Natascha Kampusch, 3096 dias, Edições Asa: 2011

Natascha Kampusch foi "roubada" à vida que tinha, no dia 2 de março de
1998. Passados 3096 dias, no dia 23 de agosto de 2006, consegue
finalmente ganhar coragem para fugir ao seu raptor, a única pessoa com
quem podia falar, viver, relacionar-se. Só 4 anos depois, no entanto, é
que consegue ser e sentir-se livre:
"Com
este livro, tentei fechar o capítulo mais longo e mais negro da minha
vida. Sinto-me profundamente aliviada por ter encontrado palavras para o
improferível e para as constradições. Vê-las impressas diante dos meus
olhos ajuda-me a olhar com confiança para o futuro. Porque aquilo por
que passei também me tornou forte. Sobrevivi ao encarceramento na
masmorra, consegui libertar-me sozinha e mantive a minha integridade.
Acredito firmemente que também conseguirei viver a minha vida em
liberdade. E essa liberdade começa apenas agora, quatro anos depois do
dia 23 de agosto de 2006. Apenas agora, depois destas linhas, consigo
colocar um ponto final nesta história e dizer em toda a verdade: SOU
LIVRE".
Nasceu a 17 de fevereiro de 1988. A mãe tinha então 38 anos e duas
filhas já crescidas. Os viviam há três anos juntos. Vai ter de
conquistar o seu lugar no mundo.
Naquele dia acordou triste e furiosa. A fúria da mãe, por causa do pai,
recaíra nela. A mãe proibiu-a de voltar a ver o pai. Queria ser adulta
para se libertar das discussões da mãe. Com 10 anos aproximava o tempo
de se tornar independente, faltavam 8 anos, para fazer os 18 da
maioridade. Convencera a mãe a deixá-la ir a pé para a escola. Afinal já
andava na quarta classe. Naquele dia saía de casa alterada com a mãe de
quem memorizara as palavras: "Nunca se deve partir quando estamos
furiosos com alguém. Nunca se sabe se voltaremos a ver essa pessoa".
Não
se despediu da mãe e não a voltaria a ver por muito, muito, por
demasiado tempo. Aproxima-se do homem que a fará prisioneira, com
receio, mas quando olha para ele os seus receios desvanecem-se, estava
errada, foi empurrada para a carrinha, que lhe despertara a atenção
momentos antes.
"Tentei
gritar. Mas não saiu nenhum som da minha boca. As minhas cordas vocais
simplesmente se recusaram a colaborar. Eu toda era um grito. Um grito
mudo, que ninguém conseguia ouvir".
É encarcerada numa masmorra, sem luz natural, pequena (2,70 m de
comprimento, 1,80 m de largura, 2,40 m de altura), uma jaula, na cave.
Durante 8 anos será agredida com violência física e emocional (ninguém
quer saber de ti, ninguém gosta de ti, só me tens a mim), passa fome,
sede, por vezes fica dias inteiros sozinha, com a luz acesa, ou às
escuras, com um teporizador a controlar o tempo. É forçada a trabalhar, a
limpar tudo num brinco, e por vezes voltar a limpar o já limpo, só por
capricho, há-de ajudar o raptor em trabalhos mais pesados, carrega pesos
maiores do que as suas forças, o racionamento da comida é outra forma
de controlo. O raptor promete-lhe uma vida feliz a dois, se ela não
desobedecesse, se colaborasse.
Há dias apresentamos aqui uma história de resistência e sobrevivência -
INVENCIVEL
-, diríamos que também esta é uma história de sobrevivência e de uma
grande resistência. Não quebra, não se deixa destruir, ainda que por
vezes tivesse pensamentos destrutivos, não perde a grandeza que lhe vai
na alma:
"Eu
sempre resisti às suas tentativas de me apagar e me transformar numa
criatura sua. Ele nunca me conseguiu quebrar. Por outro lado, as
tentativas dele para me transfomarem noutra pessoa caíram em solo
fértil"...
Até o nome quis trocar-lhe. Quando ela fazia algum erro, ele não
perdoava: "És burra que nem um porta"... agarrou num saco de cimento e
atirou-lho:
"Não
foi a dor o que mais me chocou. O saco era pesado e o embate magoou-me,
mas eu teria podido suportá-lo. Foi a dimensão da agressão do criminoso
que me tirou a respiração. Ele era a única pessoa que existia na minha
vida, e eu estava totalmente dependente dele. Aquele ataque de fúria
ameaçava-me de um modo extremo. Senti-me como um cão batido que não pode
morder a mão que o agride porque é a mesma que lhe dá de comer. A única
saída que me restava era a fuga para dentro de mim. Fechei os olhos e
ignorei tudo e não saí do sítio".
Compensou-a com gomas.
Mas ele não venceria...
"Mas
acabei por vencer. Nunca, nem uma única vez, durante todos os anos em
que ele exigiu de um modo tão veemente, lhe chamei «meu senhor».
Nunca me ajoelhei diante dele.
Muitas
vezes teria sido mais fácil desistir. Teria sido poupada a alguns
murros e pontapés. Mas eu tinha de preservar um certo espaço de manobra
naquela situação de total submissão e de total dependência do raptor...
Ele dominava-me quando me humilhava e maltratava sempre que lhe
apetecia. Dominava-me quando me fechava dentro da masmorra, quando me
obrigava a trabalhar como escrava. Mas nesse ponto fiz-lhe frente.
Chamava-lhe «criminoso» quando ele queria que eu o chamasse de «meu
senhor». Chamava-o de «querido» ou de «meu tesouro» em vez de «meu
senhor» para o fazer ver a situação grotesca em que ele nos pusera".
Vai escrevendo sobre o que lhe sucede. As tantas apenas sobre os maus
tratos. É um segundo EU que lhe promete a libertação para os 18 anos.
Nessa altura, o outro EU pegar-lhe-á na mão e conduzi-la-á em direcção à
liberdade. É um grito que se mantém e certamente a ajudará a manter-se
sã e decidida a viver até ao dia em que fugirá do seu raptor.
"Não te deixes abater quando ele diz que tu és demasiao estúpida para tudo.
Não te deixes abater quando ele te bate.
Não te importes quando ele di que és uma incapaz.
Não te importes quando ele diz que não consegues viver sem ele.
Não reajas quando ele te apaga a luz.
Perdoar-lhe tudo e não continuar zangada com ele.
Ser mais forte.
Não desistir. Nunca desistir"
Mais fácill de dizer que fazer. Eis que se aproxima a hora que
prometera a si mesma para fugir, e com ela a dúvida, a incerteza, a
hesitação:
"A minha incerteza acerca do criminoso afinal poder ter razão e eu
estar melhor à sua guarda do que lá fora começou a diluir-se lentamente.
Agora eu era uma pessoa adulta, o me segundo Eu tinha-me firmemente na
mão e eu sabia muito bem que não queria continuar a viver daquela
maneira".
"«Colocaste-nos
numa situação em que apenas um de nós poderá sobreviver», disse eu de
repente. O criminosso olhou para mim surpreendido. Eu não me deixei
distrair. «Estou-te sinceramente grata por não me teres matado e por me
tratares tão bem. É muito simpático da tua parte. Mas não me podes
obrigar a viver contigo. Eu sou senhora de mim mesma, e tenho as minhas
necessidades. Esta situação tem de ter um fim»... Eu continuei a falar.
«É apenas natural que eu tenha de partir. Tu devias ter contado com isso
desde o princípio. Um de nós tem de morrer, não existe outra solução.
Ou me matas, ou me libertas»... Nunca desitir. Nunca desistir. Eu não
vou desistir de mim... respirei e disse a frase que modifcou tudo:
«Tentei tantas vezes suicidar-me - contudo, era eu a vítima. Na
realidade, seria muito melhor se tu te suicidasses. Tu não tens qualquer
outra opção. Se te matasses, todos os problemas deixariam de
existir»... eu fugiria à primeira oportunidade. E um de nós não iria
sobreviver a isso".
Chega a dia da sua fuga. Quando ele tenta vender, por telefone, um
apartamento que remodelaram, vê a oportunidade de fugir. Hesita mas
foge. O portão do jardim está aberto. Cruza-se com dois homens, a quem
pede socorro e um telefone para ligar para a polícia, seguem em frente.
Entra no jardim de uma mulher assustada que só quer que ela saia do
jardim, mas que decide ligar para a polícia, daí a pouco estão dois
incrédulos polícias junto dela. Estava concluída parte da sua fuga.
É esta a história narrada pela própria, numa linguagem atraente, em que
sobressaem os seus sentimentos, quase se vêem as suas lágrimas, o seu
sofrimento, a sua confusão, a sua dignidade. Este é mais uma excelente
leitura, sobre sobrevivência humana. Em situações tão medonhas é
impressionante que Natascha Kampusch não tenha quebrado.