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terça-feira, 2 de junho de 2020

Luigi Maria Epicoco - O QUE ÉS PARA MIM

LUIGI MARIA EPICOCO (2019). O que és para mim. Palavras sobre a intimidade. Lisboa: Paulus Editora. 104 páginas.
       Este pequeno livro foi recomendado pelo Papa Francisco a sacerdotes e bispos.
       Italiano, o padre Luigi Epicoco escreveu alguns apontamentos para os exercícios espirituais de alguns sacerdotes americanos, já que não lhe era possível naquele momento deslocar-se à América. O livro resulta destas meditações, tendo em cada uma delas um texto bíblico e algumas questões/desafios para a reflexão e vida de cada um. Embora os destinatários sejam antes de mais os consagrados, é um belíssimo texto de reflexão para todos, para crentes cristãos, podendo ser um bom texto para aqueles que andam em busca de Algo ou de Alguém.
       As reflexões deram origem a dois outros livros: "Somente os doentes que curam" (já o sugerimos como leitura aqui na Voz de Lamego) e "A Estrela no caminho, o Menino", para leitura futuro quando estiver disponível.
      Cinco meditações: primeira pausa ou realismo de misericórdia; segunda pausa ou do pão e do silêncio: terceira pausa ou do tesouro escondido; quarta pausa ou do êxodo da competência ao abandono confiante; quinta pausa ou da parábola do Pai reencontrado.
  1. Na primeira pausa somos desafiados a colocar Deus em primeiro lugar, amor único e exclusivo, que não faz concorrência, antes alimenta o amor aos outros. "Um cristão é aquele que faz a sua vida em intimidade com Deus e vive tudo e só por Deus, com Deus e em Deus, o que quer que faça e em qualquer circunstância em que se encontre". Reconhecer que só Deus é Deus, para não converter ninguém em ídolo, numa perfeição que não existe.
  2. Na segunda etapa da viagem, a certeza de que Deus caminha connosco em todos os momentos, também quando as trevas nos assolam. Como acontece com os discípulos de Emaús, Cristo faz-Se ver especialmente na Eucaristia. "O nosso Amado faz-Se, de novo, pão e vinho, corpo e sangue. E, de novo, estamos ali, naquele cenário, sob a cruz, diante do sepulcro vazio... comemos aquela bússola e tornamo-nos direção. O caminho está em nós, em nós a verdade, em nós a vida. Já não são só os nossos olhos a ver, mas é todo o nosso ser a viver daquilo que apenas tínhamos visto". Por outro lado, "desde que Cristo encarnou, cada fragmento da realidade é, potencialmente, um lugar de encontro com o Senhor".
  3. A viagem continua.O reino de Deus que Jesus nos traz não é apenas para o além."Esta existência não pode ser apenas um vazio à espera de ser preenchido, porque esta vida não pode conter toda a plenitude da vida eterna, uma vez que é, ela própria, um tempo limitado, um recipiente demasiado pequeno para conter o céu... O cristianismo não é uma dieta que possamos começar na segunda-feira da próxima semana. O cristianismo ou é verdadeiro agora ou nunca será verdadeiro".
  4. A pausa leva-nos a colocar-nos diante de Deus com a nossa vulnerabilidade. "Amamos verdadeiramente quando nos entregamos com a nossa fragilidade à pessoa que amamos. Uma pessoa que se defende é uma pessoa que estudo de tal modo o seu inimigo que imagina o movimento seguinte... Aquele a quem nos deveríamos entregar na nossa vulnerabilidade torna-se naquele de quem nos defendemos. Procuramos, deste modo, conhecer o outro não para amar mas para dele nos defendermos... É a confiança em nós próprios e no próximo aquilo que nos falta... um inseguro é alguém que não tem disponibilidade para se ocupar do outro, porque passa a maior parte do tempo a tentar permanecer à tona".
  5. A última incursão leva-nos a refletir sobre o Pai que vai ao encontro de Jesus para que liberte o seu filho (cf. Mt 17, 14-21). Os discípulos não conseguem libertar aquela crianças do demónio que a atormenta. O pai vai até Jesus. Ser pai é ter a noção dos seus limites. Faz tudo o que pode, quando não pode pede ajuda. Um pai não vive em lugar do filho e nem é a única resposta credível para o filho. "Às vezes falta-nos a inteligência, porque nos falta a humildade. Às vezes falta-nos, mesmo, esta simplicidade: o pedir".

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Martírio de São João Batista

       A censura que João Batista fez a Herodes Agripa pela sua conduta desonesta e imoral, que o Evangelho nos descreve, valeu-lhe a morte por degolação (Mt. 14, 1-12). É o seu nascimento para o céu que a Igreja hoje celebra.
       A festa do martírio de São João Baptista remonta ao século V, na França; e ao século VI, em Roma. Está ligada à dedicação da igreja construída em Sebaste, na Samaria, no suposto túmulo do Precursor de Jesus. O próprio Jesus apresenta-nos João Baptista:

       Depois deles partirem, Jesus começou a falar a respeito de João às multidões: "Que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo vento? Mas que fostes ver? Um homem vestido de roupas finas? Mas os que vestem roupas finas vivem nos palácios dos reis. Então, que fostes ver? Um profeta? Eu vos afirmo que sim, e mais do que um profeta. É dele que está escrito: "eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele preparará o teu caminho diante de ti. Em verdade vos digo que, entre os nascidos de mulher, não surgiu nenhum maior do que João, o Baptista, e, no entanto, o menor no Reino dos céus é maior do que ele ..." (Mt 11, 2-11).

       O martírio de João Batista liga-se à denúncia profética das injustiças cometidas pelos poderosos, inclusive o luxo da corte, cujo desfecho fatal é a morte do inocente e a opressão dos marginalizados.

Oração de coleta:
       Senhor, que na vossa admirável providência,  quisestes que São João Batista fosse o Precursor do nascimento e da morte do vosso Filho, concedei-nos que, assim como ele deu a sua vida pela justiça e pela verdade, também nós saibamos lutar corajosamente pela confissão da fé. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
São Beda Venerável, presbítero

Precursor de Cristo no nascimento e na morte

O santo precursor do nascimento, da pregação e da morte do Senhor, mostrou no momento da sua luta suprema uma coragem digna de atrair o olhar de Deus. Como diz a Escritura: Se aos olhos dos homens foi atormentado, a sua esperança estava cheia de imortalidade. Com razão celebramos festivamente o dia do seu novo nascimento, dia que ele tornou memorável com a sua própria morte e ilustrou com a gloriosa púrpura do seu sangue. Merecidamente veneramos com alegria espiritual a memória daquele que selou com o martírio o testemunho que dera do Senhor.
São João sofreu a prisão e as cadeias e deu a sua vida em testemunho do nosso Redentor, a quem devia preparar os caminhos. Não lhe foi pedido pelo perseguidor que negasse a Cristo, mas que calasse a verdade. E no entanto, ele morreu por Cristo.
Cristo disse: Eu sou a verdade. Por isso, foi por Cristo que São João derramou o seu sangue, porque foi pela verdade que o derramou. Se com o seu nascimento, a sua pregação e o seu batismo dera testemunho de Cristo que havia de nascer, pregar e batizar, também com o seu martírio precursor deu testemunho da futura paixão do Senhor.
Assim terminou a sua vida este homem tão insigne e valoroso, derramando o seu sangue depois de longo e penoso cativeiro. Ele que anunciara a liberdade duma paz superior, é lançado pelos ímpios na prisão; é encerrado na escuridão do cárcere aquele que veio para dar testemunho da luz e a quem a própria Luz, que é Cristo, denominou como uma lâmpada que arde e alumia; e foi batizado com o próprio sangue aquele a quem foi concedido baptizar o Redentor do mundo, ouvir a voz do Pai que falava do Filho, ver a graça do Espírito Santo que descia sobre Ele. Por isso, longe de lhe parecer penoso, era pelo contrário fácil e desejável para ele suportar pela verdade os tormentos temporais, que lhe faziam antever a recompensa das alegrias eternas.
A morte não era para João Batista apenas uma realidade inevitável da natureza ou uma dura necessidade. Ele desejou a como o melhor modo de confessar o nome de Cristo e receber assim a palma da vida eterna. Bem diz o Apóstolo: A vós foi concedido por Cristo não só acreditar n’Ele, mas também sofrer por Ele. E se ele diz que sofrer por Cristo é um dom concedido aos eleitos, é porque os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória futura que se há de manifestar em nós.
Fonte: Secretariado Nacional da Liturgia

BENTO XVI no martírio de São João Batista

Estimados irmãos e irmãs
Nesta última quarta-feira do mês de Agosto celebra-se a memória do martírio de são João Batista, o precursor de Jesus. No Calendário romano, é o único santo do qual se celebra tanto o nascimento, a 24 de Junho, como a morte ocorrida através do martírio. A memória hodierna remonta à dedicação de uma cripta de Sebaste, em Samaria onde, já em meados do século IV, se venerava a sua cabeça. Depois, o culto alargou-se a Jerusalém, às Igrejas do Oriente e a Roma, com o título de Degolação de são João Batista. No Martirológio romano faz-se referência a uma segunda descoberta da preciosa relíquia, transportada naquela ocasião para a igreja de São Silvestre em Campo Márcio, em Roma.

Estas breves referências históricas ajudam-nos a compreender como é antiga e profunda a veneração de são João Batista. Nos Evangelhos realça-se muito bem o seu papel em relação a Jesus. De modo particular, são Lucas narra o seu nascimento, a sua vida no deserto e a sua pregação, e no Evangelho de hoje são Marcos fala-nos da sua morte dramática. João Batista começa a sua pregação sob o imperador Tibério, em 27-28 d.C., e o convite claro que ele dirige ao povo que acorre para o ouvir é que prepare o caminho para receber o Senhor, e endireitem as veredas tortas da própria vida através de uma conversão radical do coração (cf. Lc 3, 4). Contudo, João Batista não se limita a pregar a penitência e a conversão mas, reconhecendo Jesus como «o Cordeiro de Deus» que veio para tirar o pecado do mundo (cf. Jo 1, 29), tem a profunda humildade de mostrar em Jesus o verdadeiro Enviado de Deus, pondo-se de lado a fim de que Jesus possa crescer, ser ouvido e seguido. Como último gesto, João Batista testemunha com o sangue a sua fidelidade aos mandamentos de Deus, sem ceder nem desistir, cumprindo a sua missão até ao fim. São Beda, monge do século IX, nas suas Homilias diz assim: «São João, por [Cristo] deu a sua vida; embora não lhe tenha sido imposto que negasse Jesus Cristo, só lhe foi imposto que não dissesse a verdade» (cf. Hom. 23: ccl 122, 354). E ele dizia a verdade, e assim morreu por Cristo, que é a Verdade. Precisamente pelo amor à Verdade, não cedeu a compromissos nem teve medo de dirigir palavras fortes a quantos tinham perdido o caminho de Deus.

Nós vemos esta grande figura, esta força na paixão, na resistência contra os poderosos. Interroguemo-nos: de onde nasce esta vida, esta interioridade tão forte, tão recta e tão coerente, empregue totalmente por Deus e para preparar o caminho para Jesus? A resposta é simples: da relação com Deus, da oração, que é o fio condutor de toda a sua existência. João é o dom divino longamente invocado pelos seus pais, Zacarias e Isabel (cf. Lc 1, 13); uma dádiva grande, humanamente inesperada, porque ambos eram de idade avançada e Isabel era estéril (cf. Lc 1, 7); mas a Deus nada é impossível (cf. Lc 1, 36). O anúncio deste nascimento verifica-se precisamente no contexto da oração, no templo de Jerusalém; aliás, acontece quando Zacarias recebe o grande privilégio de entrar no lugar mais sagrado do templo para fazer a oferta do incenso ao Senhor (cf. Lc 1, 8-20). Também o nascimento de João Batista é marcado pela oração: o cântico de alegria, de louvor e de acção de graças que Zacarias eleva ao Senhor e que nós recitamos todas as manhãs nas Laudes, o «Benedictus», exalta a obra de Deus na história e indica profeticamente a missão do filho João: preceder o Filho de Deus que se fez carne, para lhe preparar as estradas (cf. Lc 1, 67-79). Toda a existência do precursor de Jesus é alimentada pela relação com Deus, de modo particular o período transcorrido em regiões desertas (cf. Lc 1, 80); as regiões desertas que são lugares de tentação, mas também lugares onde o homem sente a própria pobreza, porque desprovido de apoios e certezas materiais, e compreende que o único ponto de referência sólido permanece o próprio Deus. Mas João Batista não é apenas um homem de oração, do contacto permanente com Deus, mas também um guia para esta relação. Citando a oração que Jesus ensina aos discípulos, o «Pai-Nosso», o evangelista Lucas anota que o pedido é formulado pelos discípulos com estas palavras: «Senhor, ensinai-nos a rezar, como também João ensinou aos seus discípulos» (cf. Lc 11, 1).

Caros irmãos e irmãs, celebrar o martírio de são João Batista recorda-nos, também a nós cristãos deste nosso tempo, que não se pode ceder a compromissos com o amor a Cristo, à sua Palavra e à Verdade. A Verdade é Verdade, não existem compromissos. A vida cristã exige, por assim dizer, o «martírio» da fidelidade quotidiana ao Evangelho, ou seja, a coragem de deixar que Cristo cresça em nós e que seja Cristo quem orienta o nosso pensamento e as nossas acções. Mas isto só se verifica na nossa vida se a nossa relação com Deus for sólida. A oração não é tempo perdido, não é roubar espaço às actividades, inclusive às obras apostólicas, mas é precisamente o contrário: se formos capazes de ter uma vida de oração fiel, constante e confiante, o próprio Deus dar-nos-á a capacidade e a força para viver de modo feliz e tranquilo, para superar as dificuldades e testemunhá-lo com coragem. São João Batista interceda por nós, a fim de sabermos conservar sempre o primado de Deus na nossa vida. Obrigado!
in BENTO XVI, Audiência Geral de 29 de agosto de 2012.

terça-feira, 20 de março de 2018

VL – Lavou-me os pés e não cessou de os beijar

Jesus foi convidado para comer em casa de um fariseu. Uma mulher conhecida na cidade como pecadora aproxima-se de Jesus e começa a lavar-Lhe os pés com as suas lágrimas, a enxugá-los com os cabelos e a ungi-los com perfume. É uma descrição completa (Lc 7, 36-50). O fariseu, Simão de seu nome, interroga-se sobre Jesus: se fosse profeta saberia que esta mulher é pecadora e portanto não a deixaria tocar-lhe!

Humildade e intimidade! Jesus está novamente descalço, com os pés no chão, nesta terra que há de absorver o sangue da Sua entrega a favor da humanidade inteira, a escorrer da Sua carne chicoteada, ferida, crucificada! Porquanto há alguém que se aproxima, a meio de uma refeição e, sem cerimónias, banha-Lhe os pés com as lágrimas. A humilhação! Esta mulher não tem nada a perder. É uma desgraçada, é inferior a um escravo ou a um animal de estimação. Serve para o que serve, vende o corpo mas há muito que perdeu a alma. Ninguém a reconhece como ser humano, apenas como um objeto! Sente-se atraída por Aquele Jesus de Nazaré! Por certo ouviu falar d’Ele, das Suas palavras, do Seu jeito de acolher, de amar, de perdoar! Vai expor-se? Mas exposta já há muito que anda. Em todo o caso sujeita-se a ser escorraçada, uma vez mais, escarnecida, mas atreve-se, o seu coração sussurra-lhe de que poderá estar diante de Alguém que a reconhecerá como pessoa. 

O gesto desta mulher é visto como atrevimento, e parece pôr Jesus em maus lençóis. Ele come com publicanos e pecadores, rodeia-se de maltrapilhos, de mulheres, de crianças, de doentes! Como é que pode ser Profeta? Uma pessoa de bem não se mistura com escumalha! É uma prostituta que Lhe lava os pés! Os gestos traduzem intimidade. É possível que alguns dos convidados de Simão tivessem recorrido aos serviços desta mulher! É possível que tenha sido algum destes a dar-lhe o perfume com que unge os pés de Jesus. Para eles, não passa de uma mulher de má vida, pecadora. Para Jesus, é uma Pessoa a necessitar de atenção e de salvação, pois também ela é filha amada de Deus. 

Também aqui os pés de Jesus servem para aproximar e curar! 

O cuidado ao próximo gera intimidade, comunhão, gera perdão, salva. Claro que Jesus veio para servir e não para ser servido, mas deixa que esta Mulher Lhe lave os pés, não precisando de nenhum discurso para mostrar que o arrependimento, a oração, a súplica não caem em saco roto!

VL – A humildade faz-nos humanos…

       É uma marca distinta de Jesus Cristo. Quem se humilha será exaltado e quem se exalta será humilhado. Quem quiser ser o primeiro seja o último e o servo de todos. Nestes dias temos assistido à impotência das populações face aos incêndios. Perante a grandeza dos mesmos, há muitas situações que podem ser precavidas e melhoradas. Também aqui a humildade é crucial: reconhecimento do que não se fez, por incapacidade ou pela não previsibilidade; pelo que se pode vir a fazer, pela escuta e pelo acolhimento do contributo de outros.
       Com efeito, só a humildade nos permite aprender, dialogar, partilhar, comungar a vida com os outros. Só a humildade nos permite apreciar a vida, agradecer os dons recebidos, cultivar os talentos a favor dos outros e em prol de uma sociedade renovada. Só a humildade nos permite ser pessoas, diante dos outros e, para quem tem fé, diante de Deus. Só a humildade nos enriquece, nos humaniza e nos aproxima dos outros. Só a humildade nos leva a reconhecer as falhas, a pedir perdão e a tentar corrigir os erros. Só a humildade nos capacita para compreendermos os outros, sermos tolerantes com as suas falhas e apreciadores das suas qualidades. Só a humildade nos leva a construir pontes e derrubar muros, a juntar as nossas energias às energias dos outros, procurando a paz e a justiça. Só a humildade nos coloca à escuta e nos predispõe a aprender sempre mais. Olhos e ouvidos abertos ao que nos rodeia, coração atento a outros corações.
       Humildade não é o mesmo que ingenuidade, ignorância, descuido ou o não querer-saber. Humildade não é renunciar a valores e convicções, não é aderir, sem mais, aos valores, ideias e projetos dos outros. Humildade não é abdicar da própria vida para viver a vida dos outros. Humildade não é achar que os outros são bons e eu sou mau, que os outros são capazes de tudo e eu não sou capaz de nada. Humildade não é autocomiseração, fazer-se de coitadinho/a para que todos reparem em mim e me apapariquem. Humildade não é cruzar os braços, não é encolher-se ou remeter-se ao seu canto para não incomodar ninguém.
       A humildade compromete-nos, abre o meu e o teu coração à vida e aos outros, leva-nos a sair do nosso egoísmo para, com os outros, formarmos família. A humildade faz-nos reconhecer que estamos a caminho e podemos crescer e aprender sempre mais. Os outros são uma oportunidade e não um estorvo.

domingo, 10 de dezembro de 2017

Leitura: ANDREA MONDA - BENDITA HUMILDADE

ANDREA MONDA (2012). Bendita Humildade. O estilo simples de Joseph Ratzinger. Prior Velho: Paulinas Editora. 176 páginas.
       No dia 10 de novembro (2017), desloquei-me com três amigos sacerdotes, o Giroto, o Diamantino e o Diogo à VIII Jornada de Teologia Prática na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, e um dos conferencistas era precisamente o italiano Andrea Monda, testemunhando o anúncio do Evangelho às gerações atuais. O professor Andrea Monda leciona o equivalente a EMRC, tem um programa na TV2000, num formato semelhante a uma aula de 25 minutos, interagindo com a turma.
       Bastava o livro ser referido a Bento XVI / Joseph Ratzinger para me despertar o interesse, mas a conferência de Andrea Monda despertou-me mais o interesse. Mas como digo, bastava ser uma obra sobre Joseph Ratzinger, que já o lia e estudava, para uma ou outra disciplina de Teologia, longe do tempo em que viria a ser eleito Papa. O testemunho da D. Fernanda, que dedicou uma parte importante da sua vida ao Seminário de Lamego, aquando uma missão em Roma, era que àquele Cardeal era muito afável, muito simpático e atencioso, muito simples e muito humano. São características que Andrea Monda também descobrir, sem precisar de muito esforço, bastando o encontro com Bento XVI e os milhentos testemunhos dados por quem conviveu ou convive com o agora Papa Emérito.
       O autor mostra que este Homem de Deus, simples, afável, de fácil trato, que olha as pessoas olhos nos olhos, com um olhar profundo e interpelante, atento aos interlocutores, não foi uma novidade, sempre foi assim, como seminarista, como padre, como Bispo, como professor, como Prefeito da Congregação para a Doutrina na Fé (ex-Santo Ofício). A comunicação social, desde a primeira hora, não lhe concedeu qualquer interregno de simpatia, pois sendo já conhecido, agora era tempo de levantar suspeitas, insinuações, colocando com rótulos, com preconceitos, pelo facto de ser alemão e pelo facto de ter sido durante tantos anos o fiel guardador da fé, da doutrina católica, como se isso fosse um crime.
       Segundo o autor, a HUMILDADE é uma palavra que marca a vida de Joseph Ratzinger / Bento XVI, nas diferentes etapas da vida, como sacerdote, como professor, como Bispo, Cardeal e Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, como Papa. Numa biografia do atual Papa Francisco é sublinha a atenção e o cuidado com que o então Cardeal Ratizinger tratava as pessoas que encontrava, com atenção, colocando-se ao mesmo nível da pessoa. Era um dos poucos cardeais, consta, que não tratava o então Cardeal Jorge Mario Bergoglio com sobranceria, como um Cardeal das periferias, como fazia outras eminências, mas de igual para igual, com respeito, deferência, respeito e simpatia.
       É uma humildade assente na verdade, sobretudo a Verdade do Evangelho. A fé é antes de mais um encontro com Jesus. Humildade que assenta na transparência, na comunhão com a Igreja, em comunhão com a "maioria" formada pelos santos. Uma humildade caracterizada pela simplicidade. Basta recordar a primeira vez que apareceu na varanda pontifícia como Papa, o simples servidor da vinha do Senhor, com uma camisola preta, normal, debaixo da batina branca. Mais tarde confessará q dificuldade em usar botões de punho.
       Como Prefeito era conhecida a rotina que mantinha, manhã cedo e no final do dia, atravessava a praça de São Pedro, com uma boina na cabeça, sempre disponível para quem se aproximava. Por vezes fazia-se acompanhar por gatos. Sempre cordial e simples. Já como professora passava como segundo ou terceiro coadjutor de uma paróquia de cidade, tal a simplicidade com que interagia com os alunos, nesse caso. Permaneceu sempre assim, simples, cordato e acessível, um sacerdote a caminho, que se move em direção aos outros, colocando-se sempre ao nível dos seus interlecutores.
"Se João Paulo II foi definido como «o pároco do mundo», nesta aceção de simplicidade e humildade, pode-se tranquilamente definir Bento XVI como «coadjutor paroquial do mundo»... Em Bona, Ratzinger podia andar a pé, em Munique, como jovem sacerdote, andava de bicicleta de um lado para o outro, em Tubinga, voltou a recorrer às duas rodas".
       A sua vida é marcada pela renúncia. O autor apresenta essa característica fundamental antes de se sonhar que o Papa bávaro iria renunciar ao pontificado, assumindo-se como simples Padre Bento (terá sido essa a designação que propôs usar depois da renúncia). Humildade obediente. Outros foram conduzindo o seu percurso. Vai numa direção e de repente alguém o desafia para outra missão, sempre com o sentido de obediência aos seus superiores.
       Como teólogo marcante, o próprio confessou que nunca se propôs apresentar/criar uma linha teológica, mas aprofundar a teologia dentro da comunidade, da Igreja, em comunhão com o testemunho dos santos, uma teologia de joelhos.
       A verdadeira grandeza de homem reside na sua humildade". É uma caracterização que lhe assenta bem. Numa das catequeses, ao apresentar a figura do Papa Gregório Magno, quase poderia falar de si mesmo, lembrando como o monge que se tornou Papa "procurou de todos os modos evitar aquela nomeação; mas, no fim, teve de render-se e, tendo deixado pesarosamente o claustro, dedicou-se à comunidade, consciente de cumprir um dever e de ser simples 'servo dos servos de Deus'".
       "Todas as pessoas que de algum modo se encontraram com Joseph-Bento, «ao vivo», puderam constatar a doçura deste homem simples e dialogante, sem traços de altivez nem de afetação... ele é o primeiro a movimentar-se e ir ao encontro dos outros, pondo-se ao seu nível, delicadamente".
       Um dos aspetos relevantes do autor - tendo em conta os 24 anos de Joseph na Congregação responsável por ajudar o Papa e a Igreja a manter-se fiel a Jesus Cristo e ao Evangelho, ao nível dos princípios e das palavras em cada tempo -, o dogma! O dogma é o que nos liberta e nos ajuda a viver em dinâmica de amor. «Se na Igreja existem os dogmas, é para que ninguém se engane sobre o amor. Eles expõem-se à acusação de ideologia: na realidade, têm por efeito impedir que o amor seja transformado em ideologia».

BENTO XVI: «Deus não nos deixa tatear na escuridão. Mostrou-se como homem. Ele é tão grande que pode permitir-se tornar-se pequeníssimo».

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Revelastes estas verdades aos pequeninos!

       Jesus exclamou: «Eu Te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, Eu Te bendigo, porque assim foi do teu agrado. Tudo Me foi dado por meu Pai. Ninguém conhece o Filho senão o Pai e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar» (Mt 11, 25-27).
        A soberba e o orgulho fecham-nos aos outros, ao futuro, a novas descobertas, ao conhecimento.
       A dúvida, a humildade, a curiosidade, abrem-nos aos outros, fazem-nos encarar o futuro com esperança, ajudam-nos a acolher as novidades e as surpresas da vida, permitem-nos contemplar a vida, o mundo, os mistérios que se nos apresentam.
       Jesus sabe disso. Só a humildade nos permite acolher o mistério que vem de Deus.
        Os pequeninos são os predilectos de Jesus. Grandes em generosidade, em humildade, em acolhimento, prontos para aprender, para escutar, para servir o semelhante, prontos para receber o amor de Deus, simples para se deixarem cativar pelo olhar de Deus. Disponíveis para amar e para levar aos outros a alegria da vida.

sábado, 29 de outubro de 2016

Num banquete nupcial não tomes o primeiro lugar...

       Jesus entrou, num sábado, em casa de um dos principais fariseus para tomar uma refeição. Todos O observavam. Ao notar como os convidados escolhiam os primeiros lugares, Jesus disse-lhes esta parábola: «Quando fores convidado para um banquete nupcial, não tomes o primeiro lugar. Pode acontecer que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu; então, aquele que vos convidou a ambos, terá que te dizer: ‘Dá o lugar a este’; e ficarás depois envergonhado, se tiveres de ocupar o último lugar. Por isso, quando fores convidado, vai sentar-te no último lugar; e quando vier aquele que te convidou, dirá: ‘Amigo, sobe mais para cima’; ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados. Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado» (Lc 14, 1.7-11 )
       Jesus toma uma refeição em casa de um dos principais fariseus e observa como alguns procuram o primeiro lugar, para estar mais perto do anfitrião, para serem servidos em primeiro lugar, para serem vistos por todos. Jesus aproveita, uma vez mais, a ocasião, para intervir ensinando. O discípulo não é o que ocupa o primeiro lugar, o discípulo é aquele que serve, que ama, que se humilha para ajudar e cuidar dos outros.
       Bem sabemos que na atualidade, em qualquer banquete, esta questão já não se coloca, pois os anfitriões previamente destinam os lugares, precisamente para evitar constrangimentos na hora de escolher os lugares. Podem gostar ou não gostar do sítio onde foram colocados, mas pelo menos não se cria um mau ambiente entre convidados.
       Seja como for, Jesus caracteriza uma vez mais a atitude e identidade do discípulo. Aquele que serve, que não precisa de exibições ou de aparências, mas dá prioridade à relação com os outros, atendendo-os nas suas necessidades.

sábado, 22 de outubro de 2016

XXX Domingo do Tempo Comum - ano C - 23 de outubro

       1 – Oração. Fé. Humildade. Confiança. Despojamento. Entrega. Abertura. Sabedoria do coração. Compaixão. Ternura. Amor. Alegria. Felicidade. Partilha. Comunhão. Fidelidade. Entreajuda. Caridade. Cuidado. Serviço. Fraternidade. Perdão. Paz. Reconciliação. Vida.
       Com um jeitinho, conseguiremos conjugar estas diferentes palavras, interligando-as e tornando-as realidade. No domingo passado, Jesus convidava-nos, como discípulos, a uma oração persistente, baseada na confiança em Deus como Pai de Misericórdia. Ainda que uma Mãe pudesse esquecer o seu filho amado, Deus jamais se esquece de nós, nem deixa sem resposta a nossa súplica.
       A oração, sincera, compromete-nos com os outros, enlaça-nos, conduz-nos ao serviço, à partilha solidária. A firmeza da fé transparece na firmeza da caridade.
        Oração. Sinceridade. Arrependimento. Conversão. Esperança. Felicidade. Inevitavelmente, a oração dilata o nosso coração para acolhermos o outro, perdoando-o e servindo-o; dilata-nos o coração para reconhecermos a nossa fragilidade e a interdependência aos outros. A lógica é sempre a mesma: se a oração nos faz elevar o olhar, o coração e a vida para Deus, para o alto, em sentido ascendente e vertical, de imediato nos faz voltar o olhar, o coração e a vida para os outros, para o mundo que nos rodeia, num sentido fraterno e horizontal.
       2 – O Evangelista contextualiza a parábola de Jesus, dizendo que tem como destinatários os que se consideram justos e desprezam os outros. Como outras parábolas e palavras de Jesus, vale a pena juntarmo-nos aqueles a quem a parábola se dirige, para que nos diga algo, para que mexa connosco. Em algum momento já nos considerámos melhores que os outros, mantendo-nos distantes e não querendo misturar-nos com os outros ou sujar as mãos, pois considerámo-nos de um nível distinto.
        Paremos. Escutemos Jesus. Com atenção e docilidade. Não é um propagandista qualquer ou um qualquer palrador. É o Profeta da Nova Aliança, é Rosto e Presença da Misericórdia de Deus. O que incomoda Jesus não é tanto o pecado, as imperfeições ou defeitos. O que verdadeiramente O incomoda é a hipocrisia, a sobranceria, a soberba de quem não é capaz de se dar, de amar, de se compadecer com os mais frágeis. Não combina com Jesus. Ele não é assim. Nas palavras e nos gestos, nos encontros e nos prodígios, Jesus é assertivo, acolhendo com docilidade, a todos, mas com especial ternura e afeição aqueles que estão à margem, excluídos, doentes, mulheres, crianças, pobres, os últimos do povo e aqueles cujas profissões os renegam para a periferia. Jesus não pergunta pelo Cartão de Cidadão, pela origem social ou religiosa, pela condição moral ou profissional. Pergunta pelo coração, pela disponibilidade em acolher Deus, Boa Nova da salvação. Todos estão no mesmo patamar.
         Diz assim Jesus: «Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro publicano. O fariseu, de pé, orava assim: ‘Meu Deus, dou-Vos graças por não ser como os outros homens, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de todos os meus rendimentos’. O publicano ficou a distância e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu; mas batia no peito e dizia: ‘Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador’. Eu vos digo que este desceu justificado para sua casa e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado».
       3 – A sobranceria e a prepotência estagnam-nos, não nos deixam crescer. E o que não avança diminui. O que irrita Jesus é a hipocrisia, pois esta fecha-nos como numa concha, afasta-nos dos outros. A autossuficiência não nos permite acolher o bem alheio. Definhamos num círculo que começa em nós e em nós acaba. O centro está no nosso umbigo. Como Narciso (mito que dá origem ao narcisismo), corremos o risco de adormecermos na nossa vaidade e beleza. Narciso era tão belo que não achou ninguém que estivesse à sua altura. Preferiu ficar só. Admirando a sua imagem e a sua beleza no reflexo das águas, e como não conseguia alcançar a imagem refletida, deixou-se morrer na relva junto ao lago, onde nasceria uma flor (narciso). Os narcisos nascem na primavera, em solos húmidos, são autossuficientes, o caule faz inclinar a flor para baixo, debruçando-se sobre si mesmo como no mítico Narciso.
       Deus conhece o nosso íntimo. Precisamos apenas de ser transparentes, com a nossa insuficiência e com a nossa miséria, com o nosso pecado e a nossa fragilidade. Quando sou fraco então é que sou forte, como nos lembra São Paulo, pois Deus fortalece-nos com a Sua graça. Não está em causa, em nenhum momento, a dignidade e a grandeza humanas, pois somos únicos e irrepetíveis, criados à imagem e semelhança de Deus. O que somos e o que escolhemos. A abertura do coração permite-nos aprender com os outros, acolher Deus, na Sua misericórdia infinita, e percorrer um caminho, com os outros, que nos fortalece como seres humanos e como irmãos em Jesus Cristo.
       4 – Na verdade, situando-nos perante Deus, como crentes cristãos, a certeza que para Ele todos somos filhos (de primeira). Ele é Pai e ainda mais Mãe (João Paulo I), não considera uns filhos e outros enteados. Jesus morreu por todos, não pelos "melhores", mas sobretudo pelas pecadores. Tratar-nos uns aos outros com indiferença, com desprezo ou sobranceria é contrário à nossa filiação divina e à nossa condição de irmãos em Cristo Jesus.
      Na linguagem veterotestamentária, "o Senhor é um juiz que não faz aceção de pessoas. Não favorece ninguém em prejuízo do pobre e atende a prece do oprimido. Não despreza a súplica do órfão, nem os gemidos da viúva. Quem adora a Deus será bem acolhido e a sua prece sobe até às nuvens. A oração do humilde atravessa as nuvens e não descansa enquanto não chega ao seu destino. Não desiste, até que o Altíssimo o atenda, para estabelecer o direito dos justos e fazer justiça".
       Com efeito, a oração do humilde sobe aos céus. Essa experiência fazemo-la uns com os outros: quando pedimos com delicadeza e humildade provocamos abertura e resposta; quando exigimos com rudeza afastamos os outros que poderão atender-nos porque tem de ser, mas fazendo-o com má vontade. Como sói dizer-se, as moscas caçam-se com mel e não com fel.
        O salmo garante-nos que Deus nos atende. Ele está perto especialmente dos mais frágeis: "o Senhor está perto dos que têm o coração atribulado e salva os de ânimo abatido. O Senhor defende a vida dos seus servos, não serão castigados os que n’Ele confiam".
       Confiança na misericórdia de Deus, caminho aberto para que Ele nos cumule de bênçãos. Como nos dizia Jesus: rezar sem desistir. Deus é Pai que nos responderá e nos fará justiça.

       5 – "Deus eterno e omnipotente, aumentai em nós a fé, a esperança e a caridade; e para merecermos alcançar o que prometeis, fazei-nos amar o que mandais". A oração, feita com sinceridade, como abertura a Deus, une-nos ao Seu projeto de amor, manifesto, em plenitude, em Jesus Cristo, na Sua vida e sobretudo na Sua paixão redentora, ressuscitando-nos para a vida, para o serviço, para o cuidado a favor dos outros.
       O Apóstolo, dirigindo-se a Timóteo, mostra como manteve viva a fé, sobretudo nos momentos de perseguição e durante a prisão. Procurou cumprir com fidelidade – "combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé. E agora já me está preparada a coroa da justiça, que o Senhor, justo juiz, me há de dar naquele dia; e não só a mim, mas a todos aqueles que tiverem esperado com amor a sua vinda" – sabendo que dessa forma entraria na vida eterna, na glória de Deus.
       Nos momentos de aperto não pôde contar com ninguém, a não ser com o próprio Deus. "Na minha primeira defesa, ninguém esteve a meu lado: todos me abandonaram. Queira Deus que esta falta não lhes seja imputada. O Senhor esteve a meu lado e deu-me força, para que, por meu intermédio, a mensagem do Evangelho fosse plenamente proclamada e todas as nações a ouvissem; e eu fui libertado da boca do leão. O Senhor me livrará de todo o mal e me dará a salvação no seu reino celeste. Glória a Ele pelos séculos dos séculos".
       Para Paulo a adversidade também serviu para testemunhar o Evangelho, enfrentando os acusadores, anunciando Jesus Cristo. Prevaleceu a força que encontrou em Cristo Jesus, pela oração confiante.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (C): Sir 35, 15b-17. 20-22a; Sl 33 (34); 2 Tim 4, 6-8. 16-18; Lc 18, 9-14.

sábado, 1 de outubro de 2016

XXVII Domingo do tempo Comum - ano C - 2 de outubro

       1 – A fé expressa-se e aprofunda-se no serviço. A vocação primeira do cristão é seguir Jesus e amar como Ele amou, servindo como Ele serviu a humanidade inteira, dando a vida como oblação para redenção de todos. Quem não vive para servir não serve para viver. Ninguém pode dar o que não tem, mas quem se dá acabará por se encontrar e se descobrir, e encontrar sentido na entrega e na dedicação aos outros.
       Se não gostares de ti quem gostará? É uma expressão que dá mote a uma campanha publicitária, mas também um convite à autoestima da pessoa, aceitando-se nas suas limitações e nas suas qualidades. Neste concreto estamos a falar numa dinâmica psicológica. Se a pessoa viver em conflitualidade com o seu corpo, com o seu feitio, com a sua vontade, num desencontro consigo mesma, correrá o risco de viver psicoticamente, fechando-se, isolando-se, destruindo-se. Se tu não te aceitares com os teus defeitos e com os teus talentos, dificilmente terás relacionamentos salutares. Primeiro trata de eliminar o lixo que habita a tua mente e aceita-te, procurando, claro, melhorar em todos os aspetos que é possível, também no asseio, no cuidado com o corpo e com a saúde dos pensamentos e desejos. Esta lógica faz-nos concluir que para te dares bem com os outros tens que te conhecer e te aceitar como és.
       Deus ama-nos, como filhos. Temos um chão seguro que nos garante a dignidade e nos compromete com os outros, em Jesus Cristo, nossos irmãos. Podemos inverter a lógica anterior. Em vez de esperarmos que os outros nos amem, ou esperar que os dias sejam mais solarengos, ponhamo-nos em postura de serviço. Ama os outros para te encontrares. Andas abatido, triste, desencantado, preocupado? Presta atenção, vê quem precisa de ti, do teu abraço, do teu olhar, da tua alegria! Não esperes que te solicitem ajuda, vai ao encontro de quem precisa. Ao ajudares os outros começas a ajudar-te a ti, a sentir que a vida avança, vais experimentando o sabor de seres útil. Claro, há situações em que é necessário recorrer ao psicólogo ou psiquiatra. E não há mal nisso.
       Seja como for, a resposta não está no ensimesmamento, mas no encontro, com o médico, pedindo ajuda, ou no serviço a quem está mais necessitado que tu. Ficar em casa, isolar-se, ter pena de si mesmo, não é solução. Sair, procurar ajuda, ajudar os outros, é meio caminho andado para curar a solidão, o vazio, as trevas que se querem ocupar de ti.
       2 – Jesus inspira os Apóstolos. Bento XVI colocou em evidência que a fé se comunica com a vida, por atração, não por imposição. Os discípulos sentem-se atraídos com a fé de Jesus e com o Seu proceder. Testemunham a cumplicidade de Jesus com o Pai, pela oração, pela postura com que Se prostra para falar com Deus, pelas palavras que usa ao falar da vontade paterna, como constante, compromisso, fidelidade, desejo, propósito. Por isso Lhe pedem para que os ensine a rezar. Por isso Lhe pedem doses mais concentradas de fé: «Aumenta a nossa fé». Pelo que ouvem e pelo que veem, Jesus tem uma fé transparente, intensa, poderosa, eficaz nos gestos e nos milagres.
       Jesus constata a pouca fé dos discípulos e desafia-os a aprofundá-la. «Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a esta amoreira: ‘Arranca-te daí e vai plantar-te no mar’, e ela obedecer-vos-ia».
       Como aumentar a nossa fé? Rezar mais! Ler e meditar a Palavra de Deus, especialmente dos Evangelhos! Participar nos Sacramentos, especialmente na Eucaristia, onde Jesus Se dá no pão e no vinho que consagrados se tornam no Seu corpo e no Seu sangue, oferenda que nos salva e nos projeta para a eternidade, comprometendo-nos com o tempo presente, com a história e com o mundo.
       Porém, Jesus leva mais longe o enriquecimento da fé: o serviço. Prática do bem, vivência das obras de misericórdia. É curiosa a forma como Jesus nos interpela: "Quem de vós, tendo um servo a lavrar ou a guardar gado, lhe dirá quando ele voltar do campo: ‘Vem depressa sentar-te à mesa’? Não lhe dirá antes: ‘Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, até que eu tenha comido e bebido. Depois comerás e beberás tu’?. Terá de agradecer ao servo por lhe ter feito o que mandou?".
       Conclui Jesus, em relação aos servos e em relação a nós, depois de realizarmos tudo o que nos compete, "Somos inúteis servos: fizemos o que devíamos fazer". Não se trata de uma questão de identidade ou dignidade, trata-se do nosso agir e da nossa postura. O serviço aos demais não é uma opção, é uma obrigação, não imposta a partir do exterior, mas acolhida em simultâneo com a fé, com a adesão ao caminho de Jesus. O discípulo terá que partir no encalço do Mestre.
       3 – Para a maioria de nós a fé é mais fácil quando tudo nos corre bem. Como que descansamos na fé e na confiança em Deus. Temos motivos para agradecer, para sorrir, para desfrutar a vida. Não tendo razões para reclamar da vida, o tempo é-nos mais favorável.
       Há situações em que a vida se revela madrasta. Apesar de não termos feito nada de errado, parece que tudo nos corre mal. Não temos disposição para rezar. Já não conseguimos. Não temos palavras. Deus não nos ouve, esqueceu-se de nós. Rezamos e tudo permanece igual. Quanto maior a fé que "tínhamos", maior o desencanto, a desilusão com Deus. Ficamos chateados. Éramos assíduos à oração, participávamos nas propostas da Igreja, sempre contribuímos com a nossa esmola para ofertórios específicos e, agora, Deus deixou-nos ficar mal?!
       O profeta Habacuc interpreta estes nossos sentimentos: «Até quando, Senhor, chamarei por Vós e não me ouvis? Até quando clamarei contra a violência e não me enviais a salvação? Porque me deixais ver a iniquidade e contemplar a injustiça? Diante de mim está a opressão e a violência, levantam-se contendas e reina a discórdia?»
       Não são perguntas fáceis. Mas Deus responde-nos através do profeta: «Põe por escrito esta visão e grava-a em tábuas com toda a clareza, de modo que a possam ler facilmente. Embora esta visão só se realize na devida altura, ela há de cumprir-se com certeza e não falhará. Se parece demorar, deves esperá-la, porque ela há de vir e não tardará. Vede como sucumbe aquele que não tem alma reta; mas o justo viverá pela sua fidelidade».
       Também a travessia do deserto colocou à prova a fé do povo eleito. O salmo deste dia recorda-nos como os nossos pais tentaram a Deus, endurecendo o coração, apesar de todas as maravilhas que presenciaram: «Não endureçais os vossos corações, como em Meriba, como no dia de Massa no deserto, onde vossos pais Me tentaram e provocaram, apesar de terem visto as minhas obras» (Salmo).
       No dia 27 de setembro, memória litúrgica de São Vicente de Paulo, na homilia matutina, na Casa de Santa Marta, o papa Francisco lembrava que os comprimidos para dormir ou uns copitos para esquecer não resolvem a vida. Além do compromisso com os outros, a oração. “Rezemos ao Senhor para que nos conceda a graça de reconhecer a desolação espiritual, a graça de rezar quando estivermos submetidos a este estado de desolação espiritual e também a graça de saber acolher as pessoas que passam por momentos difíceis de tristeza e de desolação espiritual”.
       4 – Serve também para nós a exortação de Paulo ao discípulo Timóteo, a partir da prisão, com a missão de avivar a fé e a caridade: «Exorto-te a que reanimes o dom de Deus que recebeste pela imposição das minhas mãos. Deus não nos deu um espírito de timidez, mas de fortaleza, de caridade e moderação. Não te envergonhes de dar testemunho de Nosso Senhor, nem te envergonhes de mim, seu prisioneiro. Mas sofre comigo pelo Evangelho, confiando no poder de Deus... Guarda a boa doutrina que nos foi confiada, com o auxílio do Espírito Santo, que habita em nós».
       A fé não nos facilita a vida, não anula os escolhos, mas dá um sentido de plenitude à nossa vida, ao que fazemos mas sobretudo ao que somos, filhos amados de Deus, desde sempre escolhidos, para sermos felizes, levando à prática os dons que Deus nos dá, transformando o mundo, com a certeza que viveremos, em Deus, para sempre. Relativizamos os sucessos e as contrariedades, empenhados em construir a fraternidade visualizável em Cristo Jesus, para que também em nós atue a graça de Deus e por nós se complete a Sua Paixão redentora, posta em marcha pela Sua morte e ressurreição. O Espírito Santo que nos habita nos ajude a transparecer a fé pela prática da caridade.


Pe. Manuel Gonçalves



Textos para a Eucaristia (C): Hab 1, 2-3; 2, 2-4; Sl 94 (95);2 Tim 1, 6-8. 13-14; Lc 17, 5-10.

sábado, 27 de agosto de 2016

Domingo XXII do Tempo Comum - ano C - 28 de agosto

       1 – Para o banquete nupcial, o Senhor Jesus escancara as portas, para que todos possam entrar, pois todos são convidados. O reino de Deus não é um privilégio, nem para pobres nem para ricos, é para todos. No Evangelho de hoje, a opção preferencial pelos pobres é visível nas palavras de Jesus. Nós selecionamos. Deus não seleciona. É Pai. Todos são filhos. Porém, a primazia neste reino novo são os que não tem lugar à mesa dos reinos deste mundo, excluídos, pobres, doentes, pecadores, publicanos, mulheres, crianças, estrangeiros.
       “Quando ofereceres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos nem os teus irmãos, nem os teus parentes nem os teus vizinhos ricos, não seja que eles por sua vez te convidem e assim serás retribuído. Mas quando ofereceres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás feliz por eles não terem com que retribuir-te: ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos”.
       Optar não é excluir. Nem discriminar. Deus não faz aceção de pessoas. Jesus mostra-o bem com a postura que assume. Foi convidado por um fariseu reconhecido e aceitou o convite. Naquele tempo, só alguns, poucos, podiam oferecer um banquete. Sendo convidado, Jesus não Se faz rogado, nem pergunta pelo bilhete de identidade. Se é Sua a iniciativa aproxima-se dos mais frágeis.
       Falando de convidar e de convidados. Convidamos as pessoas de quem gostamos, familiares, amigos, sabendo à partida que nos retribuirão, ou convidamos já a retribuir outro convite anterior. É claro que também convidaremos pessoas de quem gostamos e que não nos poderão retribuir.
       Jesus não retribui. Os convites que Lhe são feitos tem diversas motivações: amizade, agradecimento, mas também pela fama de que desfruta. Jesus não tem meios económicos para retribuir. Nem Ele nem os discípulos. Vivem da boa vontade alheia, do apoio de algumas mulheres bem colocadas, dos amigos e das famílias dos discípulos.
       Jesus retribui. Não do mesmo jeito, mas de um jeito maior. O banquete de Jesus é para sempre. Abre-nos as portas da eternidade. Não para compensar os banquetes para os quais foi convidado, mas por infinito Amor, porque sim, porque assim é o Ser e o Agir do Pai. Assim é o Ser e o Agir de Jesus. O convite é para todos, a começar pelos pequeninos. Condições: amar e servir!
       2 – Numa festa mais formal, hoje em dia, há lugares marcados. Previamente, os noivos, os pais da criança batizada, o protocolo, distribuem os convidados por diferentes mesas e espaços. Para não haver situações de embaraço na hora de sentar, os lugares são previamente marcados, pelo que basta consultar a respetiva lista de distribuição. Facilmente imaginaremos, uma pessoa a ter que sair do lugar para aquela família ficar junta, ou para se sentar aquele amigo, pois nas outras mesas não é conhecido de ninguém. Se o ambiente for familiar, será fácil resolver estas minudências.
       A presença de Jesus faz-se notar. É um personagem "excêntrico", diferente. Um profeta ou um mendigo? Veste como galileu. Roupas simples. E simples é o Seu olhar e a Sua postura. Observam-n'O. Deixa-Se ver, deixa-Se tocar, está no meio do povo! Não está à margem, não tem um grupo de guardas a protegê-l'O. A Sua proteção é o Pai e a ligação de amor que com Ele mantém em permanência. Espera pela Sua vez. Vê que os convidados procuram o melhor lugar.
       Aproveita a situação e conta-lhes uma parábola: «Quando fores convidado para um banquete nupcial, não tomes o primeiro lugar. Pode acontecer que tenha sido convidado alguém mais importante do que tu; então, aquele que vos convidou a ambos, terá que te dizer: ‘Dá o lugar a este’; e ficarás depois envergonhado, se tiveres de ocupar o último lugar. Por isso, quando fores convidado, vai sentar-te no último lugar; e quando vier aquele que te convidou, dirá: ‘Amigo, sobe mais para cima’; ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados. Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado».
       De novo a opção pela humildade. No reino de Deus, preconizado por Jesus, não há disputas de lugares, mas de serviço. Entre vós, quem quiser ser o maior, seja o servidor de todos. Quem quiser ser o primeiro, seja o último, seja aquele que serve. A disputa é ao nível do serviço e do amor.
       3 – A recomendação de Ben Sirá, o sábio de Israel, vem no mesmo sentido: «Filho, em todas as tuas obras procede com humildade e serás mais estimado do que o homem generoso. Quanto mais importante fores, mais deves humilhar-te e encontrarás graça diante do Senhor. Porque é grande o poder do Senhor e os humildes cantam a sua glória. A desgraça do soberbo não tem cura, porque a árvore da maldade criou nele raízes. O coração do sábio compreende as máximas do sábio e o ouvido atento alegra-se com a sabedoria».
       A humildade e a sabedoria são irmãs. A ignorância e a arrogância são irmãs. A humildade abre-nos aos outros e leva-nos a procurar melhorar, aprender, corrigir. A prepotência e a soberba encerram-nos no nosso egoísmo e orgulho, levando-nos a pensar que somos melhores do que todos e, se não precisamos de ninguém, acabaremos por ser engolidos pelo cinismo e pela burrice!
       Refira-se que a humildade não visa o reconhecimento, pois se me faço humilde para que os outros me aplaudam, chamem-lhe outra coisa, mas certamente não é humildade. A humildade assume-se numa atitude de natural generosidade, benevolência, ao serviço dos outros. Ben Sirá incentiva aqueles que têm mais poder (humano) a serem ainda mais humildes. O lugar que ocupam não os deve ensoberbecer, pelo contrário, deve levá-los a usar o poder e a sabedoria para melhor servirem os demais. Isto agrada ao Senhor. É mandamento divino que nos torna mais humanos.
       4 – A grandeza e o poder Jesus Cristo, Rei do universo, Filho de Deus, manifestam-se na Encarnação, no abaixamento, esvaziando-Se de Si, para nos dar Deus, para nos dar o Céu, a eternidade do Pai. No Seu imenso amor, assume-Se frágil, pequeno, pobre, faz-Se pecado por nós, para nos engrandecer, para nos redimir, para nos elevar à estatura de filhos amados de Deus.
       Ele é tão grande, que Se faz tão pequenino. Deixa-Se pegar ao colo e deixa-Se matar!
       Na Epístola aos Hebreus o autor sagrado lembra-nos como nos aproximamos do mistério de Deus, já não em imagem, mas na realidade da salvação presente em Jesus Cristo e que Ele nos concedeu em abundância, pela Sua morte e ressurreição, agrafando-nos à glória do Pai.
       «Vós aproximastes-vos do monte Sião, da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, de muitos milhares de Anjos em reunião festiva, de uma assembleia de primogénitos inscritos no Céu, de Deus, juiz do universo, dos espíritos dos justos que atingiram a perfeição e de Jesus, mediador da nova aliança»
       Próximos de Deus, na mediação plena e amorosa de Jesus, não cessemos de implorar a bênção e a misericórdia do Pai. «Deus do universo, de quem procede todo o dom perfeito, infundi em nossos corações o amor do vosso nome e, estreitando a nossa união convosco, dai vida ao que em nós é bom e protegei com solicitude esta vida nova» (Coleta).
       Que a obra de Deus em nós começada, pelo batismo, pela água e pelo Espírito, seja por Ele em nós fortalecida. Que a nossa vida e as nossas escolhas não impeçam a graça de Deus, não sejamos opacos, mas transpareçamos o Evangelho da Alegria e da Caridade.

       5 – Em Santo Agostinho – cuja memória se celebra hoje, Padroeiro secundário da Diocese de Lamego – podemos encontrar um testemunho de vida, cuja conversão clarifica a abertura a Deus e a humildade, reconhecendo as suas imperfeições, a sua pequenez diante da misericórdia de Deus. Na juventude distanciou-se da fé e vivência cristã da sua Mãe, Santa Mónica, para, depois, se deixar converter a Jesus e ao Seu Evangelho, fazendo-Se pequeno.
       Para Santo Agostinho, a salvação é dom que necessita do nosso aval. Deus criou-nos sem nós mas não nos salva sem nós, sem o nosso assentimento, a nossa adesão à Sua misericórdia. O único bloqueio à misericórdia de Deus não é o nosso pecado ou a nossa fragilidade humana, é o nosso fechamento e recusa em acolher Deus. Basta que abramos uma brecha e Deus atua, salvando-nos.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (C): Sir 3, 19-21. 30-31; Sl 67 (68); Hebr 12, 18-19. 22-24a; Lc 14, 1. 7-14.

sábado, 28 de maio de 2016

IX Domingo do tempo Comum - ano C - 29 de maio

       1 – A humildade encaminha-nos para a felicidade genuína. Coloca-nos na rota da salvação. Abre-nos aos outros e a Deus. Facilita, melhor, possibilita a comunicação, o crescimento, o amadurecimento. Cimenta os laços de amizade e de ternura. Faz sobressair o melhor de nós, acolhendo e promovendo o melhor que os outros têm para nos dar.
       A prepotência e o egoísmo encerram-nos num casulo empobrecedor. A humildade não se opõe à autoestima, benfazeja para uma vida saudável. A humildade opõe-se à soberba, à avareza e ao egoísmo, à autossuficiência e à ambição desmedida. A humildade faz-nos realistas e humanos. A nossa grandeza assenta na dignidade humana, somos seres únicos e irrepetíveis. Para os crentes, esta dignidade é fortalecida pela filiação divina, somos filhos amados de Deus e, portanto, irmãos. A humildade faz-nos reconhecer a nossa ligação aos outros, dando-nos a certeza que a felicidade se constrói com eles. Os outros não são, como pensava Sarte, o nosso inferno. Não. Os outros são a visita que Deus nos faz e que nos humaiza. Na partilha, na amizade, no cuidado, no amor descobrimos a beleza e a grandeza e o sentido da nossa vida.
       2 – Um centurião (oficial romano que tinha sob o seu comando cem soldados) recorre a Jesus a favor de um dos seus servos. Enviou anciãos judeus para intercederem junto de Jesus. Veja-se a dinâmica de intercessão: «Ele é digno de que lho concedas, pois estima a nossa gente e foi ele que nos construiu a sinagoga». Jesus não se faz rogado, não se desculpa, não olha para agenda, não se faz muito ocupado, simplesmente os acompanha.
       A postura deste homem é admirável. Intercede por um servo! Por um filho, entende-se, agora por um servo, quando tem os que quer?! Por outro lado, apela a um judeu, professando outra religião, e nem ousa usar da sua posição social para chegar a Jesus ou para negociar com Ele. Pede aos anciãos. Num segundo momento, quando Jesus já está perto, envia-Lhe alguns amigos, com o seu pedido: «Não Te incomodes, Senhor, pois não mereço que entres em minha casa, nem me julguei digno de ir ter contigo. Mas diz uma palavra e o meu servo será curado. Porque também eu, que sou um subalterno, tenho soldados sob as minhas ordens. Digo a um: ‘Vai’ e ele vai, e a outro: ‘Vem’ e ele vem, e ao meu servo: ‘Faz isto’ e ele faz».
       O posto que ocupava dava-lhe estatuto, prestígio, colocando-o "acima" e "à parte" dos simples mortais. Porém, o que vemos é diferente. O cargo não o ensoberbece, nem o isola. É um homem bom. É "inimigo" dos judeus, mas ajuda-os, colabora com eles, que o consideram amigo. Diante de Jesus sente-se, como Pedro, pecador, nem é digno de ir ao Seu encontro. Confia essa missão aos seus amigos. Também por aqui se vê a humildade deste homem. Só pessoas humildes têm amigos, os mais têm pessoas subservientes, para as ocasiões.
       Ao ouvir as palavras que Lhe trazem do centurião, Jesus sente admiração por ele: «Digo-vos que nem mesmo em Israel encontrei tão grande fé». Mais que de humildade, trata-se de fé. A fé faz sobressair o melhor de nós e faz-nos potenciar o melhor dos outros. A fé converte-nos, torna-nos humildes, faz-nos cuidar dos outros como irmãos. A verdadeira e genuína humildade nasce, cresce e alimenta-se da fé.
       "Ao regressarem a casa, os enviados encontraram o servo de perfeita saúde".
       3 – Na verdade, a fé genuína, a fé que radica em Cristo morto e ressuscitado, faz-nos humildes, solidários, leva-nos a ultrapassar qualquer barreira social, política, religiosa. O Centurião é estrangeiro, mas a sua fé aproxima-o de Jesus. Jesus aproxima-nos do centurião: vede, eis um homem amadurecido na fé, amigo dos judeus e dos seus servos, preocupado com os mais pequenos...
       Na primeira leitura, escutámos a oração de Salomão, que é simultaneamente um desafio: «Quando um estrangeiro, embora não pertença ao vosso povo, Israel, vier aqui dum país distante por causa do vosso nome – pois ouvirão falar do vosso grande nome, da vossa mão poderosa e do vosso braço estendido –, quando vier orar neste templo, escutai-o do alto do Céu, onde habitais, e atendei os seus pedidos, a fim de que todos os povos da terra conheçam o vosso nome e Vos temam como o vosso povo, Israel, e saibam que o vosso nome é invocado neste templo que eu edifiquei».
       A intercessão de Salomão a Deus pelos estrangeiros é, antes de mais, o desafio que Deus nos coloca. Para Deus não há fronteiras. Todo-poderoso, o Seu maior poder é fazer-Se do nosso tamanho, só assim O poderemos ver, encontrar, compreender. Só assim O podemos seguir. Tão pequeno que Se deixa ver, Se deixa amar, Se deixa prender, perseguir e Se deixa matar às nossas mãos. Tão concreto que nos permite negá-l'O ou recusá-l'O. Salomão prepara o seu povo, aliás, o povo de Deus, para ser instrumento de salvação e lugar de acolhimento para todos, luz para todas as nações. Com Abraão já tínhamos visto que nele seriam abençoados todos os povos da terra. A eleição é inclusiva. O sol quando nasce é para todos. Deus faz chover sobre bons e maus. Jesus não faz aceção de pessoas, apesar do preconceito dos seus discípulos. Envia-nos a todo o mundo: ide e fazei discípulos de todas as nações.
       O tempo atual tem sido uma provocação à dimensão e maturação da nossa fé. Há milhares de pessoas que fugiram da sua terra, por medo, por perseguição, para fugir à fome e à guerra. Os países desta velha e envelhecida Europa, a nossa casa, têm tido uma grande dificuldade em lidar com os refugiados, umas vezes por medo outras por preconceito. Perguntamos aos cristãos e repetem os medos: se há entre nós necessitados, por que acolher outros, então tratemos dos que estão cá... Só nos apercebemos que havia necessitados entre nós agora que chegam outros? E se entre eles vêm criminosos? E se… se… Dar pousada aos peregrinos é uma das obras de misericórdia, o testamento de Jesus, o compromisso dos seus seguidores. O caminho a percorrer entre os princípios, os ideais, os propósitos, e a prática, confronta-se com as nossas limitações e com o nosso pecado.

       4 – O decisivo na nossa vida é a fé, a fé em Jesus Cristo, morto e ressuscitado. Uma vez resgatados às trevas, ao pecado e à morte, vivemos como ressuscitados, procurando que as nossas obras comprovem e amadureçam a nossa fé e façam transparecer a luz que nos vem do Espírito Santo.
       O apóstolo Paulo dá a vida, tudo o que tem, pelo Evangelho de Jesus, que anuncia a propósito e despropósito. Após o encontro com Jesus, nada o demoverá para seguir Jesus, anunciar Jesus, mostrar Jesus, apontar para Jesus. Como sublinha, nesta carta aos Gálatas, o mandato que recebeu vem de Jesus Cristo e de Deus Pai. E é em nome de Jesus Cristo, para agradar a Cristo e não aos homens, que se dirige às igrejas da Galácia, que tão breve abandonaram Jesus e o Seu evangelho, deixando-se convencer por falsos profetas que semearam a discórdia e a confusão.
       "Mas se alguém – ainda que fosse eu próprio ou um Anjo do Céu – vos anunciar um evangelho diferente daquele que nós vos anunciamos, seja anátema. Como já vo-lo dissemos, volto a dizê-lo: Se alguém vos anunciar um evangelho diferente daquele que recebestes, seja anátema. Estarei eu agora a captar o favor dos homens ou o de Deus? Acaso procuro agradar aos homens? Se eu ainda pretendesse agradar aos homens, não seria servo de Cristo".
       Há em nós a tentação de adequarmos, adaptarmos, modificarmos o Evangelho de tal forma que se conforme às nossas opções e à forma como vivemos e nos relacionamos com os outros, em família, em Igreja, em sociedade. Curioso, como muitos se justificam com a postura do papa Francisco. Já assim era antes, basta evocar a última visita do papa João Paulo II aos EUA. Milhares de jovens, fãs do Papa, quando confrontados com os valores que defendia, logo diziam que isso era pouco importante. Pouco importante: questões da vida, da dignidade, da manipulação genética, do casamento entre pessoas do mesmo sexo... Ou seja, importante o embrulho, não o conteúdo. O pontificado de Francisco é uma lufada de ar fresco, mas como o próprio tem sublinhado, acolher, sempre, todos, mesmo quando abertamente se encontram em colisão com a verdade e com o Evangelho, mas não mitigar o Evangelho. O exemplo mais elucidativo é o de Jesus. À mulher apanhada em flagrante adultério: vai, Eu não te condeno, vai e não voltes a pecar. Alguns pegam neste caso para "aprovarem" o pecado! O perdão é levar a sério o pecador, não é fazer de conta que não aconteceu.
       Paulo escreve às igrejas da Galácia, não para as condenar, mas para as converter ao Evangelho. A seriedade passa por reconhecer os erros, as fragilidades, os pecados, para encetar o caminho de conversão e de mudança de vida.
       A fé não nos verga. A fé faz-nos humildes, erguendo-nos à estatura de Cristo, para que Ele viva em nós e através de nós. É preciso fibra para renunciarmos aos nossos interesses para que prevaleça a vontade de Deus.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (C): 1 Reis 8, 41-43; Sl 116 (117); Gal 1, 1-2. 6-10; Lc 7, 1-10.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração...

       Jesus exclamou: «Vinde a Mim, todos os que andais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve» (Mt 11, 28-30).
        Jesus é o nosso conforto, o lugar em que nos descobrimos e nos encontramos como irmãos uns dos outros e como filhos bem amados de Deus. Qual o melhor conforto que nos pode ser dado senão a amizade, a compreensão, um significado envolvente para a vida, a promessa da imortalidade, a garantia que a nossa vida tem uma sentido que nos transcende e transcende o tempo presente e o mundo actual?!
       Jesus é esta promessa de definitividade. É a nossa esperança. Mais, é uma promessa que se cumpre com a Sua morte e ressurreição. As suas palavras, à luz da Ressurreição, adquirem um novo prisma, de promessa passam a cumprimento. Ele coloca as nossas esperanças na eternidade.
       A certeza de que Ele está connosco em todo o tempo e lugar, e por todo o sempre, descansa a nossa sede permanente de nos transcendermos, ou pelo menos, dá-lhe uma objectividade que nos atrai.
        O convite de Jesus confirma a preocupação de ser habitação de todos, especialmente daqueles que vivem em maiores dificuldades morais, afectivas, sociais, aqueles que cansaram da vida, das pessoas. O encontro com Jesus Cristo há-de ser de libertação, de descanso, de encontro consigo próprio, de realização do melhor que há em nós.
       Por outro lado, e como já refletimos por aqui (XIV do tempo Comum - A), Ele ensina-nos a mansidão e a humildade, que nos abrem para o futuro e que nos permitem a comunhão com os outros...

sábado, 5 de julho de 2014

XIV Domingo do Tempo Comum - ano A - 6 de julho

       1 – «Eu Te bendigo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, Eu Te bendigo, porque assim foi do teu agrado. Tudo Me foi dado por meu Pai. Ninguém conhece o Filho senão o Pai e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar».
       Por certo já nos aconteceu tentarmos explicar um acontecimento, um sentimento, um mistério, procurando as palavras mais adequadas e ficarmos com a sensação que não nos fizemos entender. Quem estava a nossa frente ficou ainda mais confuso, e nós próprios no final não conseguimos também aceder à realidade que queríamos expor.
       Chega alguém, ou até o nosso interlocutor, e de uma forma simples e acessível, usando uma imagem, uma comparação, outra situação do dia-a-dia, diz-nos que e como compreendeu e ajuda-nos a assimilar o que dávamos por adquirido.
       Jesus sublinha a simplicidade do coração para compreender e acolher o mistério que vem de Deus. Os sábios e inteligentes, neste contexto, são todos aqueles que pressupõem que sabem tudo e que não precisam de ninguém para aprender. Os pequeninos são todos aqueles, com qualidades e defeitos, que estão em busca do Céu, em busca do saber, disponíveis para acolher o que vem dos outros, o que vem das alturas e em tudo e todos procuram um sentido, uma lição, um desafio para a sua própria vida.
       Ao mistério de Deus (e do Homem) só acedemos pela humildade, pelo coração. A verdadeira sabedoria será o aceitarmos a nossa limitação e colocar-nos em atitude de contemplação perante o que não compreendemos, sabendo que as palavras são necessárias mas por vezes insuficientes.
       2 – «Vinde a Mim, todos os que andais cansados e oprimidos, e Eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e a minha carga é leve».
       Há acontecimentos que nos desgastam e nos destroem. Sabemos o quanto nos afetam. Há situações, porém, em que nos sentimos abatidos, desmoralizados, esmagados até, sem sabermos as causas e as razões, sejam físicas ou morais, sendo, por vezes, um acumulado de cansaços, chatices, doença, incompreensão dos amigos, solidão, arrelias na família, no trabalho, o clima, sonhos gorados ou expetativas futuras pouco promissoras.
       A sugestão de Jesus é, também aqui, um desafio à simplicidade, ao despojamento, à humildade. Nem tudo nos é desvendado ao mesmo tempo, nem tudo nos é dado a descobrir e a conhecer na forma como esperamos e merecemos. A leveza perante a vida, nada tem de ligeireza. Leva-nos a confiar em Deus, e no futuro com Deus.
       Jesus faz-Se pequenino, absorvendo a nossa fragilidade e finitude, em clara abertura para Deus. E é nessa postura de obediência a Deus, de escuta, que Jesus Se coloca mais próximo de cada um de nós, mais perto da humanidade que nos irmana.
       A sabedoria autêntica passa por aqui. Confiança. Entrega nas mãos de Deus. Ele sustenta a nossa vida e os nossos anseios. A sua carga é leve e o seu jugo é suave, pois baseia-se no amor, na compaixão, na conciliação, para nos libertar do que nos destrói, o ódio, o ciúme extremo, a violência, a inveja, o rancor, o desejo de vingança, a maledicência. São estes propósitos que nos pesam, que nos fazem andar derreados, espiritual e fisicamente. Ficámos doentes quando nos deixamos vencer por emoções e sentimentos destrutivos. Fazem parte da nossa vida, mas há que os relativizar. Definitivo só Deus. Deixar que uma arrelia domine completamente a nossa vida, é permitir que uma ditadura invada o nosso coração, e nos vá matando aos poucos.

       3 – A encarnação, morte e ressurreição de Jesus marca uma profunda alteração na história da humanidade: o Céu abre-se para nós, ficando mais perto, ao alcance da nossa mão e da nossa vontade! A eternidade entra no tempo e faz-Se história. O divino comprime-se para caber no humano.
       Com Cristo já não estamos "sob o domínio da carne, mas do Espírito, se é que o Espírito de Deus habita em nós... Se vivermos segundo a carne, morreremos; mas, se pelo Espírito fizermos morrer as obras da carne, viveremos".
       Ora, é precisamente o chamamento de Jesus: vinde a Mim todos vós que andais cansados e oprimidos por tantas preocupações e por vezes sem razões de maior. Vivei segundo o Espírito, como Filhos e não como escravos. Eu liberto-vos para a vida, para o amor, para o bem. Vinde, benditos de Meu Pai. Abri o vosso coração, esvaziai-vos do que vos destrói, enchei-vos do que vos faz bem.
       Temos consciência que há situações das quais não conseguimos libertarmo-nos que não seja pela ajuda de outrem. Este Outro que vem até nós, e Se torna um de nós, para com Ele aprendermos a levantar o olhar, o coração e a vida, e a caminharmos mais seguros, ainda que entre tempestades!
       A ligação a Deus, pela oração confiante e pela obediência (escuta, respeito, amor) filial, liga-nos positivamente aos outros. Ou assim haveria de ser, se de facto a nossa união a Deus é genuína. Amamos o Pai amando os Seus filhos, o nosso semelhante.
       Esta certeza convoca-nos para transformarmos o mundo, a começar pela nossa casa. «Exulta de alegria, filha de Sião, solta brados de júbilo, filha de Jerusalém. Eis o teu Rei, justo e salvador, que vem ao teu encontro, humildemente montado num jumentinho, filho duma jumenta. Destruirá os carros de combate de Efraim e os cavalos de guerra de Jerusalém; e será quebrado o arco de guerra. Anunciará a paz às nações: o seu domínio irá de um mar ao outro mar e do Rio até aos confins da terra».
       O poder e a grandeza de Deus, garantia da justiça e da misericórdia, mostram-se pela humildade, pela pobreza de meios, revelando-Se na compaixão. "O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade. O Senhor é bom para com todos e a sua misericórdia se estende a todas as criaturas" (Salmo).
       Tendo um chão seguro – Deus em nós –, há que trabalhar, meter as mãos à obra.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano A): Zac 9, 9-10; Sl 144 (145); Rom 8, 9. 11-13; Mt 11, 25-30.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

HUMILDADE: a última encíclica de BENTO XVI

       Bento XVI não publicará a encíclica sobre a fé – embora em fase avançada – que devia apresentar na primavera. Já não tem tempo. E nenhum sucessor é obrigado a retomar uma encíclica incompleta do próprio predecessor. Mas existe outra encíclica de Bento XVI, escondida no seu coração, uma encíclica não escrita. Ou melhor, escrita não pela sua pena mas pelo gesto do seu pontificado. Esta encíclica não é um texto, mas uma realidade: a humildade.
       A 19 de abril de 2005 um homem que pertence à raça das águias intelectuais, temido pelos seus adversários, admirado pelos seus estudantes, respeitado por todos devido à acutilância das suas análises sobre a Igreja e o mundo, apresenta-se, recém-eleito Papa, como um cordeiro levado para o sacrifício. Utilizará até a terrível palavra «guilhotina» para descrever o sentimento que o invadiu no momento em que os seus irmãos cardeais, na Capela Sistina, ainda fechada para o mundo, se viraram para ele, eleito entre todos, para o aplaudir. Nas imagens da época, a sua figura curvada e o seu rosto surpreendido testemunham-no.
       Depois teve que aprender o mister de Papa. Extirpou, como raízes arraigadas sob o húmus da terra, o eterno tímido, lúcido na mente mas desajeitado no corpo, para o projetar perante o mundo. Foi um choque para ambas as partes. Não conseguia assumir a desenvoltura do saudoso João Paulo II. O mundo compreendia mal aquele Papa sem efeito. Bento XVI nem teve os cem dias de "estado de graça" que se atribuem aos presidentes profanos. Teve, sem dúvida, a graça divina, fina mas pouco mundana. Contudo teve, ainda e sempre, a humildade de aprender sob os olhares de todos.
       Foram sete anos terríveis de pontificado. Nunca um Papa teve, num certo sentido, tão pouco "sucesso". Passou de polémica em polémica: crise com o Islão depois do seu discurso de Ratisbona, onde evocou a violência religiosa; deformação das suas palavras sobre a Sida durante a primeira viagem à África, que suscitou um protesto mundial; vergonha sofrida pelo explodir da questão dos sacerdotes pedófilos, por ele enfrentada; o caso Williamson, onde o seu gesto de generosidade em relação aos quatro bispos ordenados por D. Lefebvre (o Papa revogou as excomunhões) se transformou numa reprovação mundial contra Bento XVI, porque não tinha sido informado sobre os discursos negacionistas da Shoah feitos por um deles; incompreensões e dificuldades de pôr em ação o seu desejo de transparência quanto às finanças do Vaticano; traição de uma parte do seu grupo mais próximo no caso Vatileaks, com o seu mordomo que subtraiu cartas confidenciais para as publicar...
       Não teve nem sequer um ano de trégua. Nada lhe foi poupado. Às violentas provações físicas do pontificado de João Paulo II, ao atentado e ao mal de Parkinson, parecem corresponder as provações morais de rara violência desta litania de contradições sofrida por Bento XVI.
       Ao renunciar, o Papa eclipsa-se. À própria imagem do seu pontificado. Mas só Deus conhece o poder e a fecundidade da humildade.

Jean-Marie Guénois, in Le Figaro Magazine, 15-16.2.2013. Transcrição: L'Osservatore Romano © SNPC | 25.02.13.