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quarta-feira, 28 de abril de 2021

TOMÁŠ HALÍK - O TEMPO DAS IGREJAS VAZIAS

TOMÁŠ HALÍK (2021). O tempo das igrejas vazias. Prior Velho: Paulinas Editora. 152 páginas.


Há um ano, tal como em Portugal e em muitos países, também na República Checa, a necessidade de confinamento devido ao novo coronavírus levou à suspensão das celebrações comunitárias, com particular relevância para a Eucaristia dominical. Tomáš Halík, sacerdote checo e um dos teólogos em maior evidência na Igreja atual, optando por não transmitir a Eucaristia na paróquia universitária que lhe está confiada, São Salvador, preparou e divulgou, pela Internet, reflexões para cada Domingo da Quaresma até à solenidade de Pentecostes, incluída também a homilia da Quarta-feira de Cinzas, portanto, de todo o ciclo da Páscoa.
Este conjunto de homilias foram publicadas, neste livro que sugerimos, com o título de "O Tempo das Igrejas Vazias", sob a chancela das Paulinas Editoria. Trata-se de um convite à reflexão sobre a realidade da fé e da Igreja, do abandono de muitos cristãos, já antes da pandemia, mas que pode, agora, fazer soar mais alarmes pela debandada que se acentua. Só depois da pandemia se verá até que ponto alguns se acomodaram a uma nova realidade e deixaram de ser "praticantes". É tempo para a reflexão sobre a linguagem da Igreja, a pregação dos sacerdotes, o testemunho dos cristãos, a alegria do anúncio, a coerência de fé, a tradução viva da fé no quotidiano.
O autor viveu na clandestinidade, foi ordenado sacerdote às escondidas, durante anos celebrou Missa sozinho ou com mais uma pessoa ou com algumas famílias. Neste caso, celebravam à noite depois de as crianças adormecerem, crianças, nas famílias que as tinham, para não correrem riscos de denúncia, sabendo que as crianças podem facilmente dizer o que viram ou ouviram... A suspensão das celebrações comunitárias, do terceiro Domingo da Quaresma, em março, até ao Pentecostes, no final de maio, e o facto que voltar a celebrar quase sozinho, não o surpreendeu tanto assim. Antes, o comunismo e a perseguição à Igreja, agora a pandemia.
O tempo das Igrejas vazias é uma oportunidade para refletir a forma como somos Igreja. No caso do autor, oportunidade para dar lugar ao silêncio e à oração, à contemplação do mistério e à reflexão sobre o caminho percorrido, pela Igreja, e o caminho a percorrer, com as possibilidades que se abrem à Igreja e aos cristãos. A pandemia pode dar lugar à desolação ou à pregação apocalíptica. E, pelos vistos, alguns voltaram a pregações medievais, provocando o medo, como se o medo obrigasse as pessoas a regressarem à Igreja.
As Igreja vazias devem preocupar-nos? Sim. Mas são também um desafio a darmos maiores razões da nossa fé, não no anúncio de um deus vingativo, mas na certeza confiante de um Deus misericordioso, que é Pai e Mãe, e que em Jesus Cristo abraça a história e o sofrimento humano, caminhando connosco.
Teremos de dar razões da nossa fé, em todos os momentos, nas situações favoráveis e adversas. Deus faz-Se presente na oração - rezemos mais; na Palavra proclamada e meditada - sacudamos o pó das nossas Bíblias; na vivência da Eucaristia, como remédio e alento para o caminho – não desperdicemos este alimento; no cuidado do irmão, no serviço aos mais frágeis – o que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos é a Mim que o fazeis. As Igrejas vazias são oportunidade para sermos Igreja onde quer que nos encontremos, e em tudo o que fizermos. A Eucaristia, vivida com autenticidade, é o primeiro passo para a caridade.

Algumas expressões de Tomáš Halík neste livro:

A vitalidade da (sua) comunidade paroquial assenta em três pilares que se interligam:
"Cultivar uma fé refletida capaz de um diálogo intelectual com uma sociedade predominantemente agnósticas, «apateística», anticlerical (contudo não ateísta); segundo, cultivar um constante crescimento espiritual, uma cultura de uma abordagem contemplativa à vida; terceiro, cultivar o compromisso dos cristãos na sociedade civil".

Em relação à opção da não transmissão das Missas na paróquia de São Salvador:

"A minha convicção de que a presença rela de Cristo na Eucaristia deve ser acompanhada da presença real dos fiéis à volta da mesa do banquete sagrado... a celebração da Eucaristia é um banquete em que a presença real de Cristo no sacramento está ligada à presença real (e não virtual) dos fiéis. É na Eucaristia que somos recebidos por Cristo e, ao mesmo tempo, recebemos os nossos irmãos e por eles e neles recebemos o próprio Cristo". 
"Quando a fé de alguns cristãos enfraquece, ao ver que o mundo não vai na direção por eles esperada, intensifica-se a tentação de substitui o Deus do amor, da fé e da esperança por um velho vingativo que do Além persegue os seus filhos com castigos cruéis, que levariam qualquer pai a ser justamente julgado".

Possibilidade de apanhar a Covid e morrer. O autor viria mesmo a apanhar a doença, mas foi curado. Diz-nos:

"Este pensamento sobre a possibilidade de uma morte iminente não provocou em mim medo, mas, sim, uma necessidade de recapitular, de prestar contas. Também nestas homilias se revelava a necessidade de estar consciente em que direção se move a nossa paróquia, a minha teologia, a minha vida, o que constitui, na verdade, o âmago da minha fé: o que significa para mim ser cristão".

Sobre as três virtudes teologais:
"A esperança é abertura para o futuro, a fé é abertura ao mistério de Deus e a caridade é abertura para o mistério do homem e de Deus ao mesmo tempo... A fé é remédio contra o pânico e o medo".
Uma das ideias que sobressai neste conjunto de homilias é o da ressurreição contínua. O mistério pascal está no centro da vida da Igreja e dos cristãos. É preciso morrer para muitas coisas, e para algumas imagens sobre Deus e sobre comportamentos eclesiais.
Sublinha-se também a dinâmica do ecumenismo num sentido mais abrangente, não apenas a outras Igrejas cristãs, mas também outras religiões (diálogo inter-religioso), bem como com agnósticos ou mesmo ateus, pessoas em busca...

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

João António - Onde está Jesus, hoje?

J.A. PINHEIRO TEIXEIRA (2019). Onde está Jesus, hoje? A Igreja como cristopresença e cristovivência. Lamego. 392 páginas.

       Colaborador próximo da Voz de Lamego, de que já foi Diretor, presença habitual nas redes sociais e em jornais da região, o Reitor do Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, Pe. João António, vai-nos brindando com algumas publicações, em forma de testemunho e de desafio, envolvendo-nos no seguimento de Jesus e na identificação com a Sua vida, procurando, como Ele, sintonizar, transparecer e testemunhar a vontade de Deus.
       A escrita do autor é muito característica. Quem lê as suas crónicas, conhece o estilo: contrapontos, antíteses, dilemas, expressões subordinadas, avançando a reflexão em forma de espiral, retomando temáticas, repondo algumas frases, reforçando as ideias propostas, fazendo-nos aprofundar e progredir na reflexão. São muitas a referências a autores consagrados na teologia mas também em outras áreas do saber, de ontem e de hoje, mas a referência inadiável é Jesus, a Sua intimidade com o Pai, na oração, com as Suas opções, sem excluir ninguém, a preferência pelos pobres, pelos mais frágeis da sociedade, por aqueles que estão à margem, excluídos e até odiados, a coerência entre as palavras e a vida, as obras como expressão da fé, contra a hipocrisia, pelo serviço, caracterizado pelo amor, opondo-se a qualquer tipo de imposição e poder. 
       Já tivemos a oportunidade de noticiar a apresentação do livro, realizada no dia 12 de agosto, no Santuário dos Remédios. Nessa ocasião, disponibilizámos também a apresentação feita por D. António Couto, Bispo de Lamego, nas primeiras páginas do livro. D. António recomenda vivamente a leitura desta obra, tendo em conta a temática eclesial a desenvolver na nossa Diocese no triénio pastoral de 2018-2021: Igreja na sua vocação e identidade, na sua missão e no seu caminho. Tendo-o lido, com proveito, assim o esperamos, , secundamos agora a sugestão de D. António. É uma leitura muito oportuna, cuja densidade não impede a clareza.
       A Igreja é de Cristo. O que é Cristo terá que ser a Igreja. O que é Cristo teremos que ser nós. Cristo transparece e vive a vontade do Pai. Assim também nós havemos de deixar transparecer o amor de Cristo pela Sua Igreja, pela humanidade.
       Dos muitos pedaços de texto com que poderíamos ilustrar o que dissemos sobre este livro, as palavras da contracapa são suficientemente luminosas e sugestivas: 
Amo-te, minha mãe, minha mãe Igreja.
Amo-te, porque me dás o que ninguém mais me consegue dar: Cristo, Maria, os santos e o convívio diário com pessoas que exalam o incomparável perfume de Deus.
Amo-te, porque nem nos momentos de maior fragilidade desistes da nossa humanidade.
Amo-te, porque és tu que tens levado o Evangelho da paz e da esperança a tantos deserdados deste mundo.
Amo-te, porque és tu que queres aqueles que mais ninguém quer.
Amo-te e quero-te mais do que nunca.
É contigo que espero continuar a viver. E é nos teus braços que, um dia, quero morrer.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

TOMÁŠ HALÍK - DIANTE DE TI OS MEUS CAMINHOS

TOMÁŠ HALÍK (2018). Diante de Ti os meus caminhos. Prior Velho: Paulinas Editora. 384 páginas.
       Tomáš Halík nasceu a 1 de junho de 1948, em Praga, na Checoslováquia num ambiente e numa família ateia ou a-religiosa. Com efeito, os pais, batizados, pararam na Primeira Comunhão, e seguem aquilo que autor designa "humanismo secular". Batizam o filho, mas não têm mais ligações à Igreja. Por volta dos 18 anos, Halík encontra-se com a fé e, particularmente, com o cristianismo. Uma das leituras, que fazia parte da biblioteca do seu pai, que o ajudou no encontro com a fé, foi Cherston, com as suas dúvidas e questionamentos. O autor deixa-se provocar por tais interrogações, até que se vai aproximando da fé.
       Licenciou-se em Ciências Sociais e Humanas pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Charles, em Praga e, clandestinamente, estudou teologia em Praga, tendo entretanto começado a frequentar a Igreja, a escutar os sermões, tornando-se acólito e sentindo a vocação ao sacerdócio, foi ordenado em Erfurt, em 1978. Mas terá que manter segredo deste facto.
       Durante o período comunista, considerado inimigo do regime, é impedido da docência universitária, o seu ambiente natural. Assume, então, a profissão de psicoterapeuta de toxicodependentes, situando-se na linha dos padres operários, pois não pode revelar a sua identidade eclesial. Em 1989, desafiado pelo Papa João Paulo II, tira um curso de pós-graduação na Universidade Pontifícia de Roma, Lateranense e outro na Faculdade Pontifícia de Teologia de Wroclaw, na Polónia..
       Trabalhou de perto com o futuro Presidente Václav Havel e, após 1989, tornou-se num dos seus conselheiros. Depois da queda do Comunismo, serviu como Secretário-geral da Conferência Episcopal da República Checa (1990-93).
       Hoje em dia, Halik é professor de sociologia na Universidade de Charles, em Praga (Departamento de Estudos Religiosos, Faculdade de Letras), pároco da Paróquia Académica e Presidente da Academia Cristã da República Checa. Desde 1989 tem proferido uma série de palestras em diversas universidades e comparecido em conferências internacionais na Europa, nos Estados Unidos da América, na Ásia, Austrália, Canadá e África do Sul.
       Os seus livros já foram publicados em várias línguas e diferentes países e recebeu diversos prémios literários nacionais e internacionais pelo diálogo intercultural e inter-religioso e pela defesa dos direitos humanos e pela liberdade espiritual. O seu livro “Paciência com Deus” recebeu o prémio do Melhor Livro Europeu de Teologia 2009/10 e, nos Estados Unidos da América, foi distinguido como “Livro do mês” em julho de 2010. Em 1992, o Papa João Paulo II nomeou-o conselheiro do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso e, em 2009, o Papa Bento XVI concedeu-lhe o título de Monsenhor – Prelado Honorário de Sua Santidade.
       Os leitores de Tomáš Halík já conhecem a forma entusiasta como escreve, melhor, como testemunha a fé no tempo atual, no contexto da Europa, mas muito da Checoslováquia e depois República Checa, de onde é natural, do ambiente comunista, para lá da cortina de ferro, da perseguição e silenciamento da Igreja e como a fé sobreviveu num contexto árido, ainda que o país pareça continuar a ser um dos mais "descrentes".
       Há muitas formas para se conhecer uma pessoa e o seu mundo, ou pelo menos, para fazer uma aproximação, já que a pessoa é sempre um mistério, o que diz, o que faz, além das abordagens feitas por terceiros. É sempre preferível, penso, ler o próprio, deixar que nos abra a sua casa e sobretudo a sua vida, a sua história, com os seus sonhos, projetos, desencantos e desencontros. É o que faz com esta obra, esta autobiografia. O autor percorre a história da sua vida, a família, o encontro com a fé e com a Igreja, a clandestinidade, sacerdote sem o poder revelar (quase) a ninguém. A sua mãe morreu sem o saber, muitos, tal como o seu Bispo, só o souberam muito mais tarde.
       Se viver num terreno árido no que à fé diz respeito, sob o domínio ideológico, social, cultural e político do comunismo, não foi fácil, pois havia sempre o risco de ser descoberto, ser denunciado, sujeito a interrogatório infindáveis, perseguido, encarcerado, a transição para a democracia revelou-se difícil e conturbada, até pela convivência entre os que se estiveram distantes em relação ao regime e os que colaboraram de perto, havendo sacerdotes nos dois lados da barricada. Foi necessário sarar feridas, mas também não se acomodar. O João Paulo II, o papa polaco, pela proximidade geográfica, mas sobretudo pela proximidade na luta contra o comunismo, foi uma referência, sancionando a democracia com uma visita histórica à Checoslováquia. O autor esteve com João Paulo II em diferentes ocasiões, nomeadamente para preparar a visita. João Paulo II, como vimos, desafiou-o a estudar numa das Universidades de Roma, para aprofundar os seus estudos teológicos, mas também para conhecer melhor a realidade mundial. A Universidade, com efeito, foi, tem sido, o seu mundo, como Professor. O seu sonho e o seu projeto de vida. Outro sonho foi viajar por todo o mundo. Impedido durante a regência comunista, logo após a democratização do país voltou a viajar para diversos países, entre os quais se conta Portugal.
       É um autor de pontes, acolhendo o cristianismo como paradoxo que enquadra a fé e a descrença, a Sexta-feira Santa e a Páscoa, relevando um diálogo vivo e honesto entre a fé e o ateísmo, a Igreja e a sociedade, a vivência religiosa e a cultura, apostando no ecumenismo e no diálogo inter-religioso. As dúvidas e os desencantos (desencontros) também existiram na sua caminhada de fé, mas optou por inseri-los na sua pertença à Igreja. O cristianismo abarca o dia e a noite, a luz e as trevas, a morte e a ressurreição. Os questionamentos ajudam a clarificar a fé, a aprofundar as razões da nossa esperança, fazem-nos retomar a busca por Deus, nunca nos deixando totalmente satisfeitos, mas procurando sempre, prosseguindo caminho, até à eternidade.
       Porquê esta autobiografia de Halík:
«Os meus leitores e ouvintes têm o direito de conhecer não só o contexto exterior, mas também o contexto interior da minha criação, não só o contexto da época e do meio social e cultural, mas também o contexto da minha história de vida, do meu drama da procura e do amadurecimento espiritual. Se quiserem, encontrarão aqui a chave para uma compreensão mais profunda daquilo que lhes tento comunicar nos meus livros e nas minhas palestras... 
Quem sou, na verdade? “A questão que me tornei para mim mesmo”, diz Santo Agostinho. Sim, o nosso eu, tal como o nosso Deus, deve ser para nós objeto de perguntas, dúvidas e buscas constantes. Também procuramos o nosso Eu e o nosso Deus através da narração da nossa história e de não escondermos a nossa emoção ao narrá-la. Apenas o coração que não deixou de se emocionar com o desassossego santo pode, no final, descansar no mar da paz divina»
Para ler outros trechos:

segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

São Tomás de Aquino, Presbítero e Doutor da Igreja

Nota Biográfica:
       Nasceu cerca do ano 1225, na família dos Condes de Aquino. Estudou primeiramente no mosteiro do Monte Cassino e depois em Nápoles. Entrou na Ordem dos Pregadores e completou os seus estudos em Paris e em Colónia, tendo tido como professor S. Alberto Magno. Escreveu muitas obras de grande erudição e exerceu o professorado, contribuindo notavelmente para o progresso da Filosofia e da Teologia. Morreu perto de Terracina no dia 7 de Março de 1274. A sua memória celebra-se a 28 de Janeiro, dia em que o seu corpo foi trasladado para Tolosa, no ano 1369.
Oração:
       Senhor nosso Deus, que fizestes de São Tomás de Aquino um exemplo admirável de santidade e de amor às ciências sagradas, dai-nos a graça de compreender os seus ensinamentos e de imitar a sua vida. Por Nosso Senhor...

Curiosidade:
       Conta-se que um dia um monge foi ter com São Tomás de Aquino e disse-lhe que andava um boi a voar. O santo levantou-se e foi à janela para ver tal fenómeno. O colega monge começou a rir-se por ele ter acreditado em algo tão surpreendente. São Tomás respondeu-lhe: é mais fácil ver um burro a voar que um monge a mentir...
Dos Comentários de São Tomás de Aquino, presbítero
(Collatio 6 super Credo in Deum) (Sec. XIII)

A cruz, exemplo de todas as virtudes

Que necessidade havia para que o Filho de Deus sofresse por nós? Uma necessidade grande e, por assim dizer, dupla: para remédio contra o pecado e para exemplo do que devemos fazer.
Foi em primeiro lugar um remédio, porque na paixão de Cristo encontramos remédio contra todos os males em que incorremos por causa dos nossos pecados.
Mas não é menor a utilidade que tem como exemplo. Na verdade, a paixão de Cristo é suficiente para orientar toda a nossa vida. Quem quiser viver em perfeição, basta que despreze o que Cristo desprezou na cruz e deseje o que Ele desejou. Nenhum exemplo de virtude está ausente da cruz.
Se queres um exemplo de caridade: Não há maior prova de amor do que dar a vida pelos seus amigos. Assim fez Cristo na cruz. E se Ele deu a vida por nós, não devemos considerar penoso qualquer mal que tenhamos de sofrer por Ele.
Se procuras um exemplo de paciência, encontras na cruz o mais excelente. Reconhece-se uma grande paciência em duas circunstâncias: quando alguém suporta com serenidade grandes sofrimentos, ou quando pode evitar os sofrimentos e não os evita. Ora Cristo suportou na cruz grandes sofrimentos, e com grande serenidade, porque sofrendo não ameaçava; e como ovelha levada ao matadouro, não abriu a boca. É grande portanto a paciência de Cristo na cruz: corramos com paciência a prova que nos é proposta, pondo os olhos em Jesus, autor e consumador da fé, que em lugar da alegria que lhe era proposta suportou a cruz, desprezando-lhe a ignomínia.
Se queres um exemplo de humildade, olha para o crucifixo: Deus quis ser julgado sob Pôncio Pilatos e morrer.
Se procuras um exemplo de obediência, segue Aquele que Se fez obediente ao Pai até à morte: assim como pela desobediência de um só, isto é, Adão, muitos foram constituídos pecadores, assim também pela obediência de um só muitos serão justificados.
Se queres um exemplo de desprezo pelas honras da terra, segue Aquele que é Rei dos reis e Senhor dos senhores, no qual se encontram todos os tesouros de sabedoria e de ciência e que na cruz está despojado dos seus vestidos, escarnecido, cuspido, espancado, coroado de espinhos e dessedentado com fel e vinagre.
Não te preocupes com trajes e riquezas, porque repartiram entre si as minhas vestes; nem com as honras, porque troçaram de Mim e Me bateram; nem com as dignidades, porque teceram uma coroa de espinhos e puseram-Ma sobre a cabeça; nem com os prazeres, porque para a minha sede Me deram vinagre.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

São João Crisóstomo, Bispo e doutor da Igreja

Nota biográfica:
       Nasceu em Antioquia, cerca do ano 349. Depois de ter recebido uma excelente educação, dedicou se à vida ascética; e, tendo sido ordenado sacerdote, consagrou se com grande fruto ao ministério da pregação. Eleito bispo de Constantinopla no ano 397, revelou grande zelo e competência nesse cargo pastoral, atendendo em particular à reforma dos costumes, tanto do clero como dos fiéis. A oposição da corte imperial e de outros inimigos pessoais levou o por duas vezes ao exílio. Perseguido por tantas tribulações, morreu em Comana (Ponto, Ásia Menor) no dia 14 de Setembro do ano 407. A sua notável diligência e competência na arte de falar e escrever, para expor a doutrina católica e formar os fiéis na vida cristã, mereceu lhe o apelativo de Crisóstomo, «boca de ouro».

Oração de (coleta):
       Senhor, fortaleza dos que esperam em Vós, que destes ao bispo São João Crisóstomo uma eloquência maravilhosa e uma grande coragem nas tribulações, concedei-nos que, iluminados pela sua sabedoria, nos fortaleça o exemplo da sua invencível constância. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.


São João Crisóstomo, Antes de partir para o exílio

Para mim, viver é Cristo e morrer é lucro

Muitas vagas e fortes tempestades nos ameaçam, mas não tememos ser submergidos, porque nos apoiamos na rocha firme. Por mais que se enfureça o mar, nunca poderá quebrar esta rocha; por mais que se levantem as ondas, nunca poderão afundar a nau de Jesus. Que havemos de temer? A morte? Para mim, viver é Cristo e morrer é lucro. O exílio? Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe. A confiscação dos meus bens? Nada trouxemos para este mundo e também nada daqui podemos levar. Para mim, os perigos deste mundo só merecem desprezo, e os seus bens não passam do ridículo. Não temo a pobreza nem ambiciono riquezas; não receio a morte nem desejo viver, senão para vosso proveito. Por isso, ao recordar vos a situação presente, exorto a vossa caridade para que tenha confiança.
Não ouvis a palavra do Senhor: Onde dois ou três se reúnem em meu nome, Eu estou no meio deles? E não estará presente o Senhor no meio de um povo tão numeroso, unido pelos vínculos da caridade? Estarei eu porventura confiado nas minhas próprias forças? Não. Eu tenho a promessa do Senhor, tenho comigo a sua palavra escrita: este é o meu bordão, esta é a minha segurança, este o meu porto tranquilo. Ainda que todo o mundo se perturbe, eu tenho a sua resposta por escrito, leio a sua Escritura: esta é a minha muralha, esta é a minha fortaleza. Que diz a Escritura? Eu estou convosco todos os dias até ao fim do mundo.
Cristo está comigo; a quem hei de temer? Ainda que se lancem contra mim as ondas do mar ou o furor dos príncipes, tudo isto para mim é mais desprezível do que uma teia de aranha. E se a vossa caridade me não retivesse aqui, não recusaria partir hoje mesmo para onde quer que fosse. Porque sempre estou dizendo: Senhor, seja feita a vossa vontade; não o que quer este ou aquele, mas o que Vós quereis que eu faça. Esta é a torre que me abriga, esta é a pedra firme que me sustenta, este é o bordão que não me deixa vacilar. Seja o que Deus quiser. Se Ele quer que eu permaneça aqui, fico Lhe agradecido. Se me chama para qualquer outro lado, sempre Lhe darei graças.
Onde eu estiver, ali estareis vós também; e onde estiverdes vós, ali estarei também eu. Somos um só corpo; e nem o corpo se separa da cabeça, nem a cabeça do corpo. Ainda que estejamos em lugares distantes, ficamos sempre unidos pela caridade e nem a própria morte poderá separar-nos. Porque o corpo morre, mas a alma sobrevive; e a minha alma sempre se recordará do meu povo.
Esta é a minha pátria e a minha família; vós sois os meus pais, meus irmãos e meus filhos; sois membros do mesmo corpo; sois a minha luz, uma luz mais amável que a luz do dia. Que brilho pode haver para mim mais agradável que a vossa caridade? O brilho da luz do dia é me útil na vida presente; mas a vossa caridade prepara me uma coroa para a vida futura.

sábado, 30 de setembro de 2017

São Jerónimo, presbítero e doutor da Igreja

       Sofrónio Aurélio Jerónimo nasceu em Estridon (Dalmácia), em 340. Em 354 foi para Roma a fim de estudar.
       Um dos seus ideais foi formar uma grande biblioteca. Por outro lado, desde o início em Roma, procurar visitar os túmulos dos mártires cristãos. No final da estadia em Roma, à volta dos 20 anos, recebeu o baptismo e encaminhou-se para Tréveros para fazer estudos teológicos.
       Em 373 ou 374 foi em Peregrinação à Terra Santa, mas a doença reteve-o muito tempo em Antioquia. Dedicou-se a aprender/estudar grego.
       Entretanto retirou-se para o deserto de Cálcida para se fazer eremita, aprendendo o hebraico.
       Em 379 foi ordenado sacerdote. De Antioquia foi para Constantinopla. Em 382 foi chamado pelo papa, São Dâmaso, vindo a tornar-se seu secretário.Reviu o texto latino da Bíblia, deixando-nos a tradução conhecida como Vulgata.
       Em 385, abandona Roma e de novo intenta a Peregrinação a Jerusalém, estabelecendo-se em Belém, no ano seguinte, onde esteve até à morte, em 30 de Setembro de 420, durante 34 anos.
       Procurou responder a todas as polémicas. Tinha um temperamento vigoroso e duro. Foi um dos mais notáveis tradutores e comentadores bíblicos.

Oração de colecta:
       Senhor nosso Deus, que destes ao presbítero São Jerónimo o dom de saborear a Sagrada Escritura e de a viver intensamente, fazei que o vosso povo se alimente cada vez mais com a vossa palavra e encontre nela a fonte da verdadeira vida. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
Comentário de São Jerónimo, presbítero, sobre o Livro do Profeta Isaías

Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo

Cumpro o meu dever, obedecendo aos preceitos de Cristo, que diz: Examinai as Escrituras, e: Procurai e encontrareis, para que não tenha de ouvir o que foi dito aos judeus: Estais enganados, porque não conheceis as Escrituras nem o poder de Deus. Se, de facto, como diz o apóstolo Paulo, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus, aquele que não conhece as Escrituras não conhece o poder de Deus nem a sua sabedoria. Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo.
Por isso quero imitar o pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e antigas, e também a esposa que diz no Cântico dos Cânticos: Guardei para ti, meu amado, frutos novos e antigos. Assim comentarei o livro de Isaías, apresentando o não apenas como profeta, mas também como evangelista e apóstolo. Ele próprio diz, referindo-se a si e aos outros evangelistas: Como são belos, sobre os montes, os pés dos que anunciam boas novas, dos que anunciam a paz. E Deus fala lhe como a um apóstolo: A quem hei de enviar? Quem irá ter com este povo? E ele respondeu: Eis me aqui, enviai-me.
Ninguém julgue que eu desejo explicar de modo completo, em tão poucas palavras, o conteúdo deste livro da Escritura, que abrange todos os mistérios do Senhor. Efectivamente, no livro de Isaías o Senhor é preanunciado como o Emanuel que nasceu da Virgem, como autor de prodígios e milagres, como morto, sepultado e ressuscitado de entre os mortos e como Salvador de todos os povos. Que dizer da sua doutrina sobre física, ética e lógica? Este livro é como um compêndio de todas as Escrituras e contém em si tudo o que a língua humana pode exprimir e a inteligência dos mortais pode compreender. Da profundidade dos seus mistérios dá testemunho o próprio autor quando escreve: Para vós toda a visão será como as palavras de um livro selado. Se se dá a quem sabe ler, dizendo: «Lê-o por favor», ele responde: «Não posso, porque está selado». E se se dá a quem não sabe ler, dizendo: «Lê-o por favor», ele responde: «Não sei ler».
E se parece débil a alguém esta reflexão, oiça o que diz o Apóstolo: As aspirações dos profetas sejam submetidas aos profetas, de modo que tenham possibilidade de falar ou de se calar. Portanto, os Profetas compreendiam o que diziam e por isso todas as suas palavras estão cheias de sabedoria e de sentido. Aos seus ouvidos não chegavam apenas as vibrações da voz; Deus falava ao seu espírito, como diz outro profeta: O Anjo falava em mim; e também: Clama nos nossos corações: Abba, Pai; e ainda: Escutarei o que diz o Senhor.

sábado, 22 de julho de 2017

TOMÁŠ HALÍK - A NOITE DO CONFESSOR

TOMÁŠ HALÍK (2014). A noite do Confessor. A fé cristã numa era de incerteza. Prior Velho: Paulinas Editora. 336 páginas.
       O autor viveu na clandestinidade, como cristão, sendo ordenado sacerdote também clandestinamente. O comunismo foi abafando a fé, a religião, o cristianismo. Segundo muitos, a fé torna-se mais combativa em ambientes adversos. Contudo, o autor afirma que o muito tempo a doutrinar os cidadãos contra a fé, contra o cristianismo, desvalorizando os seus valores e ideais fazendo desaparecer símbolos e sinais, pode conduzir à sua insignificância para gerações que viveram longe da fé e do cristianismo. Um mentira tantas vezes repetida passa por verdade. Os sinais visíveis desaparecem, as lembranças tornam-se mais ténues, deixa de haver "necessidade", outros deuses invadem o vazio deixado pela religião que, quando volta à liberdade, já foi substituída.
       O autor testemunha a fé como caminho, nem sempre fácil, e contacto com outras religiões e outras sensibilidades e num Ocidente invadido por milhentas ofertas, também religiosas, por vezes oferece-se Deus como se fosse um feira. O autor parte do princípio que Deus não mora à superfície, quem nem sempre há respostas fáceis para as dificuldades, para o caminho difícil da morte de um familiar, de uma doença crónica, de uma desgraça provocada, como o ataque às Torres Gémeas, ou uma catástrofe natural que destrói famílias ou cidades inteiras.
       Há momentos que o silêncio e a oração profunda é o que nos resta. E a esperança. Jesus revela-nos um Deus que é Pai, mas ainda assim que não impede o Seu nem o nosso sofrimento.
       Terrorismo. Duas guerras mundiais. Tráfico de armas e de seres humanos. Pobreza extrema ao lado de ganância.
       Tomáš Halík fala num segundo fôlego da fé, do cristianismo, num tempo mais fragmentado, com mais perguntas e tantas respostas. Um segundo fôlego para os cristãos que já nasceram cristãos e que entretanto procuraram respostas em outras vidas, outras filosofias ou outras religiões e que voltaram à Igreja. Não um regresso ao passado, mas um caminho de amadurecimento... como filhos pródigos, voltam para reconhecerem o verdadeiro e autêntico e agora enriquecidos pelo caminho percorrido. O diálogo ecuménico e interreligioso é também uma oportunidade. Não se trata de sincronismo, ou de diluição de uma nas outras religiões, mas a certeza do que o que é verdadeiro, bom, autêntico, em cada profissão de fé, nos há de enriquecer nas nossas convicções. Alguém que não tem convicções, que desconhece a sua fé, então irá para onde o vento for favorável.
       O diálogo autêntico entre religiões ou entre confissões cristãs só é possível com pessoas comprometidas, capazes de darem as razões da sua esperança, promovendo a paz, a justiça, a solidariedade.

Vale a pena ler as palavras do autor:
Tomáš Halík - Dá-nos um pouco de fé
Vieste aqui não para adquirir algo, mas para te libertares de muitas coisas», disse um velho e experiente monge a um noviço que o procurara no mosteiro. Ontem lembrei-me destas palavras, quando voltei a entrar no eremitério, pela primeira vez desde há um ano. E o mesmo pensamento assomou à minha mente esta manhã, ao meditar sobre a passagem do Evangelho em que os discípulos pedem a Jesus: «Aumenta a nossa fé!»; e Jesus replica: «Se tivésseis fé como um grão de mostarda...»
De repente, este texto falou-me de uma forma diferente da interpretação habitual. Não estará Jesus a dizer-nos com estas palavras: Porque é que me estais a pedir muita fé? Talvez a vossa fé seja «demasiado grande». Só se ela diminuir, até se tornar pequena como uma semente de mostarda, poderá dar o seu fruto e manifestar a sua força.
Uma fé minúscula não tem de ser necessariamente apenas o fruto da pecaminosa falta de fé. Por vezes, a «pouca fé» pode conter mais vida e confiança do que a «grande fé». Será que não podemos aplicar à fé aquilo que Jesus disse na parábola acerca da semente, que tem de morrer a fim de produzir grandes benefícios, porque desapareceria e não prestaria para nada se permanecesse imutável? Será que a fé não tem de passar também por um tempo de morte e de radical diminuição na vida do homem e ao longo da história? E se nós apreendermos esta situação segundo o espírito da lógica paradoxal do Evangelho, em que o pequeno prevalece sobre o grande, a perda é lucro e a diminuição ou redução significa abertura ao avanço da obra de Deus, não será porventura esta crise o «tempo da visitação», o kairos, o momento oportuno? Talvez nós nos tenhamos precipitado ao atribuir uma conotação «divina» a muitas das «questões religiosas» a que já nos habituámos, quando, na verdade, elas eram humanas – demasiado humanas, e só se forem radicalmente reduzidas é que a sua componente verdadeiramente divina entrará em jogo.
Um pensamento que há vários anos vinha germinando dentro de mim, como uma espécie de vago pressentimento, de repente explodiu de forma tão premente, que já não podia ser reprimido.
E como eu tenho uma preocupação perdurável não só por cristãos que têm um lugar fixo dentro da Igreja, mas também pelos buscadores espirituais fora da Igreja, ocorreu-me que nós talvez devamos, a essas pessoas em particular, essa «pouca fé», se quisermos oferecer-lhes finalmente pão em vez de uma pedra. E tendo em conta o facto de que muitas das coisas a que já nos acostumámos excessivamente lhes são estranhas, não serão precisamente elas as pessoas mais inclinadas para entender essa «pouca fé»?
Não, eu não estou a propor uma espécie de cristianismo «simplificado», «brando», «humanizado» e fácil, e ainda menos um romântico ou fundamentalista «regresso às origens». Antes pelo contrário!
Estou convencido de que é precisamente uma fé tem perada no fogo da crise, e livre daqueles elementos que são «demasiado humanos», que se revelará mais resistente às tentações constantes de simplificar e vulgarizar a religião, para falar bem e depressa.
O oposto da «pouca fé» que eu tenho em mente é, precisamente, «credulidade», a acumulação demasiado informal de «certezas» e construções ideológicas, até, por fim, não podermos ver a «floresta» da fé – a sua profundidade e o seu mistério –, tantas são as «árvores» dessa religião.
Com efeito, durante estes dias de reflexão na solidão de uma floresta, sinto-me atraído pela imagem da floresta ou do bosque como uma metáfora adequada do mistério religioso – uma floresta vasta e profunda, com a sua fascinante multiplicidade de formas de vida; um ecossistema com inúmeras camadas; uma sinfonia da natureza inacabada; um espaço espontaneamente intrincado – em tão grande contraste com os povoados humanos bem planeados e premeditados, com as suas ruas e parques –, um lugar em que nos podemos perder uma e outra vez, mas também descobrir, para nossa surpresa, ainda outros dos seus aspetos e dons.
Uma «fé pequena» não significa uma «fé fácil». O meu maior incentivo neste caminho para compreender a fé foi o misticismo carmelita – desde João da Cruz, que ensinou que devemos ir até aos próprios limites das nossas «capacidades espirituais» humanas, a nossa razão, a nossa memória e a nossa vontade, e só aí, onde sentimos que estamos num beco sem saída, é que surge a verdadeira fé, o amor e a esperança; e ao longo da «pequena via» de Teresa de Lisieux, que culminou nos momentos sombrios da sua morte.
A minha pergunta é se a nossa fé, tal como nosso Senhor, não terá de «sofrer muito, de ser crucificada e de morrer», antes de poder «ressuscitar dos mortos».
O que é que faz a fé sofrer, o que é que a crucifica? (Não me refiro à perseguição exterior dos cristãos.) Na sua forma primordial («ingenuidade primária», segundo as palavras de Paul Ricoeur) – ou seja, na forma que um dia deverá expirar –, a fé sofre, acima de tudo, da «multivalência da vida». A sua cruz é a profunda ambivalência da realidade: os paradoxos que a vida encerra, que desafiam sistemas de regras, simples proibições e prescrições – esta é a rocha contra a qual tantas vezes se despedaça. Mas não será possível que, em termos do seu significado e resultado, esse momento de «fragmentação» possa ser como quando partimos a casca de uma noz para chegar ao fruto?
Para muitas pessoas, essa «fé simples» – e a «simples moral» que dela deriva – encontra-se em grave crise quando choca com aquilo com que mais cedo ou mais tarde se deverá confrontar, nomeadamente a complexidade de certas situações de vida (que muitas vezes têm a ver com relações humanas), e a impossibilidade de escolher, dentre as muitas opções possíveis, uma solução sem qualquer tipo de reservas. O resultado é a «convulsão religiosa» e paroxismos de dúvida – aquilo, precisamente, com que esse tipo de fé não pode lidar.
Quando confrontados com a barricada das suas dúvidas imprevistas, alguns crentes «retrocedem» na direção da segurança esperada dos seus primórdios – a «fase infantil» da sua própria fé ou alguma imitação do passado da Igreja.
Essas pessoas procuram muitas vezes um refúgio em formas sectárias de religião. Vários grupos oferecem-lhes um ambiente em que podem «dar largas à oração», gritando, chorando e batendo palmas para se libertarem das suas ansiedades, experimentando uma regressão psicológica até à «fala de bebés» («falando em línguas»), além de serem embaladas e acariciadas pela presença de pessoas de tendência semelhante, e muitas vezes com problemas ainda maiores.
Além disso também há a oferta de vários «museus folclóricos» da Igreja do passado, que tentam simular um mundo de «simples piedade humana» ou um tipo de teologia, liturgia e espiritualidade de séculos passados, «preservado dos estragos da modernidade». Mas o adágio «não se pode entrar duas vezes no mesmo rio» também se aplica aqui. Na maior parte dos casos, acaba por se revelar como tendo sido apenas uma brincadeira romântica, uma tentativa de entrar num mundo que já não existe. As tentativas de encontrar morada em ilusões costumam caminhar a par e passo com esforços desesperados por fingir frente a si próprio e aos outros. É tão disparatado para um adulto tentar entrar no infantário da sua fé infantil ou recuperar o entusiasmo primordial do convertido, como tentar ultrapassar as fronteiras do tempo e penetrar no mundo espiritual da religião pré-moderna. O museu folclórico que as pessoas criam desse modo não é uma aldeia viva de piedade humana tradicional nem um mosteiro medieval. É antes uma coleção de projeções românticas das nossas noções de como era o mundo e a Igreja quando «ainda estavam em ordem». Trata-se apenas de caricaturas tristemente cómicas do passado.
O «fundamentalismo» é um distúrbio de uma fé que tenta entrincheirar-se no meio das sombras do passado, defendendo-se da perturbadora complexidade da vida. O fanatismo, a que aquele está muitas vezes ligado, constitui apenas uma reação mal-humorada à frustração resultante, à descoberta amargurada (mas não confessada) de que se tratava de um falso trilho. A intolerância religiosa é muitas vezes fruto de inveja encoberta de outros, dos «de fora», uma inveja que procede dos corações amargurados de pessoas que não estão dispostas a reconhecer o seu sentimento de profunda insatisfação com a sua própria casa espiritual. Falta-lhes força para mudá-la ou abandoná-la; por isso, agarram-se desesperadamente a ela e tentam ocultar, nos bastidores, tudo o que lhes possa recordar possíveis alternativas. Projetam as suas próprias dúvidas não reconhecidas nem resolvidas sobre os outros, e aí lutam contra eles.
Muitas vezes, a fé que parece «grande» e «firme» é, na realidade, uma fé de chumbo, solidificada e inchada. Muitas vezes a única coisa grande e firme da mesma é a «armadura» que, com muita frequência, oculta a ansiedade da falta de esperança.
A fé que aguenta o fogo da cruz sem bater em retirada perderá, provavelmente, grande parte daquilo com que se costumava identificar ou a que se tinha habituado, mesmo que fosse meramente superficial. Grande parte disso ficará queimado. Contudo, a sua nova maturidade tornar-se-á sobretudo evidente pelo facto de já não usar «armadura»; em vez disso, será um pouco como aquela «fé nua» de que falam os místicos. Já não será agressiva nem arrogante, e ainda menos impaciente na sua relação com os outros. Sim, em comparação com a fé «grande» e «firme» pode parecer pequena e insignificante – será como nada, como uma semente de mostarda.
Mas é precisamente assim que Deus atua no mundo, diz o Mestre Eckhart: Ele é «nada» num mundo de seres, porque Deus não é um ser entre outros seres. E Eckhart prossegue afirmando que temos de nos transformar em «nada» se quisermos encontrá-lo. Enquanto quisermos ser «alguma coisa» (ou seja, significar alguma coisa, ter alguma coisa, saber alguma coisa, em suma, fixarmo-nos em seres individuais e no mundo das coisas), não seremos livres para encontrá-lo.
Talvez a nossa fé também estivesse assoberbada por muitas coisas que tivessem a natureza desse «algo» – as nossas ideias, projeções e desejos pessoais, as nossas expectativas demasiado humanas, as nossas definições e teorias, o mundo das nossas histórias e mitos, a nossa «credulidade». Talvez ainda não tenhamos tido a nossa quota-parte de tudo isso e queiramos mais: Dá-nos mais fé, mais certeza e segurança frente às complexidades da vida!
Cristo, porém, diz: «Tende a fé de Deus», não do tipo «humano» que se poderia perder entre as ideologias e as filosofias do nosso tempo. Um «tipo de fé divino» significa uma fé minúscula, quase impercetível, do ponto de vista deste mundo!
Deus, que é anunciado e representado neste mundo por Aquele que foi crucificado e ressuscitou dos mortos, é o Deus do paradoxo: aquilo que é sábio para as pessoas, é louco para Ele; aquilo que é loucura e pedra de tropeço para as pessoas, é sabedoria a seus olhos; aquilo que as pessoas consideram fraqueza, para Ele é força; aquilo que as pessoas consideram grande, é visto por Ele como sendo pequeno; e aquilo que lhes parece pequeno, Ele considera-o grande.
Mesmo sob as rajadas de vento que continuam a levar para longe grande parte da nossa religião – quer se trate da ofensiva das críticas do ateísmo, quer da tempestade das nossas próprias dúvidas e crises inteiras de fé, ou do clima de «espírito hostil» da nossa época –, porventura seremos capazes, por fim, de discernir o sopro libertador do Espírito Santo, tal como os israelitas, graças aos seus profetas, foram capazes de discernir a «lição de Deus», nas suas derrotas, e o «servo de Deus», no seu inimigo Nabucodonosor?
Quando os seres humanos, ou «o povo de Deus», não são capazes de abandonar algo que os ata e impede de empreender a futura viagem, o Senhor recorre por vezes a métodos de libertação que não nos parecem nada agradáveis. Zugrunde gehen, como sabemos através de Nietzsche, não significa apenas naufragar e desaparecer, mas também, literalmente, «descer até aos fundamentos» e tocar o cerne.
E assim encerro esta primeira meditação com uma oração: Senhor, se a nossa religiosidade está sobrecarregada das nossas certezas, leva parte dessa «grande fé» para longe de nós. Liberta a nossa religião daquilo que é «demasiado humano» e dá-nos «a fé de Deus». Dá-nos antes, se for essa a tua vontade, um «pouco de fé», uma fé tão pequena como uma semente de mostarda – pequena e cheia do teu poder!
      O autor recolhe-se para escrever num mosteiro, um eremitério na floresta da Renânia. Silêncio, oração e meditação. Escuta, interação com a natureza, mas também com as pessoas que passam. Daí brota uma leitura profunda, rezada, clarificadora, procurando criar pontes, desafiando, inquietando-nos. Boa leitura.

Vale a pena ler também o comentário do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura - AQUI - o texto transcrito foi retirado desse comentário.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

D. ANTÓNIO COUTO - A Misericórdia. Lugar e Modo

D. ANTÓNIO COUTO (2016). A Misericórdia. Lugar e Modo. Lavra: Autores e Letras e Coisas. 84 páginas.
       Vivemos o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, iniciado a 8 de dezembro de 2015, solenidade da Imaculada Virgem Maria, e a encerrar no dia 20 de novembro de 2016, solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. O propósito do Papa Francisco foi que se vincasse em definitivo e com clarividência a misericórdia de Deus. Num tempo e mundo complexos, a misericórdia de Deus há de resplandecer como proposta de salvação, como desafio, como esperança, como compromisso. Jesus é o Rosto da Misericórdia. Os cristãos devem alimentar-se da misericórdia de Deus e irradia misericórdia para com os outros, para com toda a criação.
       Com a convocação deste Ano Santo da Misericórdia, a reflexão à volta deste atributo de Deus e a sua fundamentação na bíblia, na história do povo judeu, na vida da Igreja.
       D. António Couto anteriormente publicou o Livro dos Salmos, já dentro deste Jubileu e com a referência que os salmos estudados têm com a Misericórdia de Deus. Porém, este novo estudo é especificamente sobre a Misericórdia.
       Em conferências, jornadas bíblicas, formação do clero e de leigos, D. António Couto tem intervindo sobre esta temática, com o enquadramento do jubileu, com as obras de misericórdia, com a contextualização litúrgica. Aqui coloca nas nossas mãos um estudo mais detalhado sobre a misericórdia, a linguagem da bíblia, a origem das palavras utilizadas, a misericórdia no Antigo Testamento, a misericórdia revelada em plenitude da Pessoa e na Mensagem de Jesus Cristo, com o Seu proceder, compassivo, com as parábolas da misericórdia que mostram o modo de ser de Deus.
       Este pequeno livro subdivide-se em três capítulos: 1 - Deus também reza em clave de misericórdia; 2 - A magna charta do amor de Deus (Ex 34, 6-7), e 3 - Jesus misericordioso, transparência da misericórdia do Pai.
"Deus fiel, fiável, Sim irrevogável, matriz fidedigna, maternal amor preveniente, condescendente, permanente, paciente, palavra primeira e confidente, providente, eficiente, a dizer-se sempre e para sempre dita, rochedo firme, abrigo seguro, alcofa para o nascituro, luz no escuro, amor forte sem medo da morte e do futuro. Deus fiel e confidente, fala, que o teu servo escuta atentamente. Nada do que dizes cairá por terra. A tua palavra à minha mesa, minha habitação, minha alegria, minha exultação, energia do meu coração, luz que me guia e que me alumia. A minha luz é reflexa, a minha palavra é lalação, de ti decorre, para ti corre a minha vida, dita, dada, recebida e oferecida. O teu rosto, Senhor, eu procuro, não escondas de mim o teu rosto, o teu gosto, a tua música. Dispõe de mim sempre, Senhor"

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Leitura: TOMÁŠ HALÍK - QUERO QUE TU SEJAS

TOMÁŠ HALÍK (2016). Quero que Tu sejas! Podemos acreditar no Deus do Amor. Prior Velho: Paulinas Editora. 272 páginas.
       "Tomáš Halík nasceu emm Praga atual República Checa, no ano de 1948. Licenciou-se em Sociologia, Filosofia e Psicologia na Universidade de Charles, Praga, nos inícios dos anos 70. Estudou Teologia, clandestinamente, na mesma cidade, estudo que continuou na Universidade Lateranense, em Roma, e na Faculdade Pontifícia de Teologia, em Wroclaw (Polónia). Durante a ocupação comunista, sendo perseguido como «inimigo do regime», trabalhou como psicoterapeuta de toxicodependentes. Foi clandestinamente ordenado sacerdote em Erfurt (Alemanha do Leste, em 1978, e trabalhou na «Igreja subterrânea», onde foi um dos assessores mais próximos do cardeal Tomášek".
       Na lombada interior da capa, breve apresentação, de Tomáš Halík, de quem já sugerimos outro belíssimo título - O MEU DEUS É UM DEUS FERIDO. Depois de ter escrito sobre fé e esperança, alguém lhe perguntou porque não escrevia sobre o amor. 
       O autor começa por fazer uma pergunta que habitualmente vamos fazendo, mas para a qual nem sempre encontramos uma resposta satisfatória: deonde vem o mal?. "É possível que hoje em dia nos tenhamos acostumado tanto ao mal, à violência e ao cisnismo, que façamos a nós próprios, com surpresa, outra pergunta: donde provém a ternura e a bondade?
       Ao longo do livro, enraizado na Sagrada Escritura, mas também na história, na experiência, na cultura, o autor vai mostrando que o amor é fonte de todo o bem e em todo o bem é possível encontra Deus de amor. Um dos fios condutores é apresentar o duplo mandamento, a interligação entre o amor a Deus e ao próximo como a si mesmo. Amar a Deus, amando o próximo. Deus está em nós. O amor habita-nos na identidade mais profunda, onde podemos encontrar Deus.
       Mais que uma resposta, Deus é pergunta. Não é um dado adquirido, mas sempre me transcende. Vai além de toda a compreensão humana, ainda que Se deixe ver em Jesus Cristo. "Os meus livros não são destinados àqueles que têm certeza absoluta de que compreendem perfeitamente o que significa o mandamento do amor a Deus. Esses certamente já têm a sua recompensa. Eu dirigo-me àqueles que buscam o significado dessas palavras, quer se considerem crentes... quase-crentes ou «antigos crentes»... incrédulos e agnósticos ou não crentes".

Algumas expressões:
"Associar os mandamentos do amor a Deus e o mandamento do amor uns aos outros - o núcleo do Evangelho - é a forma de redescobrir o Deus que «desapareceu», especificamente, na nossa relação com o próximo. Deus acontece onde quer que nós amemos as pessoas, o nosso próximo".
"Deus não pode ser obejeto de amor porque Deus não é um obejeto; a perceção objetiva de Deus conduz à idolatria. Eu não posso amar a Deus da mesma maneira que amo outro ser humano, a minha cidade, a minha paróquia ou o meu trabalho. Deus não está diante de mim, tal como a luz também não está diante de mim: eu não consigo ver a luz, só posso ver as coisas iluminadas pela luz".
"Deus acontece ali onde nós amamos".
"É necessário despir a própria alma, porque só quando já nada restar entre nós e a vontade de Deus, se poderá dar aquela união com Deus a que se chama Amor. Nesse momento somos «transformados em Deus por amor»".
"Há vários anos que me sinto fascinado com um definição do amor que é atribuída a Santo Agostinho: amo: volo ut sis (Amo-te, quero que Tu seja!)... «Eu quero que tu sejas». Esta frase exprime a ausência de dúvidas acerca da existência do amado; a sua existência é óbvia para mim, e o meus sentidos podem prová-la. esta frase exprime a minha confirmação fundamental da existência do meu amado, a minha alegria por ele existir. Eu não me limito a notar a sua existência, experimento-a como gratidão, como qualquer coisa que enriquece fundamentalmente a minha própria vida, sem o meu amado, o meu eu profundo perderia a sua integridade, sem ele o meu mundo ficaria desolado e terrivelmente cinzento.
No amor eu abro um lugar de segurança dentro de mim para a pessoa que amo, no qual ela pode ser plena e livremente quem é. Não precisa de representar nem de fingir para mim, nem de tentar merecer continuamente o meu amor através das suas ações. Além disso, só messe lugar seguro de amor é que uma pessoa se pode tornar aquilo que até então só era em potência. Só agora se pode aperceber do seu pleno potencial, que, sem amor, ficaria atrofiado, murcho e sufocado nas suas próprias raízes.
Estou contente por te ter conhecido; alegro-me pelo milagre do amor; quero que a pessoa a quem amo continue a estar comigo. Sim, gostaria que vivêssemos juntos para sempre. A frase «Eu amo-te, quero que Tu sejas» de Agostinho conduz a outra frase, ou seja, à definição magnífica de Gabriel Marcel: «Amar alguém é dizer-lhe: "Tu não morrerás"»... Dentro do verdadeiro amor há sempre uma fonte de eternidade".
"Deus não é «uma terceira pessoa» na relação entre duas pessoas; Deus é a base e a fonte dessa relação".
"Amar a Deus significa sentirmo-nos profundamente gratos pelo milagre da vida e exprimir essa gratidão ao longo da própria vida, aceitando a minha sorte mesmo quando esta não condiz com os meus planos e expectativas. Amar a Deus significa aceitar com paciência e atenção os encontros humanos como mensagens de Deus cheias de sentido - mesmo quando sou incapaz de as compreender devidamente. Amar a deus significa confiar que até os momentos difíceis e obscuros me revelarão um doa o seu significado".
"Deus não pode forçar os seres humanos a aceitar a salvação, o perdão e a misericórdia. Teoricamente é possível que alguém, pelo seu profundo desejo de que «Deus não seja», manifeste esse perverso desejo de forma tão consistente que acabe por se esquivar fatalmente a Deus e por se condenar a si próprio ao eterno afastamento de Deus e separação em relação a Ele".
"Aquilo que Deus traz para a história, onde nós o devemos procurar, é o amor. Eu sou cristão porque aprendi a acreditar nesse amor".
"A fé requer a coragem de escolher e de confiar".
Citando Teilhard de Chardin, "O amor é a única força capaz de unificar as coisas sem as destruir"

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Dolores Aleixandre: Contar a Jesús

DOLORES ALEIXANDRE, rscj (2003). Contar a Jesús. Lectura Orante de 24 textos del Evangelio. Madrid: Editorial CCS. 288 páginas.
       Dolores Aleixandre, religiosa do Sagrado Coração, teóloga e licenciada em filologia bíblica. Com 20 anos, ingressou na Congregação do Sagrado Coração de Jesus. Foi mestra de noviças, responsável pela pastoral nos colégios, participando nas associações de mulheres... Em 1986 assumiu, como professora, a cadeira Bíblica "Profetas",  na Universidade de Comillas, onde permaneceu mais de 20 anos. Tem diversos livros escritos. Alguns deles em português. Um dos títulos mais conhecidos: "Olhos fixos em Jesus", em conjunto com José Antonio Pagola e Juan Martín Velasco.
Neste livro que sugerimos, a autora parte de 24 textos do evangelho, situando-os no contexto da Sagrada Escritura, refletindo o que o texto diz e em que ambiente Jesus viveu determinado acontecimento, encontro, cura, perdão, em que situações atuais são verificáveis as palavras de Jesus e a Sua forma de agir, em que realidade podemos intervir para imitar Jesus.
       É, como refere Dolores Aleixandre, uma leitura orante, a reflexão há de levar-nos ao assentimento, à conversão, assumindo a docilidade e proximidade com Jesus, de tal que nos faça também rezar, agradecer, louvar, meditar a palavra de Deus.
Vejamos algumas expressões do texto:
"Esta é a verdadeira definição de Deus que anunciam os profetas: a sua santidade consiste no seu amor e por isso não é algo que nos afaste d'Ele, mas, pelo contrário, que nos persegue, como o amor. A sua grandeza não consiste tanto no seu poder, mas na sua misericórdia, no seu perdão e na sua fidelidade. A paciência humana conhece limites, a de Deus não: essa é a diferença entre Ele e nós" p 53)

"Quando nos sentimos divididos entre o medo e a confiança, depende sempre de nós a decisão de olhar a realidade somente como ameaça, ouvindo somente o bramido da tormenta, ou dar crédito à fé que nos garante que Alguém está ao nosso lado para nos sustentar no meio dos embates da vida. Conforme for a nossa resposta, nos afundaremos ou nos sentiremos acompanhados por Aquele que pode fazer-nos passar a salvo à outra margem. Isto é a fé" (p 56).
"Deus dá-Se a conhecer, não como 'aquele que faz morrer no Egito', mas como que está sempre a favor da vida do Seu povo, libertando-o da escravidão, cuidando e alimentando-o no deserto, como uma Mãe a seus filhos. Dá a conhecer a Sua glória com esse gesto de possibilitar e conceder a vida; é o mesmo gesto que Jesus dará na multiplicação do pães e no dom da Eucaristia" (p 97)
"Jesus não foi só o Bom Pastor que cuidou do seu rebanho, mas também o defendeu da ameaça do lobo ao longo da sua vida" (p 203)
Unção da Betânia (Mc 14, 1-9)
"O anonimato da mulher permite o leitor identificar-se com ela. O seu gesto inscreve-se dentro do que se espera de um verdadeiro discípulo:

  • No meio da cegueira dos que rodeiam Jesus, ela soube reconhecer o momento decisivo para se aproximar e obedeceu ao mandato de permanecer vigilante (Mc 13, 33).
  • Não veio pedir nada, mas oferecer gratuitamente, obedecendo à Palavra de Jesus: «A medida que usardes com os outras, será usada convosco» (Mc 4, 24).
  • Jesus dirá: «Ide por todo o mundo e proclamai a Boa Notícia a toda a humanidade» (Mc 16, 15). Ela antecipou-se a esse mandato.
  • Jesus tinha perguntado: «Quem dizem os homens que é o filho do homem?» (Mc 8, 27). Ela deu-lhe a resposta sem pronunciar uma palavra e com a unção proclama-O Rei e Messias.
  • O seu gesto de desperdício e de esvaziamento colocam-na no caminho da perda que, segundo, Jesus, conduz à vitória (Mc 8, 35)
  • Ao contrário do jovem rico (Mc 10, 21), ela parece ter concentrado todo o seu possuir no perfume de alto preço e deu-o ao Pobre por excelência, Àquele que só possui umas poucas horas de vida.
  • Como discípula do Filho do Homem que não veio para ser servido, mas para servir (Mc 10, 45), ela assume o caminho do serviço e com o seu gesto de derramar o perfume está a antecipar-se ao de Jesus na Última Ceia: «Este é o Meu sangue derramado por muitos» (Mc 14, 24), cumprindo o primeiro mandamento de amar a Deus sobre todas as coisas (Mc 12, 29)
  • Tal como a viúva pobre que para Jesus deu «tudo o que possuía» (Mc 12, 44), ela faz, segundo Jesus, «o que podia».
  • Seguindo a recomendação de Jesus, «não vos preocupeis com a vossa defesa» (Mc 13, 11), deixa que seja o próprio Jesus a tomar partido por ela diante as críticas dos comensais.
       Os seus gestos mantêm-se vivos na memória da comunidade cristã, juntamente com todos aqueles homens e mulheres que tomaram, em algum momento da sua vida,, a decisão do seguimento" (p 216).

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

BENTO XVI - Santo Agostinho de Hipona (1)

Queridos irmãos e irmãs!
       Depois das grandes festas de Natal, gostaria de voltar às meditações sobre os Padres da Igreja e falar hoje do maior Padre da Igreja latina, Santo Agostinho: homem de paixão e de fé, de grande inteligência e incansável solicitude pastoral, este grande santo e doutor da Igreja é muito conhecido, pelo menos de fama, também por quem ignora o cristianismo ou não tem familiaridade com ele, porque deixou uma marca muito profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo. Pelo seu singular relevo, Santo Agostinho teve uma influência vastíssima, e poder-se-ia afirmar, por um lado, que todas as estradas da literatura latina cristã levam a Hipona (hoje Annaba, à beira-mar da Argélia), o lugar onde era Bispo e, por outro, que desta cidade da África romana, da qual Agostinho foi Bispo de 395 até à morte em 430, se ramificam muitas outras estradas do cristianismo sucessivo e da própria cultura ocidental.
       Raramente uma civilização encontrou um espírito tão grande, que soubesse acolher os seus valores e exaltar a sua intrínseca riqueza, inventando ideias e formas das quais se alimentariam as gerações vindouras, como ressaltou também Paulo VI: "Pode-se dizer que todo o pensamento da antiguidade conflui na sua obra e dela derivam correntes de pensamento que permeiam toda a tradição doutrinal dos séculos sucessivos" (AAS 62, 1970, p. 426). Além disso, Agostinho é o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras. O seu biógrafo Possídio diz: parecia impossível que um homem pudesse escrever tantas coisas durante a vida. Falaremos destas diversas obras num próximo encontro. Hoje a nossa atenção concentra-se sobre a sua vida, que se reconstrói bem pelos escritos, e em particular pelas Confessiones, a extraordinária autobiografia espiritual, escrita em louvor a Deus, que é a sua obra mais famosa. E são precisamente as Confessiones agostinianas, com a sua atenção à interioridade e à psicologia, que constituem um modelo único na literatura ocidental, e não só, também não religiosa, até à modernidade. Esta atenção à vida espiritual, ao mistério do eu, ao mistério do Deus que se esconde no eu, é uma coisa extraordinária sem precedentes e permanece para sempre, por assim dizer, um "vértice" espiritual.
        Mas, falando da sua vida, Agostinho nasceu em Tagaste na Província de Numídia, na África romana a 13 de Novembro de 354, filho de Patrício, um pagão que depois se tornou catecúmeno, e de Mónica, cristã fervorosa. Esta mulher apaixonada, venerada como santa, exerceu sobre o filho uma grandíssima influência e educou-o na fé cristã. Agostinho recebeu também o sal, como sinal de acolhimento no catecumenato. E permaneceu sempre fascinado pela figura de Jesus Cristo; aliás, ele diz que amou sempre Jesus, mas que se afastou cada vez mais da fé eclesial, da prática eclesial, como acontece hoje com muitos jovens.

       Agostinho tinha também um irmão, Navígio, e uma irmã, da qual não sabemos o nome e que, tendo ficado viúva, chefiou depois um mosteiro feminino. O jovem, de inteligência aguda, recebeu uma boa educação, mesmo se nem sempre foi um estudante exemplar. Contudo ele estudou bem a gramática, primeiro na sua cidade natal, depois em Madaura, e a partir de 370 rectórica em Cartago, capital da África romana: dominava perfeitamente a língua latina, mas não conseguiu dominar do mesmo modo o grego nem aprendeu o púnico, falado pelos seus conterrâneos. Precisamente em Cartago Agostinho leu pela primeira vez o Hortensius, um escrito de Cícero que depois se perdeu, o qual está na base do seu caminho rumo à conversão. De facto, o texto de Cícero despertou nele o amor pela sabedoria, como escreverá, já Bispo, nas Confessiones: "Aquele livro mudou verdadeiramente o meu modo de sentir", a ponto que "de repente perdeu valor qualquer esperança vã e desejava com um incrível fervor do coração a imortalidade da sabedoria" (III, 4, 7).
       Mas estando convencido de que sem Jesus não se pode dizer que se encontrou efectivamente a verdade, e dado que neste livro apaixonante lhe faltava aquele nome, logo após tê-lo lido começou a ler a Escritura, a Bíblia. Mas ficou desiludido. Não só porque o estilo latino da tradução da Sagrada Escritura era insuficiente, mas também porque o próprio conteúdo lhe pareceu insatisfatório. Nas narrações da Escritura sobre guerras e outras vicissitudes humanas não encontrava a altura da filosofia, o esplendor de busca da verdade que lhe é próprio. Contudo, não queria viver sem Deus e assim procurava uma religião que correspondesse ao seu desejo de verdade e também ao seu desejo de se aproximar de Jesus. Caiu assim na rede dos maniqueus, que se apresentavam como cristãos e prometiam uma religião totalmente racional. Afirmavam que o mundo está dividido em dois princípios: o bem e o mal. E assim se explicaria toda a complexidade da história humana. Agostinho apreciava também a moral dualista, porque implicava uma moral muito alta para os eleitos: e para quem, como ele, a ela aderia, era possível uma vida muito mais adequada à situação do tempo, sobretudo para um homem jovem. Portanto, tornou-se maniqueu, convencido naquele momento de ter encontrado a síntese entre racionalidade, busca da verdade e amor a Jesus Cristo. E teve também uma vantagem concreta para a sua vida: de facto, a adesão aos maniqueus abria perspectivas fáceis para fazer carreira. Aderir àquela religião que contava muitas personalidades influentes permitia-lhe prosseguir a relação estabelecida com uma mulher e continuar a sua carreira. Desta mulher teve um filho, Adeodato, por ele muito querido, muito inteligente, que estará depois presente na preparação para o baptismo junto do lago de Como, participando naqueles "Diálogos" que Santo Agostinho nos transmitiu. Infelizmente o jovem faleceu prematuramente. Professor de gramática aos vinte anos na sua cidade natal, regressou cedo a Cartago, onde foi um brilhante e celebrado mestre de rectórica. Todavia, com o tempo, Agostinho começou a afastar-se da fé dos maniqueus, que o desiludiram precisamente sob o ponto de vista intelectual porque não esclareceram as suas dúvidas, e transferiu-se para Roma, e depois para Milão, onde na época residia a corte imperial e onde obtivera um lugar de prestígio graças ao interesse e às recomendações do prefeito de Roma, o pagão Símaco, hostil ao Bispo de Milão, Santo Ambrósio.

       Em Milão Agostinho adquiriu o costume de ouvir inicialmente para enriquecer a sua bagagem rectórica as lindíssimas pregações do Bispo Ambrósio, que tinha sido representante do imperador para a Itália setentrional, e pela palavra do grande prelado milanês o rectórico africano sentiu-se fascinado; e não só pela sua rectórica, sobretudo o conteúdo atingiu cada vez mais o seu coração. O grande problema do Antigo Testamento, da falta de beleza rectórica, de elevação filosófica resolveu-se, nas pregações de santo Ambrósio, graças à interpretação tipológica do Antigo Testamento: Agostinho compreendeu que todo o Antigo Testamento é um caminho rumo a Jesus Cristo. Encontrou assim a chave para compreender a beleza, a profundidade também filosófica do Antigo Testamento e percebeu toda a unidade do mistério de Cristo na história e também a síntese entre filosofia, racionalidade e fé no Logos, em Cristo Verbo eterno que se fez carne.
        Em breve tempo Agostinho deu-se conta de que a literatura alegórica da Escritura e a filosofia neoplatónica praticadas pelo Bispo de Milão lhe permitiam resolver as dificuldades intelectuais que, quando era jovem, na sua primeira abordagem aos textos bíblicos, lhe pareciam insuperáveis.

       À dos escritos dos filósofos Agostinho fez seguir-se a leitura renovada da Escritura e sobretudo das Cartas paulinas. A conversão ao cristianismo, a 15 de Agosto de 386, colocou-se no ápice de um longo e atormentado percurso interior, do qual falaremos noutra catequese, e o africano transferiu-se para o campo a norte de Milão, nas proximidades do lago de Como com a mãe Mónica, o filho Adeodato e um pequeno grupo de amigos a fim de se preparar para o baptismo. Assim, aos trinta e dois anos, Agostinho foi baptizado por Ambrósio a 24 de Abril de 387, durante a vigília pascal, na Catedral de Milão.

       Depois do baptismo, Agostinho decidiu regressar à África com os amigos, com a ideia de praticar uma vida comum, de tipo monástico, ao serviço de Deus. Mas em Óstia, à espera de partir, a mãe improvisamente adoeceu e pouco mais tarde faleceu, dilacerando o coração do filho. Regressando finalmente à pátria, o convertido estabeleceu-se em Hipona para ali fundar um mosteiro. Nesta cidade da beira-mar africana, apesar das suas resistências, foi ordenado presbítero em 391 e iniciou com alguns companheiros a vida monástica na qual pensava há tempos, dividindo os seus dias entre a oração, o estudo e a pregação. Ele desejava estar só ao serviço da verdade, não se sentia chamado à vida pastoral, mas depois compreendeu que a chamada de Deus era para ser pastor entre os outros, e oferecer assim o dom da verdade aos demais. Em Hipona, quatro anos mais tarde, em 395, foi consagrado Bispo. Continuando a aprofundar o estudo das Escrituras e dos textos da tradição cristã, Agostinho foi um Bispo exemplar no seu incansável compromisso pastoral: pregava várias vezes por semana aos seus fiéis, apoiava os pobres e os órfãos, cuidava da formação do clero e da organização de mosteiros femininos e masculinos. Em pouco tempo o antigo rectórico afirmou-se como um dos representantes mais importantes do cristianismo daquele tempo: muito activo no governo da sua diocese com notáveis influências também civis nos mais de 35 anos de episcopado, o Bispo de Hipona exerceu grande influência na guia da Igreja católica da África romana e mais em geral no cristianismo do seu tempo, enfrentando tendências religiosas e heresias tenazes e desagregadoras como o maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo, que punham em perigo a fé cristã no Deus único e rico em misericórdia.

       E a Deus se confiou Agostinho todos os dias, até ao extremo da sua vida: atingido por febre, quando havia três meses que Hipona estava assediada pelos vândalos invasores, o Bispo narra o amigo Possídio na Vita Augustini pediu para transcrever em letras grandes os salmos penitenciais "e fez pregar as folhas na parede, de modo que estando de cama durante a sua doença os podia ver e ler, e chorava ininterruptamente lágrimas quentes" (31, 2). Transcorreram assim os últimos dias da vida de Agostinho, que faleceu a 28 de Agosto de 430, quando ainda não tinha completado 76 anos. Dedicaremos os próximos encontros às suas obras, à sua mensagem e à sua vicissitude interior.

BENTO XVI - Santo Agostinho de Hipona (2)

Queridos irmãos e irmãs!
       Hoje, como na passada quarta-feira, gostaria de falar do grande Bispo de Hipona, Santo Agostinho. Quatro anos antes de morrer, ele quis nomear o sucessor. Por isso, a 26 de Setembro de 426, reuniu o povo na Basílica da Paz, em Hipona, para apresentar aos fiéis aquele que tinha designado para tal tarefa. Disse: "Nesta vida somos todos mortais, mas o último dia desta vida é para cada indivíduo sempre incerto. Contudo, na infância espera-se chegar à adolescência; na adolescência à juventude; na juventude à idade adulta; na idade adulta à maturidade; na idade madura à velhice. Não se tem a certeza de a alcançar, mas espera-se. A velhice, ao contrário, não tem diante de si outro período no qual esperar; a sua própria duração é incerta... Eu por vontade de Deus cheguei a esta cidade no vigor da minha vida; mas agora a minha juventude passou e eu já sou velho" (Ep 213, 1). Nesta altura Agostinho pronunciou o nome do sucessor designado, o sacerdote Heráclito. A assembleia explodiu num aplauso de aprovação repetindo vinte e três vezes: "Deus seja louvado! Deus seja louvado!". Com outras aclamações os fiéis aprovaram, além disso, quanto Agostinho disse depois sobre os propósitos para o seu futuro: queria dedicar os anos que lhe restavam a um estudo mais intenso das Sagradas Escrituras (cf. Ep 213, 6).
       De facto, seguiram-se quatro anos de extraordinária actividade intelectual: realizou obras importantes, empreendeu outras não menos empenhativas, fez debates públicos com os hereges procurava sempre o diálogo interveio para promover a paz nas províncias africanas assediadas pelas tribos bárbaras do sul. Neste sentido escreveu ao conde Dário, que foi à África para resolver a discórdia entre o conde Bonifácio e a corte imperial, da qual se estavam a aproveitar as tribos dos Mauritanos pelas suas incursões: "O maior título de glória afirmava na carta é precisamente o de suprimir a guerra com as palavras, em vez de matar os homens com a espada, e procurar ou manter a paz com a paz e não com a guerra. Sem dúvida, também os que combatem, se são bons, procuram sem dúvida a paz, mas à custa do derramamento de sangue. Tu, ao contrário, foste enviado precisamente para impedir que se procure derramar o sangue de alguém" (Ep 229, 2). Infelizmente, a esperança de uma pacificação dos territórios africanos foi desiludida: em Maio de 429 os Vândalos, convidados para a África por vingança pelo próprio Bonifácio, passaram o estreito de Gibraltar e invadiram a Mauritânia. A invasão atingiu rapidamente as outras ricas províncias africanas. Em Maio ou em Junho de 430 "os destruidores do império romano", como Possídio qualifica aqueles bárbaros (Vita, 30, 1), estavam em volta de Hipona, que assediaram.
       Na cidade tinha procurado refúgio, o qual, tendo-se reconciliado demasiado tarde com a corte, procurava agora em vão impedir o caminho aos invasores. O biógrafo Possídio descreve o sofrimento de Agostinho: "As lágrimas eram, mais do que o habitual, o seu pão noite e dia e, tendo já chegado ao extremo da sua vida, mais que os outros arrastava à amargura e ao luto a sua velhice (Vida, 28, 6). E explica: "De facto, aquele homem de Deus via os massacres e as destruições das cidades; destruídas as casas no campo e os habitantes mortos pelos inimigos ou afugentados e desorientados; as igrejas privadas dos sacerdotes e dos ministros, as virgens sagradas e os religiosos dispersos por toda a parte; entre eles, outros mortos sob as torturas, outros assassinados pela espada, outros feitos prisioneiros, perdida a integridade da alma e do corpo e também a fé, reduzidos em dolorosa e longa escravidão pelos inimigos" (ibid., 28, 8).
       Mesmo idoso e cansado, Agostinho conquistou contudo sempre simpatias, confortando-se a si mesmo e aos outros com a oração e a meditação sobre os misteriosos desígnios da Providência. Falava, a este propósito, da "velhice do mundo" e verdadeiramente era velho esse mundo romano falava desta velhice como já tinha feito anos antes para confortar os prófugos provenientes da Itália, quando em 410 os Godos de Alarico tinham invadido a cidade de Roma. Na velhice, dizia, os doentes abundam: tosse, catarro, remela, ansiedade, esgotamento. Mas se o mundo envelhece, Cristo é perpetuamente jovem. E então o convite: "Não rejeitar rejuvenescer unido a Cristo, também no mundo velho. Ele diz-te: Não temas, a tua juventude renovar-se-á como a da águia" (cf. Serm. 81, 8). Por conseguinte, o cristão não deve desanimar mesmo em situações difíceis, mas empenhar-se por ajudar quem está em necessidade. É quanto o grande Doutor sugere respondendo ao Bispo de Tiabe, Honorato, que lhe tinha pedido se, sob as ameaças das invasões bárbaras, um Bispo, um sacerdote ou um homem qualquer de Igreja pudesse fugir para salvar a vida: "Quando o perigo é comum a todos, isto é, a Bispos, clérigos e leigos, os que têm necessidade dos outros não sejam abandonados por aqueles dos quais têm necessidade. Neste caso transfiram-se todos para lugares seguros; mas se alguns têm necessidade de permanecer, não sejam abandonados por aqueles que têm o dever de os assistir com o ministério sagrado, de modo que se salvem juntamente ou juntos suportem as calamidades que o Pai de família quiser que sofram" (Ep 228, 2). E concluía: "Esta é a prova suprema da caridade" (ibid., 3). Como não reconhecer, nestas palavras, a mensagem heróica que tantos sacerdotes, aol ongo dos séculos, acolheram e fizeram própria?
       Entretanto a cidade de Hipona resistia. A casa-mosteiro de Agostinho tinha aberto as suas portas para acolher os colegas no episcopado que pediam hospitalidade. Entre eles encontrava-se também Possídio, já seu discípulo, o qual pôde assim deixar-nos o testemunho directo daqueles últimos e dramáticos dias. "No terceiro mês daquela invasão narra ele caiu de cama com febre: era a sua última doença" (Vita, 29, 3). O santo idoso aproveitou daquele tempo finalmente livre para se dedicar com mais intensidade à oração. Costumava afirmar que ninguém, Bispo, religioso ou leigo, por mais irrepreensível que possa parecer o seu comportamento, pode encarar a morte com uma adequada penitência. Por isso ele repetia continuamente entre lágrimas os salmos penitenciais, que tantas vezes recitara com o povo (cf. ibid., 31, 2).

       Quanto mais se agravava a doença, mais o Bispo moribundo sentia necessidade de solidão e de oração: "Para não ser incomodado por ninguém no seu recolhimento, cerca de dez dias antes de sair do corpo implorou a nós presentes para não deixar entrar ninguém no seu quarto fora das horas em que os médicos iam visitá-lo ou quando lhe levavam as refeições. A sua vontade foi cumprida exactamente e durante todo aquele tempo ele dedicava-se à oração" (ibid., 31, 3). Cessou de viver a 28 de Agosto de 430: o seu grande coração tinha-se finalmente aplacado em Deus.

       "Para a deposição do seu corpo informa Possídio foi oferecido a Deus o sacrifício, ao qual nós assistimos, e depois foi sepultado" (Vita, 31, 5). O seu corpo, em data incerta, foi transferido para a Sardenha e dali, por volta de 725, para Pavia, na Basílica de São Pedro "in Ciel d'oro", onde repousa ainda hoje. O seu primeiro biógrafo tem sobre ele este juízo conclusivo: "Deixou à Igreja um clero muito numeroso, assim como mosteiros de homens e de mulheres cheios de pessoas dedicadas à continência sob a obediência dos seus superiores, juntamente com as bibliotecas que contêm livros e discursos seus e de outros santos, dos quais se conhece qual foi por graça de Deus o seu mérito e a sua grandeza na Igreja, e nos quais os fiéis sempre o encontram vivo" (Possídio, Vita, 31, 8). Trata-se de uma afirmação à qual nos podemos associar: nos seus escritos também nós o "encontramos vivo". Quando leio os escritos de Santo Agostinho não tenho a impressão que é um homem morto mais ou menos há mil e seiscentos anos, mas sinto-o como um homem de hoje: um amigo, um contemporâneo que me fala, que fala a nós com a sua fé vigorosa e actual. Em Santo Agostinho que nos fala, fala a mim nos seus escritos, vemos a actualidade permanente da sua fé; da fé que vem de Cristo, Verbo Eterno Encarnado, Filho de Deus e Filho do homem. E podemos ver que esta fé não é de ontem, mesmo tendo sido pregada ontem; é sempre de hoje, porque Cristo é realmente ontem, hoje e para sempre. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Assim nos encoraja Santo Agostinho a confiar-nos a este Cristo sempre vivo e a encontrar assim o caminho da vida.