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sábado, 4 de junho de 2016

Domingo X do Tempo Comum - ano C - 5 de junho

       1 – "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor" (Lc 4, 18-19). "O Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido" (Lc 19, 10).
       No início da Sua vida pública, na sinagoga de Nazaré, e no encontro com Zaqueu, vem ao de cima o propósito e a missão de Jesus: salvar, redimir, curar, ungir, recuperar, libertar. São dois exemplos, mas o evangelho está repleto de encontros, de gestos e de palavras de Jesus que assomam a misericórdia de Deus. Por aqui se compreende também a opção preferencial pelos mais pobres.

       2 – Um dos movimentos mais vivos, sobretudo depois do Vaticano II, na América Latina, de onde é originário o atual Papa Francisco, é a Teologia da Libertação que consagra precisamente a opção preferencial pelos pobres. Se é preferencial, não é excludente. A teologia como a pastoral procura responder às situações reais de pobreza e exclusão social, com o empenhamento prático na vida das pessoas. Um dos riscos maiores é reduzir a fé a um puro marxismo, com recurso aos mesmos instrumentos que qualquer estrutura político-partidária, criando novas divisões.
       Na Argentina, e assim também o Papa Francisco, adquiriu uma acentuação diferente, reconhecida como Teologia do Povo, com forte influência do Papa de então, Paulo VI. Os pobres são parte da solução, não se trabalha para eles mas com eles. O Beato Óscar Romero, de São Salvador, perfilha a opção preferencial pelos mais pobres, mas sempre em lógica de libertação integral, na abertura ao transcendente. Não se podem mudar as estruturas sem a conversão, sem mudar os corações. Prefere a Teologia da Salvação. Cristo, pela Sua cruz, redime o homem todo.
       Em Aparecida, 5.ª Assembleia Geral dos Bispos da América Latina e Caribe, o então Cardeal Jorge Mario Bergoglio (Papa Francisco) coordenou o Documento Final, fixando-se uma vez mais o compromisso social, com a alegria e força do Evangelho, na transformação da realidade, com os excluídos, pobres, escravos, prostitutas, crianças de rua, explorados e espoliados, mulheres, toxicodependentes, procurando envolver os próprios na solução dos seus problemas, vivendo na realidade concreta, entreajudando-se, partilhando as alegrias e tristezas, empenhando-se solidariamente uns com os outros, lutando pela justiça, pela libertação integral, pelos direitos fundamentais, procurando viver ao jeito de Jesus, anunciando-O em todas as situações.
       O Papa Bento XVI, na abertura da Assembleia de Aparecida, em 2007, e como outrora havia feito como Prefeito para a Doutrina da Fé, fundamentou a opção preferencial pelos pobres (e a teologia da libertação) com a sua dimensão cristológica. Cristo vem salvar a humanidade e libertar-nos de todas as amarras da escravidão. O modo de ser e de agir de Jesus funda e fundamenta o compromisso dos cristãos, discípulos missionários para este tempo.

       3 – O Evangelho hoje proclamado mostra-nos a sensibilidade e o agir de Jesus, sobressaindo a compaixão e a ternura como marcas constantes do Seu ministério de salvação.
       Jesus prossegue com o anúncio do Evangelho, por aldeias e cidades. O destino é uma cidade chamada Naim, nome que retemos por causa deste encontro de Jesus com uma viúva que chora pelo seu filho único. Além da profunda tristeza pela morte do seu filho, também o desamparo em que se encontra, por ser viúva. Naquele tempo não havia segurança social ou outro tipo de apoio instituído. Poderia ter a dita de ser acolhida pela família do marido ou por algum dos seus irmãos, já que a esperança média de vida leva a supor que já não teria pais ou os teria por pouco tempo e cujo património passaria para os irmãos. O filho garantiria a sobrevivência, a proteção, o património. A viuvez, sem descendência, expõe-se à pobreza e à mendicidade.
       "Ao vê-la, o Senhor compadeceu-Se dela". Esta não é uma atitude isolada, mas o sentir constante de Jesus perante situações de pobreza, doença, isolamento social. Dirigindo-se a ela, diz-lhe: «Não chores». Aproxima-se e toca no caixão, dizendo: «Jovem, Eu te ordeno: levanta-te». O morto sentou-se e começou a falar; e Jesus entregou-o à sua mãe.
       Imaginemos que estamos com Jesus junto daquela Mãe. Que sentimos quando a vemos chorosa, a torcer-se de sofrimento? Como nos sentimos com os gestos e as palavras de Jesus? Que poderíamos dizer ou fazer para aliviar o sofrimento daquela Mãe? Como lidamos com o sofrimento de alguém que nos é próximo? Aproximamo-nos e ajudamos o outro a levantar-se? Tocamos-lhe a alma para o resgatar ao medo de ficar sozinho? Com Jesus, Deus visita o seu povo! Como podemos agir para que através de nós Deus possa visitar a nossa família, os nossos colegas de trabalho, os nossos amigos?

       4 – A misericórdia de Deus não Se manifesta apenas com a vinda de Jesus. Com Ele chega à plenitude, os céus abrem-se por inteiro, Deus vem em Pessoa, um de nós, um connosco. Mas ao longo das gerações vai-nos falando através dos acontecimentos, dos Patriarcas, Juízes, Sacerdotes, Profetas e Reis, até nos enviar o Seu próprio Filho.
       Na primeira Leitura encontramos outra viúva, pobre, visitada por Deus através de Elias. Repare-se que é uma estrangeira, intuindo-se que a benevolência de Deus não se reduz a um grupo, a uma elite ou a um povo! Mais que o lugar ou a religião, importa o coração, a alma, a disponibilidade para acolher, amar e servir. É aqui que se decide a vida e a felicidade!
       É enternecedor o diálogo de Elias com Deus. Elias sente-se agradecido pelo acolhimento da viúva com o seu filho. Elias fez tudo conforme Deus lhe sugerira. Mas o filho da viúva de Sarepta adoeceu gravemente e morreu, abalando a sua fé. Descarrega em Elias a frustração, o medo, a tristeza: «Que tens tu a ver comigo, homem de Deus? Vieste a minha casa lembrar-me os meus pecados e causar a morte do meu filho?».
       É a vez de Elias fazer o que deve ser feito e o que está ao seu alcance. Reza insistentemente a Deus, lembrando todo o bem que aquela viúva fez: «Senhor, meu Deus, quereis ser também rigoroso para com esta viúva, que me hospeda em sua casa, a ponto de fazerdes morrer o seu filho?».
       Deus escutou a voz de Elias e devolveu a vida ao menino. Deus sempre nos ouve, ainda que nem sempre nos responda da forma que estávamos à espera ou que mereceríamos, sabendo que a fragilidade do corpo e da vida se vão manifestando ao longo do tempo, umas vezes com maior benevolência outras com maior agressividade.
       É então que definitivamente aquela mulher reconhece quem a visita «Agora vejo que és um homem de Deus e que se encontra verdadeiramente nos teus lábios a palavra do Senhor».
       Elias é instrumento da vontade de Deus que nos quer vivos. Com Jesus, chega à plenitude o amor de Deus para connosco, não alijando o sofrimento, mas enfrentando-o e englobando-o na vida, com as suas alegrias e tristezas, para que nada nos impeça de amar, servir, perdoar, ajudar os outros, abrindo-nos, em esperança, as portas da eternidade.

       5 – São Paulo escreve às Igrejas da Galácia com o intuito de zelar pelo Evangelho e pela fé em Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado. Não vale tudo. Nem todos os caminhos levam a Cristo, nem todas as opções são benfazejas para congregarem e formarem a Igreja como Corpo, como família. Víamos anteriormente que a desencarnação da fé, a espiritualização da religião, a idealização do Evangelho, é uma traição a Jesus que encarnou, assumindo a nossa natureza humana, sujeitando-se às coordenadas do espaço e do tempo. Jesus mostra Deus e a Sua misericórdia infinita, com gestos concretos, palavras e obras. Nem tanto à terra nem tanto ao mar. A certeza da eternidade não nos permite enlevar-nos, pelo contrário, mais nos compromete com a transformação do mundo.
       Por um tempo podemos pregar um evangelho feito à nossa medida, mas será uma mentira. A Igreja não é minha, não é nossa, é de Cristo, como bem sublinhava Bento XVI no anúncio da renúncia ao ministério petrino.
       O Apóstolo Paulo lembra-nos que o Evangelho não é negociável nem está sujeito ao critério de cada um, ainda que em cada tempo tenhamos que procurar o sensus fidei, a fé vivida em cada contexto social e humano, procurando que o Evangelho ilumine a vida.
       "O Evangelho anunciado por mim não é de inspiração humana, porque não o recebi ou aprendi de nenhum homem, mas por uma revelação de Jesus Cristo... Quando Aquele que me destinou desde o seio materno e me chamou pela sua graça, Se dignou revelar em mim o seu Filho para que eu O anunciasse aos gentios, decididamente não consultei a carne e o sangue". Paulo revela que a primeira coisa que fez após a conversão foi retirar-se para o deserto, ao jeito de Jesus, para que fosse mais forte a ligação a Deus, pela oração. Depois subiu a Jerusalém para estar com Simão Pedro, tendo encontrado também Tiago, irmão do Senhor. Apesar das convicções resolutas do Apóstolo, a ligação e a comunhão com a Igreja na pessoa de São Pedro.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (C): 1 Reis 17, 17-24; Sal 29 (30); Gal 1, 11-19; Lc 7, 11-17.

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Papa Francisco no Centro de Reabilitação Palmasola

Discurso do Papa durante visita ao Centro de Reabilitação Palmasola
Santa Cruz de La Sierra, Bolívia, Sexta-feira, 10 de julho de 2015


Queridos irmãos e irmãs!
Não podia deixar a Bolívia sem vir ver-vos, sem deixar de partilhar a fé e a esperança que nascem do amor entregue na cruz.
Obrigado por me receberem. Sei que se prepararam e rezaram por mim. Muito obrigado!

Nas palavras de D. Jesús Juárez e no testemunho de quem falou, pude comprovar que a dor não é capaz de apagar a esperança no mais fundo do coração e que a vida continua a jorrar com força em circunstâncias adversas.

Quem está diante de vós? Poderiam perguntar-se. Gostaria de responder-lhes à pergunta com uma certeza da minha vida, com uma certeza que me marcou para sempre. Aquele que está diante de vós é um homem perdoado. Um homem que foi e está salvo de seus muitos pecados. E é assim como me apresento. Não tenho muito mais para lhes dar ou oferecer, mas o que tenho e amo quero dar-vo-lo, quero partilhá-lo: Jesus Cristo, a misericórdia do Pai.

Ele veio para nos mostrar, fazer visível o amor que Deus tem por nós. Por vós, por mim. Um amor ativo, real. Um amor que levou a sério a realidade do seus. Um amor que cura, perdoa, levanta, cuida. Um amor que se aproxima e devolve a dignidade. Uma dignidade, que podemos perder de muitas maneiras e formas. Mas, nisto, Jesus é um obstinado: deu a sua vida por isto, para nos devolver a identidade perdida.

Lembro-me duma experiência que nos pode ajudar. Pedro e Paulo, discípulos de Jesus, também estiveram encarcerados; também foram privados da liberdade. Nessa circunstância, houve algo que os sustentou, algo que não os deixou cair no desespero, na escuridão que pode brotar da falta de sentido: foi a oração. Pessoal e comunitária. Eles rezaram, e por eles se rezava. Dois movimentos, duas ações que geram entre si uma rede que sustenta a vida e a esperança. Sustenta-nos contra o desespero e incentiva-nos a prosseguir o caminho. Uma rede que vai sustentando a vida, a vossa e a das vossas famílias.

Porque uma pessoa, quando Jesus entra na sua vida, não fica detida no seu passado, mas começa a olhar o presente de outra forma, com outra esperança. A pessoa começa a ver com outros olhos a si mesma, a sua própria realidade. Não fica enclausurado no que aconteceu, mas é capaz de chorar e encontrar nisso a força para voltar a começar. E, se em determinados momentos nos sentimos tristes, mal, abatidos, convido-vos a fixar o rosto de Jesus crucificado. No seu olhar, todos podemos encontrar espaço. Todos podemos colocar junto d’Ele as nossas feridas, as nossas dores e também os nossos pecados. Nas suas chagas, encontram lugar as nossas chagas; para serem curadas, lavadas, transformadas, ressuscitadas. Ele morreu por vós, por mim, para nos dar a mão e levantar-nos. Conversem com os sacerdotes que aqui vêm, conversem… Jesus sempre nos quer levantar.

Esta certeza move-nos a trabalhar pela nossa dignidade. Reclusão não é o mesmo que exclusão, porque a reclusão faz parte dum processo de reinserção na sociedade. Há muitos elementos – bem o sei – que jogam contra este lugar: a superlotação, a morosidade da justiça, a falta de terapias ocupacionais e de políticas de reabilitação, a violência… Tudo isso torna necessário uma pronta e eficaz aliança interinstitucional para se encontrar respostas.

Mas, enquanto se luta por isso, não podemos dar tudo por perdido. Hoje há coisas que já podemos fazer.

Aqui, neste Centro de Reabilitação, a convivência depende em parte de vós. O sofrimento e a privação podem tornar o nosso coração egoísta e levar a confrontos, mas também temos a capacidade de os transformar em ocasião de autêntica fraternidade. Ajudai-vos mutuamente. Não tenhais medo de vos ajudar entre vós. O diabo procura a rivalidade, a divisão, os bandos; lutai para sairdes vencedores contra ele.

Gostaria de vos pedir que leveis a minha saudação às vossas famílias. É tão importante a sua presença e a sua ajuda! Os avós, o pai, a mãe, os irmãos, o cônjuge, os filhos. Lembram-nos que vale a pena viver e lutar por um mundo melhor.

Finalmente, uma palavra de encorajamento a todos os que trabalham neste Centro: aos seus dirigentes, aos agentes da Polícia Carcerária, a todo o pessoal. Realizam um serviço público fundamental. Desempenham uma tarefa importante neste processo de reinserção; tarefa de levantar e não rebaixar, de dignificar e não humilhar, de animar e não acabrunhar. É um processo que requer deixar a lógica de bons e maus para passar a uma lógica centrada na ajuda à pessoa. Gerará melhores condições para todos, porque um processo assim vivido dignifica-nos, anima-nos e levanta-nos a todos.

Antes de vos dar a bênção, gostaria que rezássemos uns momentos em silêncio. Cada um faça-o como sabe.

Por favor, peço-vos que continueis a rezar por mim, porque também eu tenho os meus erros e devo fazer penitência. Obrigado!

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Papa Francisco na Bolívia - basta de descartes

Praça do Cristo Redentor, Santa Cruz de La Sierra, Bolívia
Quinta-feira, 9 de Julho de 2015


Viemos de lugares, regiões, povoados distintos, para celebrar a presença viva de Deus entre nós. Há horas que saímos de nossas casas e comunidades, para podermos estar juntos como Povo Santo de Deus. A cruz e a imagem da missão trazem-nos à memória todas as comunidades que nasceram sob o nome de Jesus nestas terras e das quais somos herdeiros.

No Evangelho que acabamos de ouvir, descrevia-se uma situação muito semelhante à que estamos a viver agora. Como aquelas quatro mil pessoas, também nós estamos desejosos de ouvir a Palavra de Jesus e receber a sua vida. Eles ontem e nós hoje, ao pé do Mestre, Pão de vida.

Nestes dias, pude ver muitas mães que carregavam seus filhos às costas, como aliás muitas de vós o fazem aqui. Carregando sobre si a vida, o futuro do seu povo. Carregando os motivos da sua alegria, as suas esperanças. Carregando a bênção da terra nos frutos. Carregando o trabalho feito com as suas mãos. Mãos, que moldaram o presente e tecerão os sonhos do amanhã. Mas carregando também sobre os seus ombros decepções, tristezas e amarguras, a injustiça que parece não ter fim e as cicatrizes duma justiça não realizada. Carregando sobre si mesmas a alegria e a dor duma terra. Carregais sobre vós a memória do vosso povo. Porque os povos têm memória, uma memória que passa de geração em geração, uma memória em caminho.

E não são poucas as vezes que experimentamos o cansaço deste caminho. Não são poucas as vezes que nos faltam as forças para manter viva a esperança. Quantas vezes vivemos situações que pretendem anestesiar-nos a memória e, deste modo, debilita-se a esperança e, pouco a pouco, perdem-se os motivos de alegria. E começa a apoderar-se de nós uma tristeza que nos torna individualistas, que nos faz perder a memória de povo amado, de povo escolhido. E esta perda desagrega-nos, faz com que nos fechemos aos outros, especialmente aos mais pobres.

Pode suceder a nós o mesmo que aos discípulos de ontem, quando viram a quantidade de pessoas que estava lá. Pedem a Jesus que a mande embora, já que é impossível alimentar tanta gente. Perante muitas situações de fome no mundo, podemos dizer: «Os números não batem certo; não podemos resolver a conta». É impossível enfrentar estas situações; então o desespero acaba por apoderar-se do coração.

Num coração desesperado, é muito fácil ganhar espaço a lógica que pretende impor-se no mundo de hoje. Uma lógica que procura transformar tudo em objecto de troca, de consumo: vê tudo negociável. Uma lógica que pretende deixar espaço para muito poucos, descartando todos aqueles que não «produzem», que não são considerados aptos ou dignos porque, aparentemente, «os números não batem certo». Jesus retoma a palava para nos dizer: Não é necessário irem embora; dai-lhes vós mesmos de comer.

É um convite que hoje ressoa fortemente para nós: «Não é necessário mandar ninguém embora, basta de descartes; dai-lhes vós mesmos de comer». Jesus continua a dizer-nos nesta praça: Sim, basta de descartes; dai-lhes vós mesmos de comer. O olhar de Jesus não aceita uma lógica, uma perspectiva que sempre «corta o fio» pelo ponto mais frágil, mais necessitado. Tomando «o pedaço», Ele mesmo nos dá o exemplo, nos mostra o caminho. Uma atitude em três palavras: toma um pouco de pão e alguns peixes, bendiz a Deus por eles, divide-os e entrega para que os discípulos os partilhem com os outros. Este é o caminho do milagre. Por certo, não é magia nem idolatria. Por meio destas três ações, Jesus consegue transformar a lógica do descarte numa lógica de comunhão, de comunidade. Gostaria de destacar brevemente cada uma destas ações.


Toma. O ponto de partida é tomar muito a sério a vida dos seus. Fixa-os nos olhos e, nestes, conhece a sua vida, os seus sentimentos. Vê, naquele olhar, o que pulsa e o que deixou de pulsar na memória e no coração do seu povo. Considera-o e valoriza-o. Valoriza todo o bem que possam oferecer, todo o bem a partir do qual se possa construir. Mas não fala dos objetos, dos bens culturais ou das ideias; fala das pessoas. A riqueza maior duma sociedade mede-se na vida do seu povo, mede-se nos idosos que conseguem transmitir aos mais novos a sua sabedoria e a memória do seu povo. Jesus nunca ignora a dignidade de pessoa alguma, por maior que seja a aparência de não ter nada para oferecer ou partilhar.

Bendiz. Jesus toma em suas mãos o dom, e bendiz o Pai que está nos céus. Sabe que estes dons são um presente de Deus. Por isso, não os trata como «uma coisa qualquer», dado que toda esta vida é fruto do amor misericordioso. Ele reconhece-o. Vai além da simples aparência e, neste gesto de bendizer, de louvar, pede a seu Pai o dom do Espírito Santo. Aquele acto de bendizer tem esta dupla perspectiva: por um lado, agradecer e, por outro, transformar. É reconhecer que a vida é sempre um dom, um presente que, colocado nas mãos de Deus, adquire uma força de multiplicação. O nosso Pai não nos tira nada, multiplica tudo.

Entrega. Em Jesus, não existe um tomar que não seja bênção, nem uma bênção que não seja entrega. A bênção é sempre missão, tem um destino: repartir, partilhar o que se recebeu, uma vez que só na entrega, no com-partilhar é que as pessoas encontram a fonte da alegria e a experiência da salvação. Uma entrega que quer reconstruir a memória de povo santo, de povo convidado, chamado a ser portador da alegria da salvação. As mãos, que Jesus ergue para bendizer o Deus do céu, são as mesmas que distribuem o pão à multidão que tem fome. Podemos imaginar como os pães e os peixes iam passando de mão em mão até chegar aos mais afastados. Jesus consegue gerar uma corrente entre os seus: todos estavam compartilhando o seu, transformando-o em dom para os outros, e foi assim que comeram até ficarem saciados. E, incrivelmente, sobrou: recolheram sete cestos de sobras. Uma memória tomada, abençoada e entregue sempre sacia um povo.

A Eucaristia é «Pão repartido para a vida do mundo», como diz o lema do V Congresso Eucarístico que hoje inauguramos e vai realizar-se em Tarija. É sacramento de comunhão, que nos faz sair do individualismo para vivermos juntos o seguimento de Jesus e nos dá a certeza de que aquilo que temos e somos, se tomado, abençoado e entregue, pelo poder de Deus, pelo poder do seu amor, transforma-se em pão de vida para os outros.

A Igreja é uma comunidade memoriosa. Por isso, fiel ao mandato do Senhor, repete incansavelmente: «Fazei isto em memória de Mim» (Lc 22, 19). Geração após geração atualiza, nos distintos cantos da nossa terra, o mistério do Pão da Vida. No-lo faz presente e entrega. Jesus quer que participemos desta sua vida e, por nosso intermédio, se vá multiplicando na nossa sociedade. Não somos pessoas isoladas, separadas, mas o Povo da memória atualizada e sempre entregue.

Uma vida memoriosa precisa dos outros, do intercâmbio, do encontro, duma solidariedade real que seja capaz de entrar na lógica do tomar, bendizer e entregar; na lógica do amor.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Cardeal Gerhard Müller - A verdade leva-nos aos pobres

       "A Igreja, como comunhão dos fiéis, serve a humanidade com a Palavra de Deus, com a realização sacramental da sua salvação vivificante e a prova do ser-para-o-outro de Cristo, no serviço aos pobres, aos desamparados e à generalidade dos que foram defraudados na sua dignidade e justiça...
       A Igreja e, portanto, toda a comunidade cristã e cada cristão individualmente, a partir da fé, deve assumir responsabilidade pela sociedade humana como um todo, nos campos do mundo do trabalho, da economia internacional, da justiça social e individual, da paz no mundo" (p. 47).
       O Teólogo profissional, como perito em religião, não se contrapõe aos fiéis ou não especialistas. Ele entende-se, tal como todos os discípulos, como ouvinte e aprendiz diante do único Mestre e Palavra de Deus, isto é, Cristo. Desse modo, ele penetra no contexto da experiência da fé e da religiosidade da vida do povo, ou seja, da comunidade daqueles que professam a fé em Jesus Cristo e ousam percorrer o caminho do seu seguimento na existência - para os outros. Participa dos seus sofrimentos e das suas esperanças. Desse modo, Teologia da Libertação, no melhor sentido da palavra, é teologia contextual, amadurecida a partir da comunidade (p. 51)

       "A opção pelos pobres não exclui os ricos. De facto, também eles são meta do agir libertador de Deus, dado que são libertados da ansiedade ma qual julgam dever aproveitar a vida somente à custa dos outros. O agir libertador de Deus em relação a pobres e ricos visa a subjetivação do ser humano e, portanto, a sua liberdade perante toda a forma de opressão e de dependência" (p 56).

       "Como se pode falar de Deus, de Cristo, do Espírito Santo, da Igreja, dos sacramentos, da graça e da vida eterna perante a miséria, a exploração e a opressão do sr humano, no terceiro mundo, quando compreendemos o ser humano como uma criatura que é feita à imagem e semelhança de Deus, pela qual Cristo morreu, a fim de que ela, em todos os âmbitos da vida, experimentasse Deus como salvação e vida?... Deus é o Deus da vida e da salvação, na medida em que oferece e realiza a salvação e a vida no interior do único mundo criatural, social e histórico do ser humano, na unidade espiritual-corporal do ser humano" (p 105).

       "A experiência da exploração e a análise das suas circunstâncias históricas e sociais devem ser agora interpretadas à luz da revelação. Os testemunhos bíblicos mostram-nos Deus como o criador que escolhe a história enquanto lugar do seu agir libertador. A sua ação redentora liberta o ser humano não da história, mas para a história, como campo da efetivação das condições materiais adequadas ao ser humano para a sua realização como pessoa espiritual...
       A salvação não jaz simplesmente na interioridade da alma, que não seria atingida pelos chicotes egípcios. Aos israelitas oprimidos, também nãos e promete simplesmente um além-túmulo melhor, pensado objetivamente. Pelo contrário, a salvação acontece no agir libertador real de Deus, na retirada da escravidão... (p. 120).

       "A prática da verdade leva-nos para o lado dos pobres" p 204.

João Paulo II:
       "A fome de pão deve desaparecer, mas a fome de Deus permanecerá" p 53)
       "Que a fome de Deus permaneça e a fome de pão desapareça" p 154

in GUSTAVO GUTIÉRREZ e GERHARD LUDWIG MÜLLER. Ao lado dos Pobres.

Gustavo Gutiérrez - Onde dormirão os pobres?

       "A teologia é um falar de Deus à luz da fé. O discurso acerca do que Ele é e o que Ele é para nós representa o único tema da teologia. Devemos aproximar-nos do mistério de Deus com temor e humildade" (p 30).

       "A teologia afunda sempre as suas raízes na densidade histórica do presente da fé...
       Com efeito, o futuro não chega, constrói-se; fazemo-lo com as nossas mãos e as nossas esperanças, os nossos fracassos e projetos, a nossa obstinação e a nossa sensibilidade ao novo (p 72-73)
Onde dormirão os pobres?
(texto publicado em 1996 e inserido no livro "Ao lado dos pobres", pp 135-198)

       "A fé é graça. Acolher esse dom é colocar-se atrás das pegadas de Jesus, pondo em prática os seus ensinamentos e continuando a sua proclamação do Reino. No ponto de partida de toda a teologia está o ato de fé. Pensar a fé é algo que surge espontaneamente no crente, na reflexão motivada pela vontade de tornar mais profunda e mais fiel a sua vida de fé. Esta, porém, não é assunto puramente individual: a fé é vivida sempre em comunidade. Ambas as dimensões - a pessoal e a comunitária . marcam quer a vivência da fé quer a inteligência dela.
       A tarefa teológica é uma vocação que surge e é exercida no seio da comunidade eclesial. Ela está ao serviço da missão evangelizadora da Igreja. Essa localização e essa finalidade dão-lhe o seu sentido e esboçam os seus alcances. A teologia é falar acerca de Deus animado pela fé. Deus é, na verdade, o primeiro e último tema da linguagem teológica... a abordagem teológica é sempre insuficiente... Evangelizar é anunciar com obras e palavras a salvação de Cristo... libertação do pecado vai ao próprio coração da existência humana, lá onde a liberdade de cada um aceita ou rejeita - em última instância - o amor gratuito e redentor de Deus, nada escapa à ação salvífica de Jesus Cristo. Esta alcança todas as dimensões humanas, pessoais e sociais, e nelas deixa a sua marcas.
       As teologias trazem, necessariamente, a marco do tempo e do contexto eclesial em que nascem" (pp 137-139).

       "Desde os sues começos, a Teologia da Libertação, que nasceu de uma intensa preocupação pastoral, esteve ligada à vida da Igreja, aos seus documentos, à sua celebração comunitária, à sua inquietude evangelizadora e ao seu compromisso libertador com a sociedade latino-americana, particularmente com os mais pobres dos seus membros. As conferências episcopais latino-americanas [CELAM] dessas décadas (Medellín, Puebla, Santo Domingo), numerosos textos de episcopados nacionais e outros documentos referendam esta asseveração, inclusive quando nos convidam a um discernimento crítico diante de afirmações infundadas e de posições que alguns pretendiam deduzir dessa perspetiva teológica...
       A reflexão da Igreja... Parece-me que a sua preocupação fundamental gira em redor da chamada opção preferencial pelo pobre. Ela organiza, aprofunda e, eventualmente, corrige muitos compromissos assumidos nestes anos, bem como as reflexões teológicas a eles vinculados. A opção pelo pobre é radicalmente evangélica, constitui, portanto, um critério importante para operar uma filtragem nos precipitados acontecimentos e nas correntes de pensamento dos nossos dia" (p 141).

       "O nosso é o único continente, maioritária e simultaneamente, pobre e cristão... três aceções do termo pobre: a) a pobreza real (chamada frequentemente de pobreza material), como estado escandaloso, não desejado por Deus; b) pobreza espiritual, como infância espiritual, que tem como uma das suas expressões, - não a única - o desprendimento perante os bens deste mundo; c) a pobreza como compromisso: solidariedade com o pobre e protesto contra a pobreza. (p 142)

       "Na raiz dessa opção está a gratuidade do amor de Deus. Esse é o fundamento último da preferência.
       O próprio termo «preferência» rejeita toda a exclusividade e procura ressalvar os que sevem ser os primeiros - não os únicos - na nossa solidariedade... universalidade do amor de Deus e a sua predileção pelos últimos da história.
       ... a opção pelo pobre é... uma opção pelo Deus do Reino anunciado por Jesus... esse compromisso baseia-se fundamentalmente na fé do Deus de Jesus Cristo. É uma opção teocêntrica e profética, que ficam as suas raízes na gratuidade do amor de Deus e é requerida por ela....
       O pobre deve ser preferido não porque seja necessariamente melhor do que outros, a partir do ponto de vista moral ou religioso, mas porque Deus é Deus. Toda a Bíblia está marcada pelo amor de predileção de Deus pelos fracos e maltratados da história humana" (p 143-144).

       "A economia moderna desafia as normas morais admitidas comummente, e não somente nos círculos que podemos chamar de tradicionais. A inveja, o egoísmo, a cobiça converteram-se em motores da economia; a solidariedade, a preocupação com os pobres são vistas, em contrapartida, como travões ao crescimento económico e são, finalmente, contraproducentes para alcançar uma situação de bem-estar de que todos possam, um dia beneficiar" (p 153)

       "As nações pobres jazem ao lado das nações ricas, ignoradas por estas; no entanto, é preciso acrescentar que o fosso entre ambas é cada vez maior. O mesmo acontece no interior de cada país. A população mundial coloca-se de modo crescente nos dois extremos do espetro económico e social.
       Por outro lado, e de forma surpreendente, no texto lucano (isto é, no Evangelho de São Lucas) o pobre tem um nome: Lázaro; o rico, o poderoso, pelo contrário, não tem. A situação atual é inversa: os pobres são anónimos e parecem fadados a um anonimato ainda maior, pois nascem e morrem sem se fazer notar. Peças descartáveis numa história que se lhes escapa das mãos e os exclui" (p 158).

       "... os pobres, insignificantes e excluídos, não são pessoas passivas, à espera de que alguém lhes estenda a mão. Não têm apenas carências; nelas fervilham muitas possibilidades e riquezas humanas. O pobre e o marginalizado da América Latina é, muitas vezes, possuidor de uma cultura com valores próprios e eloquentes, que vem da sua raça, da sua história, da sua língua. Tem energias como as demonstradas pelas organizações de mulheres, em todo o continente, em luta pela vida da sua família e do povo pobre, com uma imaginação e força criadora impressionantes para enfrentar crises.
       Para a grande parte dos pobres da América Latina, a fé cristã desempenhou um papel decisivo nessa atitude; foi fonte de inspiração e razão poderosa para se negar a perder a esperança no futuro" (p 164).

       "Os pobres viram-se, muitas vezes, manipulados por projetos que se pretendem globais, sem consideração pelas pessoas e pela sua vida quotidina, e que, devido à tensa orientação ao futuro, se esquecem do presente. No entanto, o pensamento pós-moderno não se limita a isso: solapa também todo o sentido da história, e isso repercurte-se sobre o significado a ser conferido a acada exstência humana...
       ... Numa perspetiva cristã, a história tem o seu centro na vinda do Filho, na Encarnação, sem que isso queira signifciar que a história human avança ineludivelmente seguindo os sulcos traçados e dominados por um férreo pensamento regente. Jesus Cristo, como centro da história, é igualmente Caminho (cf. Jo 14, 5) para o Pai, movimento que dá sentido à existência humana a que todos estamos chamados. Essa vocação confere plena densidade ao presente, ao hoje... (pp 170-171).

       "... a razão última do compromisso com os pobres não reside nas suas qualidades morais ou religiosas - posto que elas existem -, mas na bondade de Deus, que deve inspirar a nossa própria conduta" (p 181).

       "O diálogo implica interlocutores conscientes da sua própria identidade. A fé cristã e a teologia não podem renunciar às suas fontes e à sua personalidade para entrar em contacto com outros pontos de vista. Ter convicções firmes não é obstáculo ao diálogo; é, antes, uma condição necessária. Acolher não por mérito próprio, mas por graça de Deus, a verdade de Jesus Cristo nas nossas vidas não somente não invalida o nosso trato com pessoas de outras persptetivas, as confere-lhes o seu autêntico sentido. Perante a perar de referências que alguns parecem viver, é importante recordar que a identidade humilde e aberta, é um componente essencial de uma espiritualidade...
       ...a capacidade de ouvir os outros é tanto maior quanto mais firme for a nossa convicção e mais transparente a nossa identidade cristã" (pp 186-187)

       "Devo confessar que estou menos preocupado pelo interesse ou pela sobrevivência da Teologia da Libertação do que pelos sofrimentos e pelas esperanças do povo a que pertenço, e especialmente pela comunciação da experiência e da mensagem de salvação de Jesus Cristo. Esta última é a matéria da nossa caridade e da nossa fé. Uma teologia, por mais relevante que seja o seu papel, não passa de um meio para o aprofundamento nesse amor e nessa fé. Por essa razão, trata-se, efetivamente, de proclamar a esperança ao mundo no momento que vivemos como Igreja" (p 198).

in GUSTAVO GUTIÉRREZ e GERHARD LUDWIG MÜLLER. Ao lado dos Pobres.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Ao lado dos Pobres - Teologia da Libertação

GUSTAVO GUTIÉRREZ e GERHARD LUDWIG MÜLLER. Ao lado dos Pobres. A Teologia da Libertação é uma Teologia da Igreja. Paulinas Editora. Prior Velho 2014. 208 páginas.
       Com a eleição do então Cardeal Jorge Mario Bergoglio, em 13 de março de 2013, escolhendo o nome de Francisco, em homenagem a Francisco de Assis, colocando o acento tónico na Igreja pobre e dos pobres, a Teologia da Libertação ganhou nova visibilidade. Longe vão os tempos em que a Teologia da Libertação esteve sob suspeita, sendo acusada, por ignorância e preconceito, de uma teologia marxista, partindo da análise socioeconómica, na persecução do mesmo objetivo da luta de classes.
       Desde logo, no centro da Teologia da Libertação, cuja paternidade tem um rosto de fidelidade à Igreja e ao Magistério, e fidelidade e compromisso com os pobres do Peru, sua terra natal, englobando toda a América Latina e Caribe, a opção preferencial pelos pobres, expressão acarinhada pelos Bispos locais em diversas Assembleias, é uma opção que decorre do amor gratuito e misericordioso de Deus pelos pobres, não pela bondade dos mesmos. Em Jesus, Deus que encarna e Se "localiza", os pobres têm lugar à mesa, hão de ser os primeiros a ser servidos. A Teologia da Libertação é verdadeira teologia, parte de Deus, do Evangelho, acolhe o magistério eclesial, colocando o enfoque precisamente na opção pelos pobres, não como adenda, mas como compromisso irrenunciável. Por outro lado, mesmo servindo-se das ciências humanas e sociais, da análise socioeconómica, não visa, como no marxismo, a troca de uma classe social por outra, mas a dignidade da pessoa humana, de todas as pessoas. A economia de mercado, a globalização da economia, na maioria das vezes não levou a melhorias da vida da maioria, mas sobretudo a abertura dos mercados emergentes para obrigar o escoamento dos produtos das nações mais ricas.
       Vê-se como o autor - não renunciando ao enfoque próprio da Teologia da Libertação, mostrando com clareza que toda a teologia tem em conta a particularidade, a começar pelo próprio Jesus, judeu de nascimento - mantém uma pose de grande humildade e abertura, explicando uma ou outra vez, sublinhando que o mais importância nem é a relevância da Teologia da Libertação, mas o serviço aos mais pobres.
       O Papa Francisco tem precisamente sublinhado como a Igreja deverá ir às periferias geográficas e sobretudo existenciais, tendo vindo também ele de uma periferia.
       A reflexão resultante do Concílio Vaticano II, sobretudo com a Constituição Gaudium et Spes, com a abertura da Igreja ao mundo e a necessidade de uma leitura atenta e atual aos sinais dos tempos, é precisamente berço para o nascimento da Teologia da Libertação, que procura ler e responder aos sinais de uma América Latina pobre, empobrecida, periférica. Gustavo Gutiérrez não se deixou enredar em polémicas e respondeu sempre com abertura às estruturas da Igreja, nomeadamente perante a Congregação para a Doutrina da Fé, com o então Cardeal Ratzinger, como o próprio [Ratzinger] a empenhar-se pessoalmente no diálogo frutuoso com o pai da Teologia da Libertação, acolhendo a riqueza deste património, cuidando para minorar os riscos de desvio e apropriação da Teologia da Libertação por algum regime ditatorial.
       Curiosamente, o parceiro desta publicação é o atual Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Gerhard Ludwig Müller (feito Cardeal no dia 21 de fevereiro de 2014, pelo Papa Francisco). Outra curiosidade, é que foi nomeado para Prefeito por Bento XVI, a 2 de julho de 2012, para substituir o cardeal norte-americano William Joseph Levada, por limite de idade.
        O próprio Gutiérrez sublinha o risco de alguns desvios teóricos e práticos da Teologia da Libertação, sem que seja essa a sua génese. No livro, Gerhard Müller, deixa claro que "o movimento eclesial e teológico latino-americano conhecido como "Teologia da Libertação", que se espalhou por outras partes do mundo depois do Concílio Vaticano II, deve, em minha opinião, ser incluído entre as correntes mais importantes da teologia católica do século XX".
       Continua a haver muitos críticos da Teologia da Libertação, que o fazem uma e outra vez por ignorância e preconceito. Mas também a polémica se gera do lado dos que arremessam com esta Teologia contra a Igreja e o Magistério. No entanto, a coletânea dos textos recolhidos neste livro, publicada em 2004, na Alemanha, mais os textos do de Gerhard Müller, afastam-se claramente de qualquer polémica, num equilíbrio ímpar. Sublinhe-se também, que durante a reflexão/análise na Congregação para a Doutrina da Fé, sob a batuta do então Cardeal Joseph Ratzinger, nunca o movimento foi criticado. Por outro lado, o Papa João Paulo II recorrerá por diversas vezes à linguagem nova que vem das Conferências Episcopais da América Latina e Caribe, reunidas em Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992). A "opção preferencial pelos pobres" entra definitivamente no vocabulário da Igreja e a necessidade da Nova Evangelização enraíza-se precisamente nas Assembleias do episcopado latino-americano, sancionando a Teologia da Libertação. Posteriormente, a Assembleia da CELAM (Episcopado Latino-Americano) em Aparecida, no Brasil, em 2007, e tal como o fez João Paulo II, também Bento XVI lhe dirigiu palavras de estímulo num discurso muito cristológico.
       Para melhor compreender o que significa Teologia da Libertação, mas sobretudo a opção preferencial pelos pobres, que ao tempo de Cristo tinham nome - Lázaro -, e que agora são uma maioria sem nome e sem chão, este é um excelente texto, de fácil compreensão. O propósito da Teologia da Libertação, com um enfoque específico, visa o mesmo que toda a Teologia, que Cristo seja tudo em todos.