, cuja contemplação nos reconforta, cuja benignidade nos sacia, cuja suavidade enche a alma, cuja lembrança nos inunda de luz suave, cuja fragrância ressuscita os mortos, cuja visão gloriosa constitui a felicidade de todos os habitantes da Jerusalém celeste. Ele é o esplendor da luz eterna, o espelho puríssimo da acção divina. Olha continuamente para este espelho, rainha e esposa de Cristo; contempla nele o teu rosto e procura adornar te interior e exteriormente com as mais variadas flores das virtudes e com as vestes formosas que convêm à filha e à esposa castíssima do Rei dos reis.
       Neste espelho se reflecte esplendidamente a ditosa pobreza, a santa humildade e a inefável caridade, como podes observar, com a graça de Deus, em todas as suas partes. Ao começo do espelho, repara na pobreza d’Aquele que foi colocado no presépio e envolvido em panos. Oh admirável humildade, oh espantosa pobreza! O Rei dos Anjos, o Senhor do céu e da terra deitado num presépio! No centro do espelho, observa como a humildade, ou a santa pobreza, suporta tantos trabalhos e tormentos para remir o género humano. E no fim do espelho, contempla a caridade inefável que O levou à cruz e à morte mais infamante.
       Por isso o próprio espelho, suspenso na cruz, exortava os transeuntes a considerar estas coisas, dizendo: Ó vós todos que passais pelo caminho, olhai e vede se há dor semelhante à minha dor.
       Respondamos nós aos seus clamores e gemidos, com uma só alma e um só coração: A minha alma sempre o recorda e desfalece de tristeza dentro de mim. Abrasa-te cada vez mais neste amor, ó rainha do Rei celeste.
       Contempla ao mesmo tempo as delícias inefáveis do Rei dos Céus e as suas riquezas e honras perpétuas e, suspirando de amor ardente, proclama no íntimo do teu coração: Leva-me contigo; correrei seguindo o aroma dos teus perfumes, ó Esposo celeste. Correrei sem desfalecer, até que me introduzas na sala do festim, até que na tua mão esquerda descanse a minha cabeça e a tua direita me abrace com terno amor.
       No meio destas piedosas contemplações, lembra te desta pobrezinha, tua mãe, sabendo que te levo inseparavelmente gravada no meu coração como filha predilecta.
Veja o vídeo que se segue sobre Santa Clara de Assis:

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Santo António de Lisboa, presbítero e doutor da Igreja

       Fernando Martins de Bulhões, nome de batismo, filho de Martinho de Bulhões, descendente de cavaleiros celtas, e de Maria Teresa Taveira, fidalga, descende de Fruelas, rei das Astúrias, terá nascido em 1195, em Lisboa.
        Os primeiros anos foram no aconchego da família, mostrando desde muito cedo uma especial devoção por Nossa Senhora, crescendo em bondade e integridade de costumes.
       Fez os seus primeiros estudos na escola anexa à Sé Catedral de Lisboa. Com 15 anos ingressou nos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, no Mosteiro de São Vicente de Fora, de Lisboa, transferindo-se, dois/três anos depois para a casa-mãe, para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Aí fez estudos em Direito Canónico, Filosofia e Teologia.
       Terá sido ordenado sacerdote entre os anos 1218 e 1220.
        Seduzido pelo exemplo de vida dos primeiros frades franciscanos, que iam muitas vezes ao Mosteiro de Santa Cruz pedir esmola, ingressou, passado um ano da sua ordenação sacerdotal, no convento de Santo António dos Olivais, em Coimbra.
       Ainda durante o ano de 1220, é enviado para Marrocos, onde nunca chegou, pois a embarcação naufragou e deixou-o em Messina, nas costas da Secília. Aí pediu guarida num convento franciscano.
       Em Maio de 1221 foi a Assis, onde terá conhecido São Francisco de Assis.
       Em Bolonha, depois de ter sido escolhido para fazer a conferência espiritual, aos monges que iriam ser ordenados, evidencia os seus conhecimentos em Sagrada Escritura e dotes em oratória. A partir daqui passa a dedicar-se inteiramente ao apostolado. Percorreu diversas cidades de Itália, entre 1223 e 1225. Em Rimini encontra forte resistência à evangelização. Conta-se, que nessa altura, foi à costa do Adriático e começou a pregar aos peixes: “Ouvi a palavra de Deus, vós peixes do mar e do rio, já que a não querem escutar os infiéis herejes”. Os peixes acudiram em grande quantidade, deitando a cabeça de fora. Muitas teriam sido as conversões.
       Em Outubro de 1226 morreu o fundador da Ordem, Francisco de Assis, sendo canonizado em 1228. Santo António participou nesta elevação, deslocando-se depois por Ferrara, Bolonha e Florença. Em 1229, e depois de ter percorrido a Itália vai para Pádua… 
       Morreu a 13 de Junho de 1231, cansado e doente, depois de uma vida dedicada à pregação do Evangelho. Conta-se que logo que morreu, as crianças de Pádua correram por toda a cidade a gritar: “Morreu o Santo. Morreu Santo António”. Os seus restos mortais repousam na Basílica de Pádua, construída em sua memória.
       Menos de um ano depois, em 30 de Maio de 1232, foi canonizado pelo Papa Gregório IX, na catedral de Espoleto, em Itália. O Papa Pio XII, em 1946, proclamou-o “doutor da Igreja”, considerando-o “exímio teólogo e insigne mestre em matérias de ascética e mística”.

In Boletim Voz Jovem, Junho 2010.

Oração de coleta:
       Deus eterno e todo-poderoso, que em Santo António destes ao vosso povo um pregador insigne do Evangelho e um poderoso intercessor junto de Vós, concedei que, pelo seu auxílio, sigamos fielmente os ensinamentos da vida cristã e mereçamos a vossa protecção em todas as adversidades. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
 Dos Sermões de Santo António de Lisboa
(I, 226) (Sec. XIII)

A linguagem é viva, quando falam as obras

Quem está cheio do Espírito Santo fala várias línguas. As várias línguas são os vários testemunhos sobre Cristo, como a humildade, a pobreza, a paciência e a obediência; falamo-las, quando mostramos aos outros estas virtudes na nossa vida. A linguagem é viva, quando falam as obras. Cessem, portanto, as palavras e falem as obras. De palavras estamos cheios, mas de obras vazios; por este motivo nos amaldiçoa o Senhor, como amaldiçoou a figueira em que não encontrou fruto, mas somente folhas. Diz São Gregório: «Há uma norma para o pregador: que faça aquilo que prega». Em vão pregará os ensinamentos da lei, se destrói a doutrina com as obras.
Mas os Apóstolos falavam conforme a linguagem que o Espírito Santo lhes concedia. Feliz de quem fala conforme o Espírito Santo lhe inspira e não conforme o que lhe parece!
Há alguns que falam movidos pelo próprio espírito e, usando as palavras dos outros, apresentam-nas como próprias, atribuindo-as a si mesmos. Desses e de outros como eles, fala o Senhor pelo profeta Jeremias: Eis-Me contra os profetas que roubam uns aos outros as minhas palavras. Eis-Me contra os profetas, oráculo do Senhor, que forjam a sua linguagem para proferir oráculos. Eis-Me contra os profetas que profetizam sonhos mentirosos – oráculo do Senhor – e, contando-os, seduzem o povo com mentiras e jactância, não os tendo Eu enviado nem dado ordem alguma a esses que não são de nenhuma utilidade para este povo – oráculo do Senhor.
Falemos, por conseguinte, conforme a linguagem que o Espírito Santo nos conceder; e peçamos-lhe, humilde e devotamente, que derrame sobre nós a sua graça, para que possamos celebrar o dia de Pentecostes com a perfeição dos cinco sentidos e a observância do decálogo, nos reanimemos com o forte vento da contrição e nos inflamemos com essas línguas de fogo que são os louvores de Deus, a fim de que, inflamados e iluminados nos esplendores da santidade, mereçamos ver a Deus trino e uno.

sábado, 15 de julho de 2017

São Boaventura, Bispo e doutor da Igreja

Nota biográfica:
       Nasceu aproximadamente no ano 1218 em Bagnoregio, na Etrúria; estudou filosofia e teologia em Paris e a seguir ensinou as mesmas disciplinas, com grande aproveitamento, aos seus irmãos da Ordem dos Frades Menores. Foi eleito Ministro Geral da sua Ordem, cargo que exerceu com prudência e sabedoria. Foi nomeado cardeal bispo de Albano e morreu em Lião no ano 1274. Escreveu muitas obras filosóficas e teológicas.

Oração (de colecta):
       Concedei-nos, Deus todo-poderoso, que, celebrando hoje a memória de São Boaventura, aproveitemos a riqueza dos seus ensinamentos e imitemos a sua ardente caridade. Por Nosso Senhor...

A MAIOR DAS CAPACIDADES: AMAR

       «Certa vez, Frei Egídio (um dos companheiros mais queridos de S. Francisco), homem muito simples e piedoso, falou assim ao Ministro General, Frei Boaventura (+ 1274), um dos maiores teólogos da Igreja.
       - Meu Pai, Deus deu-lhe muitos dotes. Eu, pessoalmente, não recebi grandes talentos. O que devemos nós, ignorantes e tolos, fazer para sermos salvos?
       O douto e santo Frei Boaventura elucidou-o dizendo:
       - Se Deus não desse ao homem nenhuma outra capacidade senão a de amar, isto lhe bastaria para se salvar.
       - Quer dizer que um ignorante, pode amar a Deus tanto como um sábio?, perguntou Frei Egídio, tentando entender.
       - Mesmo uma velhinha muito ignorante, disse-lhe com ternura o grande teólogo, pode amar mais a Deus do que um professor de Teologia.
       Dando pulos de alegria, Frei Egídio correu para a sacada do convento e começou a gritar:
       - Ó velhinha ignorante e rude, tu que amas a Deus Nosso Senhor, podes amá-l`O mais do que o grande teólogo Frei Boaventura.
       E, comovido, ficou ali, imóvel, durante três horas.»

(Pe. Neylor J. Tonin, em "Histórias de Sabedoria"), in Abrigo dos Sábios.

São Boaventura, bispo: «Itinerário da alma para Deus»

À sabedoria mística revelada pelo Espírito Santo

Cristo é o caminho e a porta. Cristo é a escada e o veículo; o propiciatório colocado sobre a arca de Deus e o sacramento escondido desde os séculos. Quem olha para este propiciatório, de rosto plenamente voltado para ele, contemplando-o suspenso na cruz, com fé, esperança e caridade, com devoção, admiração e alegria, com veneração, louvor e júbilo, realiza com Ele a Páscoa, isto é, a passagem. E assim, por meio da vara da cruz atravessa o Mar Vermelho, saindo do Egipto e entrando no deserto, onde saboreia o maná escondido. Descansa também no túmulo com Cristo, parecendo exteriormente morto, mas sentindo, quanto lhe é possível no estado de viador, aquilo que na cruz foi dito ao ladrão que aderiu a Cristo: Hoje estarás comigo no paraíso.
Nesta passagem, se for perfeita, é necessário que se deixem todas as operações intelectivas e que o ápice mais sublime do amor seja transferido e transformado totalmente em Deus. Isto porém é uma realidade mística e ocultíssima, que ninguém conhece a não ser quem recebe, nem ninguém recebe senão quem deseja, nem deseja senão aquele que é inflamado, até à medula da alma, pelo fogo do Espírito Santo, que Cristo enviou à terra. Por isso diz o Apóstolo que esta sabedoria mística é revelada pelo Espírito Santo.
Se pretendes saber como isto sucede, interroga a graça e não a ciência, a aspiração profunda e não a inteligência, o gemido da oração e não o estudo dos livros, o esposo e não o professor, Deus e não o homem, a nuvem e não a claridade. Não interrogues a luz, mas o fogo que tudo inflama e transfere para Deus, com unção suavíssima e ardentíssimos afectos. Esse fogo é Deus; a sua fornalha está em Jerusalém. Cristo acendeu-o na chama da sua ardentíssima paixão. Só verdadeiramente o recebe quem diz: A minha alma preferia o estrangulamento, e os meus ossos a morte. Quem ama esta morte pode ver a Deus, porque é indubitavelmente verdade que nenhum homem poderá ver-Me e continuar a viver.
Morramos, pois, e entremos nessa nuvem; imponhamos silêncio às preocupações terrenas, paixões e imaginações; passemos, com Cristo crucificado, deste mundo para o Pai, a fim de que, ao manifestar-se-nos o Pai, digamos com o apóstolo Filipe: Isto nos basta; e ouçamos com São Paulo: Basta-te a minha graça; e exultemos com David, exclamando: Desfalece a minha carne e o meu coração: Deus é o meu refúgio e a minha herança para sempre. Bendito seja o Senhor para sempre. E todo o povo diga: Amen. Amen.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Catequese de Bento XVI sobre São Francisco de Assis


Queridos irmãos e irmãs,

Numa catequese recente, já ilustrei o papel providencial que a Ordem dos Frades Menores e a Ordem dos Padres Pregadores, fundadas respectivamente por São Francisco de Assis e por São Domingos de Gusmão, tiveram na renovação da Igreja do seu tempo. Hoje gostaria de vos apresentar a figura de Francisco, um autêntico "gigante" da santidade, que continua a fascinar muitíssimas pessoas de todas as idades e religiões.

"Nasceu no mundo um sol". Com estas palavras, na Divina Comédia (Paraíso, Canto XI), o sumo poeta italiano Dante Alighieri alude ao nascimento de Francisco, ocorrido entre o final de 1181 e o início de 1182, em Assis. Pertencente a uma família rica – o pai era comerciante de tecidos –Francisco transcorreu uma adolescência e uma juventude tranquilas, cultivando os ideais cavalheirescos da época. Com vinte anos participou numa campanha militar, e foi aprisionado. Adoeceu e foi libertado. Depois do regresso a Assis, começou nele um lento processo de conversão espiritual, que o levou a abandonar gradualmente o estilo de vida mundano, que tinha praticado até então. Remontam a esta época os célebres episódios do encontro com o leproso, ao qual Francisco, descendo do cavalo, deu o ósculo da paz, e da mensagem do Crucifixo na pequena Igreja de São Damião. Três vezes Cristo na Cruz se animou, e disse-lhe: "Vai, Francisco, e repara a minha Igreja em ruínas". Este simples acontecimento da palavra do Senhor ouvida na igreja de São Damião esconde um simbolismo profundo. Imediatamente São Francisco é chamado a reparar esta pequena igreja, mas o estado de ruínas deste edifício é símbolo da situação dramática e preocupante da própria Igreja naquele tempo, com uma fé superficial que não forma e não transforma a vida, com um clero pouco zeloso, com o refrear-se do amor; uma destruição interior da Igreja que implica também uma decomposição da unidade, com o nascimento de movimentos heréticos. Contudo, no centro desta Igreja em ruínas está o Crucifixo e fala: chama à renovação, chama Francisco a um trabalho manual para reparar concretamente a pequena igreja de São Damião, símbolo da chamada mais profunda a renovar a própria Igreja de Cristo, com a sua radicalidade de fé e com o seu entusiasmo de amor a Cristo. Este acontecimento, que aconteceu provavelmente em 1205, faz pensar noutro evento semelhante que se verificou em 1207: o sonho do Papa Inocêncio III. Ele vê em sonhos que a Basílica de São João de Latrão, a igreja-mãe de todas as igrejas, está a desabar e um religioso pequeno e insignificante ampara com os seus ombros a igreja para que não caia. É interessante notar, por um lado, que não é o Papa quem dá ajuda para que a igreja não desabe, mas um religioso pequeno e insignificante, que o Papa reconhece em Francisco que o visita. Inocêncio III era um Papa poderoso, de grande cultura teológica, assim como de grande poder político, contudo não é ele quem renova a Igreja, mas um religioso pequeno e insignificante: é São Francisco, chamado por Deus. Por outro lado, é importante observar que São Francisco não renova a Igreja sem ou contra o Papa, mas em comunhão com ele. As duas realidades caminham juntas: o Sucessor de Pedro, os Bispos, a Igreja fundada na sucessão dos Apóstolos e o carisma novo que o Espírito Santo cria neste momento para renovar a Igreja. Ao mesmo tempo, cresce a verdadeira renovação.

Voltemos à vida de São Francisco. Dado que o pai Bernardone lhe reprovava a demasiada generosidade para com os pobres, Francisco, diante do Bispo de Assis, com um gesto simbólico despojou-se das suas roupas, com a intenção de renunciar assim à herança paterna: como no momento da criação, Francisco nada possui, mas só a vida que Deus lhe doou, em cujas mãos ele se entrega. Depois, viveu como um eremita, até quando, em 1208, teve lugar outro acontecimento fundamental no itinerário da sua conversão. Ouvindo um trecho do Evangelho de Mateus – o sermão de Jesus aos Apóstolos enviados em missão – Francisco sentiu-se chamado a viver na pobreza e a dedicar-se à pregação. Outros companheiros se uniram a ele, e em 1209 veio a Roma, para submeter ao Papa Inocêncio III o projecto de uma nova forma de vida cristã. Recebeu um acolhimento paterno daquele grande Pontífice que, iluminado pelo Senhor, intuiu a origem divina do movimento suscitado por Francisco. O Pobrezinho de Assis tinha compreendido que cada carisma doado pelo Espírito Santo deve ser colocado ao serviço do Corpo de Cristo, que é a Igreja; portanto agiu sempre em plena comunhão com a autoridade eclesiástica. Na vida dos santos não há contraste entre carisma profético e carisma de governo e, se surge alguma tensão, eles sabem esperar com paciência os tempos do Espírito Santo.

Na realidade, alguns historiadores no século XIX e também no século passado procuraram criar por detrás do Francisco da tradição, um chamado Francisco histórico, assim como se procura criar por detrás do Jesus dos Evangelhos, um chamado Jesus histórico. Este Francisco histórico não teria sido um homem de Igreja, mas um homem relacionado imediatamente só com Cristo, um homem que queria criar uma renovação do povo de Deus, sem formas canónicas nem hierarquia. A verdade é que São Francisco teve realmente uma relação muito imediata com Jesus e com a palavra de Deus, que queria seguir sine glossa, tal qual é, em toda a sua radicalidade e verdade. É também verdade que inicialmente ele não tinha a intenção de criar uma Ordem com as formas canónicas necessárias mas, simplesmente, com a palavra de Deus e com a presença do Senhor, ele desejava renovar o povo de Deus, convocá-lo de novo para a escuta da palavra e para a obediência verbal com Cristo. Além disso, sabia que Cristo nunca é "meu", mas é sempre "nosso", que não posso tê-lo "eu" e reconstruir "eu" contra a Igreja, a sua vontade e o seu ensinamento, mas só na comunhão da Igreja construída sobre a sucessão dos Apóstolos é que se renova também a obediência à palavra de Deus.

É também verdade que não tinha a intenção de criar uma nova ordem, mas apenas de renovar o povo de Deus para o Senhor que vem. Mas compreendeu com sofrimento e dor que tudo deve ter a sua ordem, que também o direito da Igreja é necessário para dar forma à renovação e assim inseriu-se realmente de modo total, com o coração, na comunhão da Igreja, com o Papa e com os Bispos. Sabia sempre que o centro da Igreja é a Eucaristia, na qual o Corpo de Cristo e o seu Sangue se tornam presentes. Através do Sacerdócio, a Eucaristia é a Igreja. Onde caminham juntos Sacerdócio de Cristo e comunhão da Igreja, então ali habita também a palavra de Deus. O verdadeiro Francisco histórico é o Francisco da Igreja e precisamente deste modo fala também aos não-crentes, aos fiéis de outras confissões e religiões.

Francisco e os seus frades, cada vez mais numerosos, estabeleceram-se na Porciúncula, ou igreja de Santa Maria dos Anjos, lugar sagrado por excelência da espiritualidade franciscana. Também Clara, uma jovem de Assis, de família nobre, se pôs na escola de Francisco. Assim, teve origem a Segunda Ordem franciscana, a das Clarissas, outra experiência destinada a dar frutos insignes de santidade na Igreja.

Também o sucessor de Inocêncio III, Papa Honório III, com a sua bula Cum dilecti de 1218 apoiou o singular desenvolvimento dos primeiros Frades Menores, que iam abrindo as suas missões em diversos países da Europa, e até em Marrocos. Em 1219 Francisco obteve a autorização para ir falar, no Egipto, com o sultão muçulmano Melek-el-Kamel, para pregar também ali o Evangelho de Jesus. Desejo ressaltar este episódio da vida de São Francisco, que tem uma grande actualidade. Numa época na qual se estava a verificar um confronto entre o Cristianismo e o Islão, Francisco, intencionalmente armado só com a sua fé e com a sua mansidão pessoal, percorreu com eficácia o caminho do diálogo. As crónicas falam-nos de um acolhimento benévolo e cordial recebido do sultão muçulmano. É um modelo no qual também hoje se deveriam inspirar as relações entre cristãos e muçulmanos: promover um diálogo na verdade, no respeito recíproco e na compreensão mútua (cf. Nostra aetate, 3). Parece depois que em 1220 Francisco visitou a Terra Santa, lançando assim uma semente, que teria dado muito fruto: de facto, os seus filhos espirituais fizeram dos Lugares nos quais Jesus viveu um âmbito privilegiado da sua missão. Com gratidão penso hoje nos grandes méritos da Custódia franciscana da Terra Santa.
Tendo regressado à Itália, Francisco entregou o governo da Ordem ao seu vigário, frei Pedro Cattani, enquanto o Papa confiou à protecção do Cardeal Ugolino, futuro Sumo Pontífice Gregório IX, a Ordem, que contava cada vez mais adeptos. Por seu lado o Fundador, totalmente dedicado à pregação que desempenhava com grande sucesso, redigiu uma Regra, depois aprovada pelo Papa.

Em 1224, na ermida de La Verna, Francisco vê o Crucificado na forma de um serafim e do encontro com o serafim crucificado, recebeu os estigmas; ele torna-se assim um com Cristo crucificado: um dom que expressa a sua íntima identificação com o Senhor.
A morte de Francisco – o seu transitus – aconteceu na noite de 3 de Outubro de 1226, na Porciúncula.

Depois de ter abençoado os seus filhos espirituais, ele faleceu, estendido no chão nu. Dois anos mais tarde, foi construída em sua honra uma grande basílica em Assis, que ainda hoje é meta de muitíssimos peregrinos, que podem venerar o túmulo do santo e gozar da visão dos afrescos de Giotto, pintor que ilustrou de modo magnífico a vida de Francisco.

Foi dito que Francisco representa um alter Christus, que era verdadeiramente um ícone vivo de Cristo. Ele foi chamado também "o irmão de Jesus". De facto, era este o seu ideal: ser como Jesus; contemplar o Cristo do Evangelho, amá-lo intensamente, imitar as suas virtudes. Em particular, ele quis dar um valor fundamental à pobreza interior e exterior, ensinando-a também aos filhos espirituais. A primeira bem-aventurança do Sermão da Montanha – bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus (Mt 5, 3) – encontrou uma luminosa realização na vida e nas palavras de São Francisco. Deveras, queridos amigos, os santos são os melhores intérpretes da Bíblia; eles, encarnando na sua vida a Palavra de Deus, tornam-na atraente como nunca, de modo que fala realmente connosco. O testemunho de Francisco, que amou a pobreza para seguir Cristo com dedicação e liberdade totais, continua a ser também para nós um convite a cultivar a pobreza interior para crescer na confiança em Deus, unindo também um estilo de vida sóbrio e um desapego dos bens materiais.

Em Francisco o amor a Cristo expressou-se de modo especial na adoração do Santíssimo Sacramento da Eucaristia. Nas Fontes franciscanas lêem-se expressões comovedoras, como esta: "Toda a humanidade tema, o universo inteiro trema e o céu exulte, quando no altar, na mão do sacerdote, está Cristo, o Filho do Deus vivo. Ó favor maravilhoso! Ó sublimidade humilde, que o Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, a tal ponto se humilhe que se esconda para a nossa salvação, sob uma modesta forma de pão" (Francisco de Assis, Escritos, Editrici Franciscane, Pádua 2002, 401).

Neste ano sacerdotal, apraz-me recordar também uma recomendação dirigida por Francisco aos sacerdotes: "Quando quiserem celebrar a Missa, puros de modo puro, façam com reverência o verdadeiro sacrifício do santíssimo Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo" (Francisco de Assis, Escritos, 399). Francisco mostrava sempre uma grande deferência em relação aos sacerdotes, e recomendava que fossem sempre respeitados, também no caso de serem pessoalmente pouco dignos. Dava como motivação deste profundo respeito o facto de que eles receberam o dom de consagrar a Eucaristia. Queridos irmãos no sacerdócio, nunca esqueçamos este ensinamento: a santidade da Eucaristia pede que sejamos puros, que vivamos de modo coerente com o Mistério que celebramos.

Do amor a Cristo nasce o amor às pessoas e também a todas as criaturas de Deus. Eis outra característica da espiritualidade de Francisco: o sentido da fraternidade universal e o amor pela criação, que lhe inspirou o célebre Cântico das criaturas. É uma mensagem muito atual. Como recordei na minha recente Encíclica Caritas in veritate, só é sustentável um desenvolvimento que respeite a criação e que não danifique o meio ambiente (cf. nn. 48-52) e na Mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano ressaltei que também a construção de uma paz sólida está relacionada com o respeito da criação. Francisco recorda-nos que na criação se manifesta a sabedoria e a benevolência do Criador. A natureza é entendida por ele precisamente como uma linguagem na qual Deus fala connosco, na qual a realidade se torna transparente e nós podemos falar de e com Deus.

Queridos amigos, Francisco foi um grande santo e um homem jubiloso. A sua simplicidade, a sua humildade, a sua fé, o seu amor a Cristo, a sua bondade para cada homem e mulher fizeram-no feliz em todas as situações. De facto, entre a santidade e a alegria subsiste uma relação íntima e indissolúvel. Um escritor francês disse que no mundo só existe uma tristeza: a de não ser santo, isto é, de não estar próximo de Deus. Olhando para o testemunho de São Francisco, compreendemos que é este o segredo da verdadeira felicidade: tornar-nos santos, próximos de Deus!

Que a Virgem, ternamente amada por Francisco, nos obtenha este dom. Confiemo-nos a ela com as mesmas palavras do Pobrezinho de Assis: "Santa Maria Virgem, não existe outra semelhante a ti nascida no mundo entre as mulheres, filha e escrava do altíssimo Rei e Pai celeste, Mãe do nosso santíssimo Senhor Jesus Cristo, esposa do Espírito Santo: interceda por nós... junto do teu santíssimo e dilecto Filho, Senhor e Mestre" (Francisco de Assis, Escritos, 163).

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Bento XVI e a figura de São Boaventura

Queridos irmãos e irmãs
       Hoje gostaria de falar de São Boaventura de Bagnoregio. Confesso-vos que, ao propor-vos este argumento, sinto uma certa saudade, porque volto a pensar nas pesquisas que, como jovem estudioso, fiz precisamente sobre este autor, que me é particularmente caro. O seu conhecimento influiu em grande medida na minha formação. Com muita alegria, há alguns meses, fui em peregrinação à sua terra natal, Bagnoregio, uma pequena cidade italiana no Lácio, que conserva com veneração a sua memória.
       Tendo nascido provavelmente em 1217 e falecido em 1274, ele viveu no século XIII, uma época em que a fé cristã, radicada profundamente na cultura e na sociedade da Europa, inspirou obras imperecíveis no campo da literatura, das artes visuais, da filosofia e da teologia. Entre as grandes figuras cristãs que contribuíram para a composição desta harmonia entre fé e cultura sobressai precisamente Boaventura, homem de acção e de contemplação, de profunda piedade e de prudência no governo.
       Chamava-se João de Fidanza. Um episódio que teve lugar quando ainda era jovem marcou profundamente a sua vida, como ele mesmo narra. Tinha sido atingido por uma grave doença e nem sequer o seu pai, que era médico, esperava salvá-lo da morte. Então, sua mãe recorreu à intercessão de São Francisco de Assis, que tinha sido canonizado há pouco tempo. E João ficou curado.
       A figura do Pobrezinho de Assis tornou-se-lhe ainda mais familiar alguns anos mais tarde, quando se encontrava em Paris, aonde tinha ido para estudar. Obtivera o diploma de Mestre de Artes, que poderíamos comparar com o de um Liceu prestigioso dos nossos tempos. Nesta altura, como muitos jovens de ontem e também de hoje, João formulou uma pergunta crucial: "O que devo fazer da minha vida?". Fascinado pelo testemunho de fervor e de radicalidade evangélica dos Frades Menores, que tinham chegado a Paris em 1219, João bateu à porta do Convento franciscano daquela cidade, e pediu para ser acolhido na grande família dos discípulos de São Francisco. Muitos anos depois, ele explicou as razões da sua escolha: em São Francisco e no movimento por ele iniciado, entrevia a acção de Cristo. Assim escrevia numa carta endereçada a outro frade: "Confesso diante de Deus que a razão que me fez amar mais a vida do Beato Francisco é que ela se assemelha aos inícios e ao crescimento da Igreja. A Igreja começou com simples pescadores e em seguida enriqueceu-se de doutores muito ilustres e sábios; a religião do Beato Francisco não foi estabelecida pela prudência dos homens, mas de Cristo" (Epistula de tribus quaestionibus ad magistrum innominatum, in Opere di San Bonaventura. Introduzione generale, Roma 1990, pág. 29).
       Portanto, por volta do ano de 1243 João vestiu o hábito franciscano e adquiriu o nome de Boaventura. Foi imediatamente destinado aos estudos e frequentou a Faculdade de Teologia da Universidade de Paris, seguindo uma série de cursos muitos exigentes. Obteve os vários títulos requeridos pela carreira académica, os de "bacharel bíblico" e de "bacharel sentenciário". Assim Boaventura estudou a fundo a Sagrada Escritura, as Sentenças de Pedro Lombardo, o manual de teologia daquela época e os mais importantes autores de teologia e, em contacto com os mestres e os estudantes que afluíam a Paris de toda a Europa, amadureceu a sua reflexão pessoal e uma sensibilidade espiritual de grande valor que, durante os anos seguintes, soube transferir para as suas obras e os seus sermões, tornando-se assim um dos teólogos mais importantes da história da Igreja. É significativo recordar o título da tese que ele defendeu para ser habilitado ao ensino da teologia, a licentia ubique docendi, como então se dizia. A sua dissertação tinha como título "Questões sobre o conhecimento de Cristo". Este argumento mostra o papel central que Cristo teve sempre na vida e no ensinamento de Boaventura. Sem dúvida, podemos dizer que todo o seu pensamento foi profundamente cristocêntrico.
       Naqueles anos em Paris, a cidade de adopção de Boaventura, desencadeava-se uma polémica violenta contra os Frades Menores de São Francisco de Assis e contra os Padres Pregadores de São Domingos de Guzman. Contestava-se o seu direito de ensinar na Universidade e chegava-se até a pôr em dúvida a autenticidade da sua vida consagrada. Certamente, as mudanças introduzidas pelas Ordens Mendicantes no modo de entender a vida religiosa, de que falei nas catequeses precedentes, eram tão inovativas que nem todos conseguiam compreendê-las. Além disso acrescentavam-se, como às vezes acontece também entre pessoas sinceramente religiosas, motivos de debilidade humana, como a inveja e o ciúme. Embora estivesse circundado pela oposição dos outros mestres universitários, Boaventura já tinha começado a ensinar na cátedra de teologia dos Franciscanos e, para responder àqueles que contestavam as Ordens Mendicantes, compôs um escrito intitulado A perfeição evangélica. Neste escrito, ele demonstra que as Ordens Mendicantes, de modo especial os Frades Menores, praticando os votos de pobreza, de castidade e de obediência, seguiam os conselhos do próprio Evangelho. Para além destas circunstâncias históricas, o ensinamento oferecido por Boaventura nesta sua obra e na sua vida permanece sempre actual: a Igreja tornou-se mais luminosa e bonita pela fidelidade à vocação da parte daqueles seus filhos e filhas que não só põem em prática os preceitos evangélicos mas, pela graça de Deus, são chamados a observar os seus conselhos e assim, através do seu estilo de vida pobre, casto e obediente, são testemunho de que o Evangelho é nascente de alegria e de perfeição.
       O conflito foi pacificado, pelo menos por um certo período e, mediante a intervenção pessoal do Papa Alexandre IV em 1257, Boaventura foi reconhecido oficialmente doutor e mestre da Universidade parisiense. Todavia, ele teve que renunciar a este cargo prestigioso, porque naquele mesmo ano o Capítulo geral da Ordem o elegeu Ministro-Geral.
       Desempenhou tal encargo durante 17 anos com sabedoria e dedicação, visitando as províncias, escrevendo aos irmãos e intervindo por vezes com uma certa severidade para eliminar abusos. Quando Boaventura deu início a este serviço, a Ordem dos Frades Menores desenvolveu-se de modo prodigioso: contavam-se mais de 30.000 frades espalhados por todo o Ocidente, com presenças missionárias no norte da África, no Médio Oriente e até em Pequim. Era necessário consolidar esta expansão e sobretudo conferir-lhe, em plena fidelidade ao carisma de Francisco, unidade de acção e de espírito. Com efeito, entre os seguidores do Santo de Assis havia vários modos de interpretar a sua mensagem e existia realmente o risco de uma ruptura interna. Para evitar este perigo, o Capítulo geral da Ordem em Narbona, em 1260, aceitou e rectificou um texto proposto por Boaventura, em que se reuniam e unificavam as normas que regulavam a vida diária dos Frades Menores. No entanto, Boaventura intuía que as disposições legislativas, por mais que se inspirassem na sabedoria e na moderação, não eram suficientes para garantir a comunhão do espírito e dos corações. Era necessário compartilhar os mesmos ideais e motivações. Por isso, Boaventura quis apresentar o carisma genuíno de Francisco, a sua vida e o seu ensinamento. Reuniu, então, com grande zelo documentos relativos ao Pobrezinho e ouviu com atenção as recordações daqueles que tinham conhecido Francisco directamente. Daqui nasceu uma biografia do Santo de Assis, bem fundamentada sob o ponto de vista histórico, intitulada Legenda maior,redigida também de forma mais abreviada e por isso chamada Legenda minor. Diversamente do termo italiano, esta palavra latina não indica um fruto da fantasia, mas ao contrário "Legenda" significa um texto autorizado, "que se deve ler" oficialmente. Com efeito, o Capítulo geral dos Frades Menores de 1263, reunindo-se em Pisa, reconheceu na biografia de São Boaventura o retrato mais fiel do Fundador e deste modo ela tornou-se a biografia oficial do Santo.
       Qual é a imagem de São Francisco que sobressai do coração e da pena do seu filho devoto e sucessor, São Boaventura? O ponto essencial: Francisco é um alter Christus, um homem que procurou Cristo apaixonadamente. No amor que impele à imitação, conformou-se de modo total com Ele. Boaventura indicava este ideal vivo a todos os seguidores de Francisco. Este ideal, válido para cada cristão ontem, hoje e sempre, foi apontado como programa também para a Igreja do Terceiro Milénio pelo meu Predecessor, o Venerável João Paulo II. Tal programa, escreveu na Carta Novo millennio ineunte, está centrado "no próprio Cristo, que deve ser conhecido, amado e imitado, para viver nele a vida trinitária, e transformar com Ele a história até ao seu cumprimento na Jerusalém celeste" (n. 29).
       Em 1273, a vida de São Boaventura conheceu outra mudança. O Papa Gregório X quis consagrá-lo Bispo e nomeá-lo Cardeal. Pediu-lhe também que preparasse um importantíssimo evento eclesial: o II Concílio Ecuménico de Lião, que tinha como finalidade o restabelecimento da comunhão entre as Igrejas latina e grega. Ele dedicou-se a esta tarefa com diligência, mas não conseguiu ver a conclusão daquela assembleia ecuménica, porque faleceu durante a sua realização. Um notário pontifício anónimo compôs um elogio de Boaventura, que nos oferece um retrato conclusivo deste grande santo e excelente teólogo: "Homem bom, afável, piedoso e misericordioso, repleto de virtudes, amado por Deus e pelos homens... Com efeito, Deus concedeu-lhe tal graça, que todos aqueles que o viam permaneciam imbuídos de um amor que o coração não podia ocultar" (cf. J. G. Bougerol, Bonaventura, in A. Vauchez (por), Storia dei santi e della santità cristiana. Vol. VI. L'epoca del rinnovamento evangelico, Milão 1991, pág. 91).
       Recolhamos a herança deste Santo Doutor da Igreja, que nos recorda o sentido da nossa vida com as seguintes palavras: "Na terra... podemos contemplar a imensidão divina mediante o raciocínio e a admiração; na pátria celeste, ao contrário, mediante a visão, quando nos tornarmos semelhantes a Deus, e através do êxtase... entraremos na alegria de Deus" (La conoscenza di Cristo, q. 6, conclusione, in Opere di San Bonaventura. Opuscoli Teologici/1, Roma 1993, pág. 187).

Bento XVI e a figura de São Boaventura (3)

Queridos irmãos e irmãs
       Esta manhã, continuando a reflexão de quarta-feira passada, gostaria de aprofundar convosco outros aspectos da doutrina de São Boaventura de Bagnoregio. Ele é um teólogo eminente, que merece ser posto ao lado de outro grandíssimo pensador, seu contemporâneo, São Tomás de Aquino. Ambos perscrutaram os mistérios da Revelação, valorizando os recursos da razão humana, naquele diálogo fecundo entre fé e razão que caracteriza a Idade Média cristã, fazendo dela uma época de grande vivacidade intelectual, e também de fé e de renovação eclesial, muitas vezes não suficientemente evidenciada. Eles são irmanados por outras analogias: tanto Boaventura, franciscano, como Tomás, dominicano, pertenciam às Ordens Mendicantes que, com o seu vigor espiritual, como recordei em catequeses precedentes, renovaram no século XIII a Igreja inteira e atraíram muitos seguidores. Ambos serviram a Igreja com diligência, com paixão e com amor, a ponto de terem sido convidados a participar no Concílio Ecuménico de Lião em 1274, o mesmo ano em que vieram a falecer: Tomás, enquanto ia a Lião, Boaventura durante a realização do mesmo Concílio. Também na Praça de São Pedro as imagens dos dois Santos são paralelas, colocadas precisamente no início da Colunata, a partir da fachada da Basílica Vaticana: uma na Ala da esquerda, e a outra na Ala da direita. Não obstante todos estes aspectos, podemos ver nos dois grandes Santos duas abordagens diversas da pesquisa filosófica e teológica, que mostram a originalidade e a profundidade de pensamento de um e do outro. Gostaria de mencionar algumas destas diferenças.
       Uma primeira diferença diz respeito ao conceito de teologia. Ambos os doutores perguntam se a teologia é uma ciência prática ou uma ciência teórica, especulativa. São Tomás reflecte sobre duas possíveis respostas contrastantes. A primeira diz: a teologia é reflexão sobre a fé, e a finalidade da fé é que homem se torne bom, viva segundo a vontade de Deus. Portanto, a finalidade da teologia deveria ser a de guiar pelo caminho recto, bom; por conseguinte, no fundo, ela é uma ciência prática. A outra posição diz: a teologia procura conhecer Deus. Nós somos obra de Deus; Deus está acima do nosso agir. Deus realiza em nós o agir justo. Por conseguinte, trata-se substancialmente não do nosso fazer, mas de conhecer Deus, não do nosso agir. A conclusão de São Tomás é: a teologia implica ambos os aspectos: é teórica, procura conhecer Deus cada vez mais, e é prática: procura orientar a nossa vida para o bem. Mas há um primado do conhecimento: sobretudo, temos que conhecer Deus, depois vem o agir segundo Deus (cf.Summa Theologiae, ia, q. 1, art. 4). Este primado do conhecimento em relação à prática é significativo para a orientação fundamental de São Tomás.
A resposta de São Boaventura é muito semelhante, mas os matizes são diferentes. São Boaventura conhece os mesmos argumentos em ambas as direcções, como São Tomás, mas para responder à pergunta se a teologia é uma ciência prática ou teórica, São Boaventura faz uma distinção tríplice – portanto, amplia a alternativa entre teórico (primado do conhecimento) e prático (primado da prática), acrescentando uma terceira atitude, que chama "sapiencial" e afirmando que a sabedoria abrange ambos os aspectos. E depois, continua: a sabedoria procura a contemplação (como a mais elevada forma do conhecimento) e tem como intenção "ut boni fiamus" – que nos tornemos bons, sobretudo isto: tornar-nos bons (cf. Breviloquium, Prologus, 5). Depois, acrescenta: "A fé está no intelecto, de tal modo que provoca o afecto. Por exemplo: saber que Cristo morreu "por nós" não permanece conhecimento, mas torna-se necessariamente afecto, amor" (Proemium in I Sent., q. 3).
       A sua defesa da teologia, ou seja, da reflexão racional e metódica da fé, move-se na mesma linha. São Boaventura enumera alguns argumentos contra a prática da teologia, talvez difundidos também entre alguns dos frades franciscanos e presentes inclusive no nosso tempo: a razão esvaziaria a fé, seria uma atitude violenta em relação à palavra de Deus, temos que ouvir e não analisar a palavra de Deus (cf. Carta de São Francisco de Assis a Santo António de Pádua). A estes argumentos contra a teologia, que demonstram os perigos existentes na própria teologia, o Santo responde: é verdade que existe um modo arrogante de fazer teologia, uma soberba da razão, que se põe acima da palavra de Deus. Mas a verdadeira teologia, o trabalho racional da teologia verdadeira e boa tem outra origem, não a soberba da razão. Quem ama quer conhecer cada vez melhor e sempre mais o amado; a verdadeira teologia não empenha a razão e sua busca motivada pela soberba,"sed propter amorem eius cui assentit" – "motivada pelo amor daquele, a quem deu o seu consentimento" (Proemium in I Sent., q. 2), e que conhecer melhor o amado: esta é a intenção fundamental da teologia. Portanto, no final para São Boaventura é determinante o primado do amor.
       Por conseguinte, São Tomás e São Boaventura definem de modo diferente o destino último do homem, a sua plena felicidade: para São Tomás o fim supremo ao qual se dirige nosso desejo é: ver Deus. Neste simples gesto de ver Deus todos os problemas encontram solução: estamos felizes, nada mais é necessário.
Para São Boaventura, o destino último do homem é outro: amar Deus, o encontrar-se e o unir-se do seu e do nosso amor. Esta é para ele a definição mais adequada da nossa felicidade.
       Nesta linha, poderíamos dizer também que para São Tomás a categoria mais elevada é a verdade, enquanto para São Boaventura é o bem. Seria errado ver nestas duas respostas uma contradição. Para ambos, a verdade é também o bem, e o bem é também a verdade; ver Deus é amar, e amar é ver. Portanto, trata-se de aspectos diferentes de uma visão fundamentalmente comum. Ambos os aspectos formaram diferentes tradições e diversas espiritualidades, e assim mostraram a fecundidade da fé, uma só na diversidade das suas expressões.
       Voltemos a São Boaventura. É evidente que o aspecto específico da sua teologia, do qual só dei um exemplo, se explica a partir do carisma franciscano: o Pobrezinho de Assis, para além dos debates intelectuais do seu tempo, tinha mostrado com toda a sua vida o primado do amor; era um ícone vivo e apaixonado de Cristo e assim, na sua época, tornou presente a figura do Senhor não convenceu os seus contemporâneos com as palavras, mas com a sua vida. Em todas as obras de São Boaventura, precisamente também as obras científicas, escolares, vê-se e encontra-se esta inspiração franciscana; ou seja, observa-se que ele pensa a partir do encontro com o Pobrezinho de Assis. No entanto, para compreender a elaboração concreta do tema "primado do amor", temos que ter presente mais uma fonte: os escritos do chamado Pseudodionísio, um teólogo sírio do século VI, que se escondeu sob o pseudónimo de Dionísio, o Areopagita, referindo-se com este nome a uma figura dos Atos dos Apóstolos (cf. 17, 34). Este teólogo tinha criado uma teologia litúrgica e uma teologia mística, e falara amplamente das diversas ordens dos anjos. Os seus escritos foram traduzidos em latim no século IX; na época de São Boaventura – estamos no século XIII – surgia uma nova tradição, que despertou o interesse do Santo e dos outros teólogos do seu século. Duas coisas chamavam a atenção de São Boaventura de modo particular: 
       1. O Pseudodionísio fala de nove ordens dos anjos, cujos nomes tinha encontrado na Escritura e depois disposto à sua maneira, desde os anjos simples até aos serafins. São Boaventura interpreta estas ordens dos anjos como degraus na aproximação da criatura a Deus. Assim eles podem representar o caminho humano, a elevação rumo à comunhão com Deus. Para São Boaventura não há qualquer dúvida: São Francisco de Assis pertencia à ordem seráfica, à ordem suprema, ao coro dos serafins, ou seja: era puro fogo de amor. E assim deveriam ser os franciscanos. Mas São Boaventura sabia bem que este último grau de aproximação a Deus não pode ser inserido num ordenamento jurídico, mas é sempre um dom particular de Deus. Por isso, a estrutura da Ordem franciscana é mais modesta, mais realista, porém deve ajudar os membros a aproximar-se cada vez mais de uma existência seráfica de amor puro. Na quarta-feira passada, falei sobre esta síntese entre realismo sóbrio e radicalidade evangélica no pensamento e no agir de São Boaventura.
       2. Contudo, São Boaventura encontrou nos escritos do Pseudodionísio outro elemento, para ele ainda mais importante. Enquanto para Santo Agostinho o intellectus, o ver com a razão e o coração, é a última categoria do conhecimento, o Pseudodionísio dá mais um passo: na escalada rumo a Deus pode-se chegar a um ponto em que a razão já não vê. Mas na noite do intelecto, o amor ainda vê – vê aquilo que permanece inacessível à razão. O amor estende-se além da razão, vê mais, entra mais profundamente no mistério de Deus. São Boaventura sentia-a fascinado por esta visão, que se encontrava com a sua espiritualidade franciscana. Precisamente na noite obscura da Cruz aparece toda a grandeza do amor divino; onde a razão já não vê, o amor vê. As palavras conclusivas do seu "Itinerário da mente em Deus", a uma leitura superficial podem parecer como expressão exagerada de uma devoção sem conteúdo; por outro lado, lidas à luz da teologia da Cruz de São Boaventura, elas são uma expressão límpida e realista da espiritualidade franciscana: "Se agora desejas saber como isto acontece (ou seja, a escalada para Deus), interroga a graça, não a doutrina; o desejo, não o intelecto; o gemido da oração, não o estudo da letra; ...não a luz, mas o fogo, que tudo inflama e transporta em Deus" (VII, 6). Tudo isto não é anti-intelectual e não é anti-racional: supõe o caminho da razão, mas transcende-o no amor de Cristo crucificado. Com esta transformação da mística do Pseudodionísio, São Boaventura coloca-se nos primórdios de uma corrente mística, que elevou e purificou em grande medida a mente humana: é um ápice na história do espírito humano.
       Esta teologia da Cruz, nascida do encontro entre a teologia do Pseudodionísio e a espiritualidade franciscana, não nos deve fazer esquecer que São Boaventura compartilha com São Francisco de Assis também o amor pela criação, a alegria pela beleza da criação de Deus. Cito nesta altura uma frase do primeiro capítulo do "Itinerário": "Quem... não vê os inúmeros esplendores das criaturas, é cego; aquele que não desperta com tantas vezes, é surdo; quem não louva a Deus por todas estas maravilhas, é mudo; aquele que de tantos sinais não se eleva ao primeiro princípio, é estulto" (I, 15). Toda a criação fala em voz alta de Deus, do Deus bom e belo, do seu amor.
       Portanto, toda a nossa vida é para São Boaventura um "itinerário", uma peregrinação – uma escalada rumo a Deus. Mas só com as nossas forças, não podemos elevar-nos à altura de Deus. O próprio Deus deve ajudar-nos, deve "puxar-nos" para o alto. Por isso, é necessária a oração. A oração – como diz o Santo – é a mãe e a origem da elevação – "sursum actio", acção que nos leva para o alto – diz Boaventura. Por isso, concluo com a prece, com a qual ele começa o seu "Itinerário": "Portanto, oremos e digamos ao nosso Senhor Deus: "Conduza-me, Senhor, pela tua via, e eu caminharei na tua verdade. Alegre-se o meu coração no temor do teu nome"" (I, 1).

Bento XVI e a figura de São Boaventura (2)

Caros irmãos e irmãs
       Na semana passada falei da vida e da personalidade de São Boaventura de Bagnoregio. Esta manhã gostaria de continuar a apresentação, reflectindo sobre uma parte da sua obra literária e da sua doutrina.
       Como já disse São Boaventura, entre os vários méritos, teve o de interpretar autêntica e fielmente a figura de São Francisco de Assis, por ele venerado e estudado com grande amor. Em particular, na época de São Boaventura uma corrente de Frades Menores, chamados "espirituais", afirmava que com São Francisco fora inaugurada uma fase totalmente nova da história, aparecera o "Evangelho eterno" de que fala o Apocalipse, que substituía o Novo Testamento. Este grupo afirmava que a Igreja já tinha esgotado o seu papel histórico e seria substituída por uma comunidade carismática de homens livres guiados interiormente pelo Espírio, isto é pelos "Franciscanos espirituais". Na base das ideias de tal grupo havia os escritos de um abade cisterciense, Joaquim de Fiore, falecido em 1202. Nas suas obras, ele afirmava um ritmo trinitário da história. Considerava o Antigo Testamento como era do Pai, seguido pelo tempo do Filho, o tempo da Igreja. Haveria que esperar ainda a terceira era, a do Espírito Santo. Assim, toda a história devia ser interpretada como uma história de progresso: da severidade do Antigo Testamento à relativa liberdade do tempo do Filho, na Igreja, até à plena liberdade dos Filhos de Deus, no período do Espírito Santo, que enfim seria inclusive o período da paz entre os homens, da reconciliação dos povos e das religiões. Joaquim de Fiore suscitou a esperança de que o início do novo tempo viria de um novo monaquismo. Assim, é compreensível que um grupo de Franciscanos julgasse reconhecer em São Francisco de Assis o iniciador do novo tempo e, na sua Ordem, a comunidade da nova época a comunidade do tempo do Espírito Santo, que deixava atrás de si a Igreja hierárquica, para começar a nova Igreja do Espírito, desligada das velhas estruturas.
       Portanto, havia o risco de um gravíssimo mal-entendido da mensagem de São Francisco, da sua fidelidade humilde ao Evangelho e à Igreja, e tal equívoco incluía uma visão errónea do Cristianismo no seu conjunto.
       São Boaventura, que em 1257 se tornou Ministro-Geral da Ordem Franciscana, encontrou-se diante de uma grave tensão no interior da sua própria Ordem precisamente por causa de quem defendia a mencionada corrente dos "Franciscanos espirituais", que se inspirava em Joaquim de Fiore. Exactamente para responder a este grupo e dar nova unidade à Ordem, São Boaventura estudou com atenção os escritos autênticos de Joaquim de Fiore e os que lhe eram atribuídos e, tendo em consideração a necessidade de apresentar correctamente a figura e a mensagem do seu amado São Francisco, quis expor uma justa visão da teologia da história. São Boaventura enfrentou o problema na sua última obra, uma colectânea de conferências aos monges do estúdio parisiense, que ficou incompleta e chegou até nós através das transcrições dos auditores, intitulada Hexaëmeron, isto é uma explicação alegórica dos seis dias da criação. Os Padres da Igreja consideravam os seis ou sete dias da narração sobre a criação como profecia da história do mundo, da humanidade. Os sete dias representavam para eles sete períodos da história, mais tarde interpretados também como sete milénios. Com Cristo teríamos entrado no último, ou seja no sexto período da história, ao qual depois se seguiria o grande sábado de Deus. São Boaventura supõe esta interpretação histórica do relatório dos dias da criação, mas de um modo muito livre e inovativo. Para ele, dois fenómenos do seu tempo tornam necessária uma nova interpretação do curso da história.
       O primeiro: a figura de São Francisco, homem totalmente unido a Cristo até à comunhão dos estigmas, quase um alter Christus, e com São Francisco a nova comunidade por ele criada, diferente do monaquismo até agora conhecido. Este fenómeno exigia uma nova interpretação, como novidade de Deus que surgiu nesse momento.
O segundo: a posição de Joaquim de Fiore, que anunciava um novo monaquismo e um período totalmente novo da história, indo além da revelação do Novo Testamento exigia uma resposta.
       Como Ministro-Geral da Ordem dos Franciscanos, São Boaventura viu logo que com a concepção espiritualista inspirada por Joaquim de Fiore, a Ordem não era governável, mas caminhava logicamente rumo à anarquia. Para ele, havia duas consequências:
A primeira: a necessária prática de estruturas e de inserção na realidade da Igreja hierárquica, da Igreja real, tinha necessidade de um fundamento teológico, também porque os outros, aqueles que seguiam a concepção espiritualista, mostravam um aparente fundamento teológico.
       A segunda: mesmo tendo em consideração o realismo necessário, não se podia perder a novidade da figura de São Francisco.
       Como respondeu São Boaventura à exigência prática e teórica? Da sua resposta posso dar aqui só um resumo muito esquemático e incompleto, em alguns pontos:
       1. São Boaventura rejeita a ideia do ritmo trinitário da história. Deus é um para toda a história e não se divide em três divindades. Portanto, a história é uma só, embora seja um caminho e – segundo São Boaventura – um caminho de progresso.
       2. Jesus Cristo é a última palavra de Deus – nele Deus disse tudo, doando-se e proclamando-se a si mesmo. Mais do que Ele mesmo, Deus não pode dizer, nem doar. O Espírito Santo é Espírito do Pai e do Filho. O próprio Cristo diz do Espírito Santo: "...ensinar-vos-á tudo o que vos tenho dito" (Jo 14, 26), "receberá do que é meu para vo-lo anunciar" (Jo 16, 15). Portanto, não existe outro Evangelho mais excelso, não há outra Igreja a esperar. Por isso, até a Ordem de São Francisco deve inserir-se nesta Igreja, na sua fé, no seu ordenamento hierárquico.
        3. Isto não significa que a Igreja é imóvel, fixa no passado, e que nela não possa haver novidade."Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt", as obras de Cristo não regridem, não vêm a faltar, mas progridem, diz o Santo na Carta De tribus quaestionibus. Assim São Boaventura formula explicitamente a ideia de progresso, e esta é uma novidade em relação aos Padres da Igreja e a uma grande parte dos seus contemporâneos. Para São Boaventura Cristo não é mais, como era para os Padres da Igreja, o fim, mas o centro da história; com Cristo, a história não termina, mas começa um novo período. Outra consequência é a seguinte: até àquele momento predominava a ideia de que os Padres da Igreja fossem o ápice absoluto da teologia, e que todas as gerações seguintes só pudessem ser suas discípulas. Até São Boaventura reconhece os Padres como mestres para sempre, mas o fenómeno de São Francisco dá-lhe a certeza de que a riqueza dapalavradeCristoé inesgotável e que até nas novas gerações podem despontar novas luzes. A unicidade de Cristo garante também novidade e renovação em todos os períodos da história.
       Sem dúvida, a Ordem franciscana – assim sublinha – pertence à Igreja de Jesus Cristo, à Igreja Apostólica, e não pode construir-se num espiritualismo utópico. Mas ao mesmo tempo é válida anovidadedetal Ordem em relação ao monaquismo clássico, e São Boaventura – como eu disse na catequese precedente – defendeu esta novidade contra os ataques do Clero secular de Paris: os Franciscanos não têm um mosteiro fixo e podem estar presentes em toda a parte para anunciar o Evangelho. Precisamente a ruptura com a estabilidade, característica do monaquismo, a favor de uma nova flexibilidade, restituiu à Igreja o dinamismo missionário.
       Nesta altura, talvez seja útil dizer que até hoje existem visões segundo as quais toda a história da Igreja no segundo milénio teria sido um declínio permanente; alguns vêem o declínio já imediatamente após o Novo Testamento. Na realidade, "Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt", as obras de Cristo não regridem mas progridem. O que seria a Igreja, sem a nova espiritualidade dos Cistercienses, dos Franciscanos e Dominicanos, da espiritualidade de Santa Teresa de Ávila e de São João da Cruz, e assim por diante? Até hoje é válida esta afirmação: "Opera Christi non deficiunt, sed proficiunt", progridem. São Boaventura ensina-nos o conjunto do discernimento necessário, mesmo severo, do realismo sóbrio e da abertura a novos carismas doados por Cristo no Espírito Santo, à sua Igreja. E enquanto se repete esta ideia do declínio, há também outra ideia, o "utopismo espiritualista" que se repete. Com efeito, sabemos que depois do Concílio Vaticano II alguns estavam convictos de que tudo era novo, como se houvesse outra Igreja, que a Igreja pré-conciliar tivesse terminado e teríamos tido outra, totalmente "outra". Um utopismo anárquico! E graças a Deus os timoneiros sábios da barca de Pedro, Papa Paulo VI e Papa João Paulo II, por um lado defenderam a novidade do Concílio e por outro, ao mesmo tempo, defenderam a unicidade e a continuidade da Igreja, que é sempre Igreja de pecadores e sempre lugar de Graça.
       4. Neste sentido São Boaventura, como Ministro-Geral dos Franciscanos, assumiu uma linha de governo em que era bem claro que a nova Ordem não podia, como comunidade, viver à mesma "altura escatológica" de São Francisco, em quem ele vê antecipado o mundo futuro, mas – guiado ao mesmo tempo por um realismo sadio e pela coragem espiritual – tinha que se aproximar o mais possível da máxima realização do Sermão da Montanha, que para São Francisco foi a regra, mesmo tendo em consideração os limites do homem, marcado pelo pecado original.
       Vemos assim que para São Boaventura governar não era simplesmente agir, mas era sobretudo pensar e rezar. Na base do seu governo encontramos sempre a oração e o pensamento; todas as suas decisões derivam da reflexão, do pensamento iluminado pela oração. O seu contacto íntimo com Cristo acompanhou sempre o seu trabalho de Ministro-Geral e por isso ele compôs uma série de escritos teológico-místicos, que expressam a alma do seu governo e manifestam a intenção de orientar interiormente a Ordem, isto é de governar não só mediante mandatos e estruturas, mas guiando e iluminando as almas, orientando para Cristo.
       Destes seus escritos, que são a alma do seu governo e mostram o caminho a percorrer, tanto ao indivíduo como à comunidade, gostaria de mencionar um só, sua obra-prima, o Itinerarium mentis in Deum, que é um "manual" de contemplação mística. Este livro foi concebido num lugar de profunda espiritualidade: o monte La Verna, onde São Francisco tinha recebido os estigmas. Na introdução, o autor explica as circunstâncias que deram origem a este seu escrito: "Enquanto eu meditava sobre as possibilidades da alma se elevar a Deus, apresentou-se-me entre outros aquele acontecimento admirável ocorrido naquele lugar com o bem-aventurado Francisco, ou seja a visão do Serafim alado em forma de Crucifixo. E meditando sobre isto, dei-me conta imediatamente de que tal visão me oferecia o êxtase contemplativo do próprio pai Francisco e ao mesmo tempo o caminho que a ele conduz" (Itinerário da mente em Deus, Prólogo, 2 em Obras de São Boaventura. Opúsculos Teológicos/1, Roma 1993, pág. 499).
       Assim, as seis asas do Serafim tornam-se o símbolo de seis etapas que conduzem progressivamente o homem ao conhecimento de Deus através da observação do mundo e das criaturas e através da exploração da própria alma com as suas faculdades, até à união total com a Trindade por meio de Cristo, à imitação de São Francisco de Assis. As últimas palavras doItinerarium de São Boaventura, que respondem à pergunta sobre o modo como se pode alcançar esta comunhão mística com Deus, deviam fazer alcançar o fundo do coração: "Se agora desejas saber como acontece isto (a comunhão mística com Deus), interroga a graça, não a doutrina; o desejo, não o intelecto; o gemido da oração, não o estudo da letra; o esposo, não o mestre; Deus, não o homem; as trevas, não a clareza; não a luz, mas o fogo que tudo inflama e transporta em Deus, com as fortes unções e os afectos ardentíssimos... Portanto, entremos nas trevas, silenciemos os anseios, as paixões e os fantasmas; passemos com Cristo Crucificado deste mundo para o Pai para, depois de o ter visto, dizermos com Filipe: basta-me isto" (Ibid., VII, 6).
       Queridos amigos, aceitemos o convite que nos é dirigido por São Boaventura, o Doutor Seráfico, e coloquemo-nos na escola do Mestre divino: ouçamos a sua Palavra de vida e de verdade, que ressoa no íntimo da nossa alma. Purifiquemos os nossos pensamentos e as nossas acções, a fim de que Ele possa habitar em nós, e nós possamos ouvir a sua Voz divina, que nos atrai para a verdadeira felicidade.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

XXVII Domingo do Tempo Comum - ano B - 4.outubro

        1 – Fomos criados à imagem e semelhança de Deus. Deus é Pai e Filho e Espírito Santo. Santíssima Trindade. Comunidade de vida e de amor. Também nós somos família, fomos criados para vivermos como povo, como irmãos, solidariamente, ajudando-nos. Osso dos meus ossos, carne da minha carne. Somos uns em relação aos outros, ainda que se visualize de forma mais transparente na complementaridade do homem e da mulher, auxiliares um do outro. Extensível à humanidade inteira. Estamos enxertados uns nos outros, ainda que por vezes nos esqueçamos da nossa origem, da nossa identidade e do nosso ADN, cujas células se interligam muito além de toda a aparência e de todas as diferenças.
       Quando olhamos para nós e para o mundo em que vivemos, constatamos o quanto estamos distantes deste ideal de vida fraterna, sinal e expressão da vida de Deus. O autor do Génesis chegou à mesma conclusão: observou os conflitos, as guerras, a violência, o derramamento de sangue dentro das famílias, ódios e invejas. Concluiu que o projeto de Deus se transformou ao longo das gerações. O início não poderia ter sido assim, nem Deus projetaria a desgraça e as contendas entre pessoas e povos. O que terá então acontecido? O pecado. O egoísmo, a pressa em resolver tudo à sua maneira, a inveja pelos dons dos outros, a não-aceitação das diferenças. Por outras palavras: a disputa sobre quem é o maior e quem pode tornar-se protagonista além dos outros, por cima dos demais?!
       2 – A Palavra de Deus centra-nos, explicitamente nos domingos anteriores, no serviço ao outro como único caminho para seguir Jesus. Os primeiros, no reino de Deus, serão os que amam de todo o coração os irmãos e multiplicam em obras o que professam com os lábios.
       Os fariseus estão por perto e atentos. Formavam, na realidade, um grupo religioso muito zeloso pelo cumprimento da lei mosaica. O problema surge no radicalismo excludente, quando se coloca em causa a soberania de Deus e a universalidade da salvação, qual areia que se perde por entre os dedos da mão à medida que se aperta. Os fundamentalismos extremam os princípios e excluem cada vez mais pessoas, com a certeza que até os seus defensores acabarão por ficar de fora.
       Aproximam-se de Jesus e põem-n'O à prova: «Pode um homem repudiar a sua mulher?». Jesus fá-los procurar a resposta em Moisés: «Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio, para se repudiar a mulher». Logo Jesus completa, dizendo-lhes da provisoriedade da lei mosaica: «Foi por causa da dureza do vosso coração que ele vos deixou essa lei. Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne’. Deste modo, já não são dois, mas uma só carne. Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
       Com efeito, no início, Deus criou o Homem e a Mulher para viverem harmoniosamente e se auxiliarem mutuamente: «Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele». É certo que a terra estava povoada pela multiplicidade de seres vivos, animais, aves, peixes, criados por Deus. Mas o homem sozinho não pode sobreviver, precisa de alguém que seja igual, auxiliar, da sua estirpe, do seu sangue. É preciso encontrar um olhar que possa ser devolvido na mesma proporção, um sorriso que possa ser acolhido, devolvido, partilhado. Por vezes valoriza-se em demasia um animal doméstico porque falta alguém a quem amar e que possa retribuir amando, alguém que nos compreenda e a quem queiramos falar.
       Da costela do homem, Deus criou a Mulher. Ao ver a mulher, o homem exclamou: «Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem». O compromisso é espiritual mas também carnal. Iguais, semelhantes, da mesma carne. Auxílio um para o outro.
       3 – O casal, homem e mulher, são um modelo para a vivência em sociedade. Diferença e alteridade. Física e espiritualmente diferentes, mas que se complementam. Na criação não há outro ser que se equivalha, que possa estar frente a frente, que possa responder-me. Aquele que me responde é responsável por mim e eu por ele.
       Tal como nos casais, como nas famílias, também em outros grupos sociais e eclesiais, sobrevém com mais facilidade o que separa do aquilo que aproxima, complementa, auxilia.
       Em casa os discípulos procuram compreender melhor as palavras de Jesus. E a resposta de Jesus é taxativa: «Quem repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro, comete adultério».
       É uma resposta que nos custa ouvir, sabendo da nossa fragilidade e da nossa pequenez e da dificuldade enorme que muitas vezes se coloca em prosseguir um matrimónio sonhado e realizado. Aproximamo-nos do Sínodo Ordinário dos Bispos que debaterá a problemática da Família, tal como aconteceu há um ano no Sínodo Extraordinário. Têm vindo ao de cima diversas achegas, reflexões, contributos, que acentuam a mensagem de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimónio e, por outro, as situações reais e concretas em que não foi possível viver no compromisso assumido, estabelecendo compromissos posteriores. Terão que se encontrar formas ou instrumentos para não excluir ninguém com a escusa dos princípios, mas também sem mitigar a verdade do Evangelho, do matrimónio e da família. Há de prevalecer a misericórdia.
       4 – As crianças são um tesouro para a sociedade, de todos os tempos, também para os de hoje. Beneficiam de uma família que os acolha e os ame. Beneficiam a família e a sociedade que se enriquece com a sua vida, com a sua presença, e com o seu futuro. Uma sociedade que não trata bem nem os idosos nem as crianças, será uma sociedade a definhar, sem passado e sem futuro, como amiúde tem sublinhado o Papa Francisco.
       Enquanto Jesus responde aos discípulos, falando de família, do compromisso do casal, apresentam a Jesus umas crianças para que Ele lhes toque, abençoando-as. Os discípulos acham que a conversa é para adultos e que as crianças podem ser um estorvo. Jesus faz-lhes ver de novo que os pequeninos são os preferidos: «Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis: dos que são como elas é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não acolher o reino de Deus como uma criança, não entrará nele». E sublinha São Marcos que Jesus "abraçando-as, começou a abençoá-las, impondo as mãos sobre elas".
       As questões levantadas pelos fariseus e, depois, pelos discípulos são importantes, mas mais importante é acolher os outros e fazê-lo em atitude de bênção, de serviço, de amor. É válido para os casais, para as famílias, para a Igreja e para a sociedade. O reino de Deus implica que sejamos despretensiosos como as crianças, dóceis, vulneráveis, deixando-nos abençoar, e disponíveis para acolhermos com afabilidade e alegria os outros.
       Belíssima coincidência: celebra-se hoje a memória de São Francisco de Assis, expoente luminoso da Igreja como serviço, tendo-se tornado pobre para servir especialmente os mais pobres, para seguir Jesus, imitando-O na opção preferencial pelos mais frágeis.

       5 – A nossa origem é comum. O mesmo Deus que nos criou por amor, desafia-nos a amar-nos como irmãos, dando-nos o exemplo por Jesus Cristo, que, "por um pouco, foi inferior aos Anjos, vemo-l’O agora coroado de glória e de honra por causa da morte que sofreu, pois era necessário que, pela graça de Deus, experimentasse a morte em proveito de todos".
       Se a história nos traz o amor de Deus, também nos traz a história da queda e do pecado. A Encarnação de Deus, Jesus feito homem, Deus connosco, permite reensinar-nos a viver reconciliados com o Pai e uns com os outros. "Convinha, na verdade, que Deus, origem e fim de todas as coisas, querendo conduzir muitos filhos para a sua glória, levasse à glória perfeita, pelo sofrimento, o Autor da salvação. Pois Aquele que santifica e os que são santificados procedem todos de um só. Por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos".
       Em Jesus Cristo, glorificado à direita do Pai, todos nós, estamos imbricados na salvação.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (B): Gen 2, 18-24; Sl 127 (128); Hebr 2, 9-11; Mc 10, 2-16.