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terça-feira, 20 de março de 2018

VL – O Pobre de Nazaré é o Rei do Universo

Vivemos, no penúltimo domingo, o primeiro Dia Mundial dos Pobres, iniciativa proposta pelo Papa Francisco por ocasião do encerramento do Jubileu da Misericórdia. A designação suscitou algumas críticas em surdina, pois poderia dar a sensação que se estava a cristalizar a pobreza. Em vez de “pobres” talvez pudesse combinar melhor erradicação da pobreza ou da exclusão social. Porém, “pobres” é uma palavra e uma realidade que se cola. Podemos ter opiniões diferentes sobre o que significa pobreza, mas falar de pobres não ilude, sabemos que nos remete imediatamente para vidas marcadas pela doença, pela miséria, pelo abandono, pela solidão, pela perda de identidade e de pertença a uma comunidade.
Com a criação deste dia, o Papa interpela, antes de mais, os crentes contra a cultura do descarte e do desperdício, desafiando-nos à partilha solidária, ao cuidado do outro, ao acolhimento de Cristo nos mais frágeis, pois para tocar Cristo é necessário tocar as chagas do Seu corpo no corpo dos pobres. O convite alarga-se a todos “independentemente da sua pertença religiosa, para que se abram à partilha com os pobres em todas as formas de solidariedade, como sinal concreto de fraternidade. Deus criou o céu e a terra para todos; foram os homens que, infelizmente, ergueram fronteiras, muros e recintos, traindo o dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão”.
O Papa Francisco deixou bem claro que os pobres não são um problema, mas “um recurso de que lançar mão para acolher e viver a essência do Evangelho… são eles que nos abrem o caminho para o Céu, são o nosso «passaporte para o paraíso». Para nós, é um dever evangélico cuidar deles, que são a nossa verdadeira riqueza; e fazê-lo não só dando pão, mas também repartindo com eles o pão da Palavra, do qual são os destinatários mais naturais. Amar o pobre significa lutar contra todas as pobrezas, espirituais e materiais”.
Na Sua mensagem para este dia, o Papa lança a ponte para a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo. Com efeito, “a realeza de Cristo aparece em todo o seu significado precisamente no Gólgota, quando o Inocente, pregado na cruz, pobre, nu e privado de tudo, encarna e revela a plenitude do amor de Deus. O seu completo abandono ao Pai, ao mesmo tempo que exprime a sua pobreza total, torna evidente a força deste Amor, que O ressuscita para uma vida nova no dia de Páscoa”. O reconhecimento da soberania de Cristo coloca-nos todos ao mesmo nível, como súbditos mas sobretudo como irmãos.

VL – A realeza de Jesus ao serviço dos pequeninos

O ano litúrgico é coroado pela solenidade de Jesus Cristo como Rei do Universo, cuja realeza tem um toque muito peculiar. Jesus é, claramente, um Rei que vem para servir, que Se assume como Pastor, Irmão, como Filho. Um reino cuja marca registada é o amor, o serviço, a caridade, a atenção e o cuidado aos mais frágeis, aos mais pequeninos. É um Reino frágil pois assenta os seus pilares na bondade, na misericórdia e na ternura. Não tem armas nem exércitos treinados. Não tem mestres nem comandantes. Mas é simultaneamente um reino forte porque não está dependente das circunstâncias sociais, políticas e económicas ou de equilíbrios de poder, vive a constância do serviço. Nada tem a perder, só tem a ganhar e ganha ao gastar-se a favor dos mais pequeninos.
A coroa deste Rei é tecida de espinhos. Melhor, a Sua coroa é tecida de amor, de compaixão, de delicadeza. O Seu trono é uma "abençoada" Cruz. Melhor, a Seu trono é a vontade do Pai. É o Seu alimento, a Sua ligação mais profunda. Por nada Se afasta dos desígnios paternos. É um Rei obediente, até à morte e morte de Cruz. Governa transparecendo as palavras do Pai, as obras do Pai. Nada faz por Si mesmo, diz o que ouviu dizer ao Pai, realiza as obras que o Pai Lhe mandou fazer.
A fragilidade do Rei é o Seu amor sem limites. É também a Sua grandeza: amor que ama e se consome a favor de todos a começar pelos últimos, pelos mais pequeninos.
O nosso Rei é Jesus, Filho Bem-amado do Pai que nos resgata do egoísmo, das trevas e da morte e nos assume como irmãos. Agora temos Pai, não somos órfãos. Nunca mais seremos órfãos. Temos Pai, sabendo que no final de tudo seremos julgamos pelo Pai, e não por um Juiz desconhecido, estranho, distante, imparcial, frio, vindicativo, seremos julgados pela misericórdia do Pai, através do Filho, no Espírito Santo.
Os Seus ajudantes, os Seus ministros, os Seus seguidores só têm que O imitar. Fazer do mesmo modo. Novamente o lema da nossa diocese retirado da parábola do Bom Samaritano: Vai e faz o mesmo, faz tu também do mesmo jeito. O Samaritano vê, para, aproxima-se para ver melhor, desce, debruça-se, ajuda, trata das feridas, levanta aquele que está caído como morto, leva-o até um lugar seguro, agrafa outros para dele cuidarem, assegurando-se que será bem tratado. É esta a verdadeira soberania de Jesus e dos Seus discípulos: servir os mais pequeninos.

sábado, 19 de novembro de 2016

Solenidade de Cristo Rei do Universo - 20.nov.2016

       1 – Que realeza esta! Um trono, uma cruz! Uma coroa, tecida de espinhos e de amor! Um reino, sem terras nem palácios! Um exército sem armas nem treino militar! Um poder feito de serviço e de perdão! Uma chefia que se coloca de joelhos para Se dar! Uma esperança que é pregada no madeiro! Uma certeza: quem seguir o líder deste Reino não vai ter uma vida facilitada! Um projeto de vida: amar, servir, dar-Se por inteiro, colocar os outros em primeiro lugar, salvar os outros para que os outros me/te salvem, comprometer-se na transformação do mundo, deixar marcas de amor espalhadas por toda a parte, em todos os momentos, seguir Jesus, transparecer Jesus, testemunhar Jesus, dar a vida por Jesus, para que Jesus seja tudo em todos!
       A realeza de Jesus contradiz as realezas do mundo. Estas têm vassalos! Jesus tem discípulos! Os súbditos dos reinos deste mundo têm títulos e honrarias. Os discípulos de Jesus estão comprometidos com a verdade, com o serviço, com a caridade! Os membros dos reinos históricos têm regalias e são premiados com terras e mais títulos pelos serviços prestados. Os seguidores de Jesus são premiados com a alegria e com o sofrimento, com a satisfação de O seguir e com a certeza que serão perseguidos como Ele.
´      O rei veste os melhores trajes, linho fino, seda, com brocados de ouro, com mantos compridos... Adorna-se com fios e anéis, com pedras preciosas. O "Rei dos Judeus" está sem vestes! D'Ele se pode dizer com propriedade: "o rei vai nu". Apenas um pano em volta da cintura. Sem bolsas nem cordões! A túnica é sorteada! As roupas distribuídas! Sem maquilhagens nem adornos reais. Está maquilhado de sangue e de lágrimas, de amor e de confiança em Deus.
       2 – «Salvou os outros: salve-Se a Si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito»... «Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo»... «Não és Tu o Messias? Salva-Te a Ti mesmo e a nós também».
       Uma das tentações nas sociedades do nosso tempo é visível diante da cruz de Jesus. Salva-Te a Ti e a nós. Eu, eu e eu! De fora fica o tu e os outros! O mundo é atravessado por uma crise que parece não ter fim: guerras, fome, violência, pobreza, refugiados, exclusão social, fanatismo religioso, nacionalismos cada vez mais acentuados, racismo a florescer. As razões são variadas: interesses económico-financeiros, defesa de valores "religiosos" e da identidade cultural! Mas, no final, a única razão é o egoísmo, o colocar-se a si em primeiro lugar! À frente de todos, além e apesar de todos!
       Os chefes do povo, alguns dos soldados, um dos malfeitores, sintonizam pelo mesmo diapasão. É sempre um risco deixar-nos levar pelos outros quando estamos em grupo!
       O outro malfeitor não se deixa envolver pelos escárnios e pela maledicência. Intervém. Marca posição. Distancia-se da opinião corrente e das vozes sincronizadas contra Jesus. Já não tem muito a perder! Melhor, tem tudo a ganhar! Repreende o companheiro de armas: «Não temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? Quanto a nós, fez-se justiça, pois recebemos o castigo das nossas más ações. Mas Ele nada praticou de condenável».
       Este malfeitor deixou-se trespassar pelo olhar de Jesus e pelo Seu amor. E, por conseguinte, é para Ele que se dirige em súplica: «Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza». Em tons de brincadeira, costuma dizer-se que este foi o maior ou melhor ladrão, pois no último momento roubou o Reino de Deus. «Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso». A realeza de Jesus exerce-se na misericórdia, na compaixão, no perdão. Há sempre tempo enquanto estamos no tempo. A misericórdia de Deus não tem limites, a não ser que lhos ponhamos!

       3 – O Rei David foi promessa e esperança para todo o Israel, para Judá e para o reino do Norte. Tornou-se figura de uma realeza perene, eterna, definitiva, universal. As tribos procuram-no para o aclamarem rei, pois já no tempo do rei Saúl era David quem "dirigia as entradas e saídas de Israel".
       O reinado de David será lido como um pastoreio. Com efeito, antes de ser rei era pastor. Tornando-se rei, é o Pastor de todo o Israel, o Povo de Deus. Pastoreia em nome de Deus!
       De Jesus se dirá que é o novo Moisés e, por conseguinte, na montanha nos dá uma lei nova, as Bem-aventuranças, que não anula a anterior, mas a pleniza no amor e no serviço. É Ele também o novo David, Aquele que vem da parte de Deus, é aclamado "Filho de David", para ser acolhido em minha, na tua, em nossa casa, no meu, no teu, em nosso coração, na minha, na tua, na nossa vida! Para que seja Ele a reinar em nós! É o Bom Pastor que nos congrega num só rebanho!
       4 – Um Rei. Um Pastor. Um rei sem coroa nem exército nem palácio, nem vassalos, nem escravos. Um pastor que cuida, ajunta, guia, envolve, avança e recua, para que nenhuma ovelha se perca, para que todas possam integrar o mesmo redil, condu-las em segurança, leva-as às águas refrescantes, às pastagens verdejantes. Um Rei que é Pastor. São os pastores, pobres e simples, os primeiros a louvar a Deus pela Sua chegada. E os magos, vindos do oriente, vindos de longe, estrangeiros e estranhos, os primeiros a reconhecê-l'O na Sua realeza, na sua divindade e na Sua humanidade.
       Um Deus ao alcance do nosso olhar! "Cristo é a imagem de Deus invisível, o Primogénito de toda a criatura". Podemos vê-l'O, podemos persegui-l'O, podemos amá-l'O e, até, podemos matá-l'O. Um Deus que, em Cristo, Se deixa abraçar, beijar, Se deixa ver, Se deixa escutar. Jesus leva tão longe a misericórdia de Deus, que Se deixa crucificar, levando até ao fim o Seu amor por mim, por ti, por nós, por todos. Para nos salvar! Para nos assumir por inteiro. "Aprouve a Deus que n’Ele residisse toda a plenitude e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas, estabelecendo a paz, pelo sangue da sua cruz, com todas as criaturas na terra e nos céus".
       Por conseguinte, "damos graças a Deus Pai, que nos fez dignos de tomar parte na herança dos santos, na luz divina. Ele nos libertou do poder das trevas e nos transferiu para o reino do seu Filho muito amado, no qual temos a redenção, o perdão dos pecados".

       5 – A primeira missão de quem é amado é responder (e retribuir). Deus precede-nos no amor, criando-nos e, em Cristo, redimindo-nos, elevando-nos. O amor ama o amor. Amor com amor se paga (São João da Cruz). Quem ama predispõe-se a ser amado (ou odiado, esquecido, recusado, desprezado). O amor de Deus é absoluto, está antes e acima de qualquer condição. Em todo o caso, como sublinha Bento XVI, também Deus espera que Lhe respondamos, que retribuamos o amor com que nos criou e nos salvou. Cria-nos à Sua imagem e semelhança para sermos capazes de Lhe responder. A semelhança está na capacidade de amar e de ser amado.
        Nesta resposta, neste sermos responsáveis pelo amor que recebemos, está a nossa felicidade, o sentido definitivo da nossa vida, a abertura ao transcendente e a dinâmica da fraternidade. O amor impulsiona-nos a sermos criativos, cocriadores, na certeza que perduraremos além do tempo e da história, pois o amor clama por eternidade!
       “Deus eterno e omnipotente, que no vosso amado Filho, Rei do universo, quisestes instaurar todas as coisas, concedei propício que todas as criaturas, libertas da escravidão, sirvam a vossa majestade e Vos glorifiquem eternamente”.
        A glorificação de Deus é a vida do homem, o homem vivo, nas palavras de Santo Ireneu. Quanto mais perto de Deus, mais perto uns dos outros. Quando predomina a realeza de Deus, a certeza de que seremos iguais, seremos irmãos!

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (C): 2 Sam 5, 1-3; Sal 121 (122); Col 1, 12-20; Lc 23, 35-43.

sábado, 21 de novembro de 2015

Solenidade de Jesus Cristo Rei do Universo - 2015

       1 – Deus liberta-nos para vivermos como filhos, constituindo-nos herdeiros, Sua família, abençoando-nos, reconhecendo-nos irmãos de Jesus Cristo, em Quem recebemos a plenitude da redenção. Com Ele a eternidade fica ao nosso alcance. Participamos da santidade de Deus que Se faz Um connosco, Um de nós. Só há verdadeira fraternidade quando nos considerarmos como iguais, da mesma carne e do mesmo sangue, com a mesma origem e o mesmo fim (destino). Em Jesus Cristo, Deus abaixa-Se, coloca-Se, como dom, ao mesmo nível que nós, prova o sofrimento e a morte, a fragilidade e a finitude, a alegria e a festa, o encontro e a partilha que comunica e gera vida em nós e no mundo que nos circunda.
       Não acima. Não à margem. Não indiferente. Não alheio ou insofrível. Não distante nem juiz iníquo. Não intocável ou sobranceiro à humanidade. Um de nós, Um connosco. Entra na história e no tempo. Caminha connosco. Acompanha-nos. Vive. Ama. Sofre. Sente. Sorri. Cansa-Se. Tem fome e sede e deseja matar a fome e a sede e encontrar o sentir das pessoas, dando sentido à vida. Alegra-Se. Chora. Comove-Se e envolve-Se. Deus, em Jesus Cristo, não é (somente) um Ser Espiritual, tem ROSTO, e carne e corpo e vida. Deixa-Se ver e ouvir, deixa-Se tocar e perceber, deixa-Se amar e odiar, deixa-Se perseguir e matar.
       E ainda assim Aquele Deus que em Jesus Se torna tão próximo, continua a ser Deus. Na história de Jesus, Deus deixa-Se ver. Deixa-Se tocar. Podemos segui-l'O. A divindade como a realeza de Deus é caracterizada pelo abaixamento. É uma soberania de amor, a partir de baixo, a partir de dentro. Deus não Se impõe. Deus propõe-Se, expõe-Se. Sujeita-Se às coordenadas do espaço e do tempo. Sujeita-se a ser rejeitado, perseguido e morto.
       2 – A realeza de Cristo, que hoje celebramos, está despida de poder e de todas as armaduras que pesam, distanciam, afastam e amedrontam. A coroa não tem pérolas ou esmeraldas. É uma coroa de espinhos, tecida com os fios do amor de Deus para connosco. Para Ele a nossa vida vale. Cada vida vale. Só não vale matar – tirar a vida – em nome d'Ele que nos dá a Sua própria Vida. Ele dá a Sua vida, para que a nossa seja abundante.
       Não se levanta para matar ou destruir. Oferece-Se como sacrifício. Dá a Sua vida para que nenhuma vida dada seja tirada ou desperdiçada. Puro dom, entrega total. Até ao fim. Até à última gota de sangue. Não se vislumbram grandezas. Nem exército, nem segurança pessoal, nem palácio, nem cetro. Somente Jesus, somente Ele, com a Sua vida, dando-Se. A realeza está no olhar, no falar, no tocar, no chamar, no amar, no servir. A realeza de Jesus está no encontro, no perdão, na bênção. A realeza de Jesus exprime-se pela proximidade e pela compaixão. Por nós.
       Pilatos fica intrigado com Jesus. Pergunta-lhe se Ele é Rei. Jesus responde-lhe: «O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que Eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui». E logo acrescenta: «Sou Rei. Para isso nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade».
       A busca do poder é uma característica (ou tentação) muito humana, mas que por vezes desumaniza. A manutenção do poder a qualquer custo, em qualquer situação, não com o ensejo de servir e de melhorar o mundo, mas como possibilidade de subjugar vontades e pessoas, em benefício pessoal, para autossatisfação, tirando proveitos à custa do trabalho e sacrifício de outros, torna o poder preservo.
       Não seja assim entre vós. Dizia Jesus aos seus discípulos, preparando-os para um tempo novo em que eles se tornassem artífices dos novos céus e nova terra. Quem entre vós quiser ser o primeiro seja o servo de todos. Será como o Filho do Homem que veio não para ser servido mas para servir e dar a vida por todos. É um Rei que parte (para a guerra) para morrer em vez dos seus soldados, evitando que se percam. Ele não foge, não Se esconde, não envia outros em Seu lugar, não permite que outros “paguem” por Ele. Quem buscais? Jesus de Nazaré? Sou Eu mesmo!
       3 – Só Deus é Deus e ainda bem. Jesus Cristo como Rei do Universo remete-nos para uma realeza de outra ordem, não é deste mundo, mas ainda assim é realeza, soberania. E ainda bem, pois desta forma não se poderá subjugar a interesses egoístas e livra-nos de despotismos prolongados no tempo. Se Deus é Deus ninguém poderá ocupar esse lugar. Derrubando Deus, privatizando-O, remetendo-O para um lugar secundário e acessório, o perigo real, e que se concretizou em diferentes períodos da história, de pessoas, instituições, ideologias ocuparem o Seu lugar, submetendo tudo e todos em benefício de uns poucos.
       Em Jesus Cristo vislumbra-se a realeza de Deus, como dom a favor da humanidade. "Foi-lhe entregue o poder, a honra e a realeza, e todos os povos, nações e línguas O serviram. O seu poder é eterno, não passará jamais, e o seu reino não será destruído".
       A vinda de Deus é garantia que dá sentido à nossa existência e esperança que nos convoca para a transformação do mundo. Saber que há Alguém que assegura a nossa vida para além do tempo e da história, além das injustiças e sofrimentos atuais, dá-nos coragem para prosseguir caminho. O bem vencerá, e a alegria desta certeza, no encontro com Jesus Cristo, permite encontrar forças para um compromisso permanente, pois em todo o bem que façamos nos encontramos com Deus e realizamos a nossa condição humana.
       Com efeito, "Jesus Cristo é a Testemunha fiel, o Primogénito dos mortos, o Príncipe dos reis da terra. Àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus seu Pai, a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amen. Ei-l’O que vem entre as nuvens, e todos os olhos O verão, mesmo aqueles que O trespassaram; e por sua causa hão de lamentar-se todas as tribos da terra. Sim. Ámen. «Eu sou o Alfa e o Ómega», diz o Senhor Deus, «Aquele que é, que era e que há de vir, o Senhor do Universo».
       4 – Peçamos ao Senhor a humildade para nos submetermos à Sua soberania de amor e conciliação, a sabedoria para percebermos a Sua vontade, a audácia para prosseguimos na luta pelo bem, pela justiça e pela verdade, transparecendo-O nas nossas palavras e nos nossos gestos.
       "Deus eterno e omnipotente, que no vosso amado Filho, Rei do universo, quisestes instaurar todas as coisas, concedei propício que todas as criaturas, libertas da escravidão, sirvam a vossa majestade e Vos glorifiquem eternamente" (oração de coleta).
       A glória de Deus é o homem vivo (Santo Ireneu). Glorificamos Deus na nossa carne, no nosso corpo, na nossa vida, na história, neste momento que nos é dado viver. Não amanhã. Não ontem. É hoje, aqui e agora (hic et nunc). Não com o mundo inteiro. Não com todas as pessoas. É hoje, com as pessoas que estão aqui, que me rodeiam, que Deus me deu para cuidar. Começa aqui e agora. Não depois. Não quando tiver mais tempo. Não quando as condições forem mais favoráveis. Não quando houver mais recursos. É agora que Deus me chama, me convoca, me provoca e me desafia. É agora que Deus me envia. Agora, não logo ou quando tiver mais tempo. É agora que sou discípulo e, simultaneamente, missionário.
       O mundo inteiro é já o meu coração, a minha casa. É a minha disponibilidade para escutar e para a acolher Deus. Para escutar e acolher aquele que vem, aquele que chega, cruzando-se comigo, em casa, na rua, no trabalho, no local de lazer ou em qualquer lugar que os nossos passos e os nossos olhares e os nossos corações e a nossa vida se cruzarem. Começa agora. Não importa deitar contas à vida, ao passado, ao que foi ontem, ainda que o ontem seja integrado hoje. Não amanhã com as possibilidades e os riscos que vêm lá, ainda que a prudência e a preparação nos ajudem quando o futuro se tornar presente. Somos hoje, PRESENTE de Deus para o mundo, para este tempo, para as pessoas que podemos ajudar. O mundo inteiro está aí, o mundo inteiro é a pessoa que posso cuidar, agora, porque nesta pessoa, o meu filho, a minha mãe, o meu vizinho, o meu marido ou a minha esposa, o meu colega de trabalho ou a minha inimiga de estimação, é o mundo inteiro, o tempo todo, o espaço completo, que tenho para amar Deus, para transformar a vida, o mundo, para criar os novos céus e a nova terra. É assim Jesus, em cada olhar, em cada encontro. Com cada pessoa. Há mais pessoas. Mas é esta que tenho de amar, é nesta que tenho de encontrar Deus, é a esta que tenho de dar Deus.

Pe. Manuel Gonçalves



Textos para a Eucaristia (B): Dan 7, 13-14; Sal 92 (93); Ap 1, 5-8; Jo 18, 33b-37.

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

D. António Couto - Dia da Igreja Diocesana de Lamego

Homilia pronunciada na Igreja Catedral de Lamego, a 24 de Novembro de 2013

IR REQUER MUDANÇA DE LUGAR E DE MODO: IR É NÃO FICAR AQUI E NÃO FICAR ASSIM

1. Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo. Encerramento do Ano da Fé. Dia da nossa Igreja Diocesana. Ordenação Diaconal do José Fonseca Soares.

2. Antes de mais, o título de Rei, com que hoje celebramos o único Senhor da nossa vida. Pode parecer um título ultrapassado e com forte conotação ideológica, que poria Jesus ao nível dos senhores ricos e poderosos deste mundo. Para não resvalarmos para equívocos e terrenos movediços, convém anotar desde já a descrição que o próprio Jesus faz dos Reis: «Os Reis das nações, diz Jesus, dominam sobre elas» (Lucas 22,25). E a sua advertência: «Não seja assim entre vós» (Lucas 22,26). E, todavia, Jesus diz-se Rei, confirmando, neste domínio, as suspeitas de Pilatos (Marcos 15,2; João 18,37).

3. Para sabermos o que é que Jesus tem em vista quando se afirma como Rei, é preciso saber como é que a Escritura traça o perfil do Rei. É como quem pinta um quadro, ou melhor, dois: um díptico. No primeiro quadro, o Rei é alguém muito próximo de Deus, completamente nas mãos de Deus, sempre atento à sua Palavra, de modo que deve ter, para seu uso pessoal, uma cópia da Lei de Deus, feita pela sua própria mão, para não poder dizer que não entende a letra, e deve lê-la todos os dias, nada fazendo por sua conta, mas sempre e só de acordo com a Palavra de Deus (Deuteronómio 17,18-19). No segundo quadro, que completa o primeiro, formando um díptico, o Rei é alguém muito próximo do seu povo, sempre atento ao seu povo, em ordem a levar-lhe a prosperidade, a saúde, a paz, a felicidade, a salvação. Aí está, então, o retrato completo de Jesus Rei: sempre pertinho de Deus, sempre pertinho de nós.

4. O Ano da Fé não se encerra. E não se encerra, porque não se pode encerrar. Exatamente porque a fé não é uma questão de conteúdos que se podem ensinar e aprender num ano, num curso semestral ou anual. Se perguntardes a um bebé porque é que ele se sente seguro no colo da sua mãe, ele não saberá responder. Mas mesmo que soubesse, acharia ridícula a pergunta. Do mesmo modo que perguntar a uma mãe quais são as razões que a levam a segurar no seu colo, com força e carinho, o seu bebé, será considerada uma pergunta sem sentido. Do mesmo modo que deixaríamos Abraão boquiaberto, se lhe fôssemos perguntar quais são os conteúdos da sua fé. Sim, não se acredita em conteúdos. Acredita-se em alguém. É uma relação pessoal, consciente e consistente que vamos tecendo juntos com Deus e uns com os outros por caminhos de confiança e de amor. Abriu-se o Ano da Fé, como Jesus abriu um dia, na sinagoga de Nazaré, o Ano da Graça do Senhor (Lucas 4,19). Entenda-se, então, que este Ano da Graça ou da Fé não é um Ano de 365 dias. É a vida toda, no duplo sentido em que é toda a duração da vida, e em que é mesmo necessário apostar tudo, com toda a intensidade.

5. O aniversário da Dedicação da nossa Igreja Catedral ocorreu no passado dia 20, e nós celebramos hoje o Dia da nossa Igreja Diocesana toda Dedicada ao seu Senhor. Vou contar-vos uma história edificante. O selêucida Antíoco IV Epifânio tinha profanado o Templo de Jerusalém, introduzindo lá cultos pagãos. Este acontecimento remonta ao ano 167 a. C. Contra esta helenização e paganização do judaísmo lutaram os Macabeus, e, no ano 164 a. C., Judas Macabeu procedeu à Purificação do Templo e à sua Dedicação ao Deus Vivo. É este importante acontecimento que deve ser celebrado todos os anos, durante oito dias, com a Festa da Dedicação, a partir do dia 25 do mês de Kisleu, que, no ano em curso de 2013, corresponde ao nosso dia 28 de Novembro.

6. A Festa da Dedicação celebra-se durante oito dias, e tem como símbolo o candelabro de oito braços. Relata o Talmude que, quando os judeus fiéis entraram no Templo profanado pelos pagãos, encontraram uma única âmbula de azeite puro de oliveira para reacender o candelabro de sete braços, que é um dos símbolos de Israel, e que deve arder permanentemente diante do Deus Vivo. Todavia, uma âmbula de azeite duraria apenas um dia, e eram precisos oito dias para preparar novo azeite puro. Pois bem, o azeite daquela única âmbula durou milagrosamente oito dias! Daí que, na Festa da Dedicação, se acenda um candelabro de oito braços. Mas acende-se apenas uma luz por dia, depois do pôr-do-sol, aumentando progressivamente até estarem acesas as oito luzes. Além disso, e ao contrário das luzes do candelabro do Templo e do Sábado, que alumiam o interior do Santuário e da casa de família respetivamente, as Luzes do candelabro da Dedicação, refere o ritual, devem ser vistas cá fora: devem alumiar o ambiente social, político, comercial e cultural. E também ao contrário das luzes do candelabro do Templo e do Sábado, não se acendem todas de uma vez, mas progressivamente uma por dia, porque, quando as condições são adversas, não basta acender uma luz e mantê-la; é preciso aumentar constantemente a luz. Mais luz. Mais luz. Mais luz.

7. Como este simbolismo é importante para os dias de hoje e para a Igreja! «IDE e fazei discípulos», é o lema da nossa Igreja de Lamego para este Ano Pastoral. IR requer mudança de lugar e de modo. IR é não ficar aqui, e não ficar assim! Há tanta gente à espera de que nós lhes levemos Cristo. Obrigado, jovens, por terdes estado na primeira linha com a vossa Alegria contagiante. Como eu desejaria poder ter-vos acompanhado nas vossas avalanches. Peço a todos, sacerdotes, consagrados, fiéis leigos, mais Luz, mais Luz, mais Luz. Mais Dedicação, mais Dedicação, mais Dedicação.

8. Felizmente temos hoje, neste Dia Festivo para a Igreja de Lamego, uma Ordenação Diaconal. De forma visível, o José Fonseca Soares afirma que quer Dedicar a sua vida ao serviço da Caridade e do Evangelho. Que Deus o abençoe e o proteja sempre.

+ António, vosso bispo e irmão, in Diocese de Lamego: AQUI.

Papa Francisco - homilia no encerramento do Ano da Fé

       A solenidade de Cristo Rei do universo, que hoje celebramos como coroamento do ano litúrgico, marca também o encerramento do Ano da Fé, proclamado pelo Papa Bento XVI, para quem neste momento se dirige o nosso pensamento cheio de carinho e de gratidão por este dom que nos deu. Com esta iniciativa providencial, ele ofereceu-nos a oportunidade de redescobrirmos a beleza daquele caminho de fé que teve início no dia do nosso Baptismo e nos tornou filhos de Deus e irmãos na Igreja; um caminho que tem como meta final o encontro pleno com Deus e durante o qual o Espírito Santo nos purifica, eleva, santifica para nos fazer entrar na felicidade por que anseia o nosso coração.
       Desejo também dirigir uma cordial e fraterna saudação aos Patriarcas e aos Arcebispos Maiores das Igrejas Orientais Católicas, aqui presentes. O abraço da paz, que trocarei com eles, quer significar antes de tudo o reconhecimento do Bispo de Roma por estas Comunidades que confessaram o nome de Cristo com uma fidelidade exemplar, paga muitas vezes por caro preço.
       Com este gesto pretendo igualmente, através deles, alcançar todos os cristãos que vivem na Terra Santa, na Síria e em todo o Oriente, a fim de obter para todos o dom da paz e da concórdia.
       As Leituras bíblicas que foram proclamadas têm como fio condutor a centralidade de Cristo: Cristo está no centro, Cristo é o centro. Cristo, centro da criação, do povo e da história.
 
       1. O Apóstolo Paulo, na segunda Leitura tirada da Carta aos Colossenses, dá-nos uma visão muito profunda da centralidade de Jesus. Apresenta-O como o Primogénito de toda a criação: n’Ele, por Ele e para Ele foram criadas todas as coisas. Ele é o centro de todas as coisas, é o princípio: Jesus Cristo, o Senhor. Deus deu-Lhe a plenitude, a totalidade, para que n’Ele fossem reconciliadas todas as coisas (cf. 1, 12-20). Senhor da criação, Senhor da reconciliação.
       Esta imagem faz-nos compreender que Jesus é o centro da criação; e, portanto, a atitude que se requer do crente – se o quer ser de verdade – é reconhecer e aceitar na vida esta centralidade de Jesus Cristo, nos pensamentos, nas palavras e nas obras. E, assim, os nossos pensamentos serão pensamentos cristãos, pensamentos de Cristo. As nossas obras serão obras cristãs, obras de Cristo, as nossas palavras serão palavras cristãs, palavras de Cristo. Diversamente, quando se perde este centro, substituindo-o por outra coisa qualquer, disso só derivam danos para o meio ambiente que nos rodeia e para o próprio homem.
 
       2. Além de ser centro da criação e centro da reconciliação, Cristo é centro do povo de Deus. E hoje mesmo Ele está aqui, no centro da nossa assembleia. Está aqui agora na Palavra e estará aqui no altar, vivo, presente, no meio de nós, seu povo. Assim no-lo mostra a primeira Leitura, que narra o dia em que as tribos de Israel vieram procurar David e ungiram-no rei sobre Israel diante do Senhor (cf. 2 Sam 5, 1-3). Na busca da figura ideal do rei, aqueles homens procuravam o próprio Deus: um Deus que Se tornasse vizinho, que aceitasse caminhar com o homem, que Se fizesse seu irmão.
       Cristo, descendente do rei David, é precisamente o «irmão» ao redor do qual se constitui o povo, que cuida do seu povo, de todos nós, a preço da sua vida. N’Ele, nós somos um só; um só povo unido a Ele, partilhamos um só caminho, um único destino. Somente n’Ele, n’Ele por centro, temos a identidade como povo.
 
       3. E, por último, Cristo é o centro da história da humanidade e também o centro da história de cada homem. A Ele podemos referir as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias de que está tecida a nossa vida. Quando Jesus está no centro, até os momentos mais sombrios da nossa existência se iluminam: Ele dá-nos esperança, como fez com o bom ladrão no Evangelho de hoje.
       Enquanto todos os outros se dirigem a Jesus com desprezo – «Se és o Cristo, o Rei Messias, salva-Te a Ti mesmo, descendo do patíbulo!» –, aquele homem, que errou na vida, no fim agarra-se arrependido a Jesus crucificado suplicando: «Lembra-Te de mim, quando entrares no teu Reino» (Lc 23, 42). E Jesus promete-lhe: «Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso» (23, 43): o seu Reino. Jesus pronuncia apenas a palavra do perdão, não a da condenação; e quando o homem encontra a coragem de pedir este perdão, o Senhor nunca deixa sem resposta um tal pedido. Hoje todos nós podemos pensar na nossa história, no nosso caminho. Cada um de nós tem a sua história; cada um de nós tem também os seus erros, os seus pecados, os seus momentos felizes e os seus momentos sombrios. Neste dia, far-nos-á bem pensar na nossa história, olhar para Jesus e, do fundo do coração, repetir-lhe muitas vezes – mas com o coração, em silêncio – cada um de nós: «Lembra-Te de mim, Senhor, agora que estás no teu Reino! Jesus, lembra-Te de mim, porque eu tenho vontade de me tornar bom, mas não tenho força, não posso: sou pecador, sou pecadora. Mas lembra-Te de mim, Jesus! Tu podes lembrar-Te de mim, porque Tu estás no centro, Tu estás precisamente no teu Reino!». Que bom! Façamo-lo hoje todos, cada um no seu coração, muitas vezes: «Lembra-Te de mim, Senhor, Tu que estás no centro, Tu que estás no teu Reino!»
       A promessa de Jesus ao bom ladrão dá-nos uma grande esperança: diz-nos que a graça de Deus é sempre mais abundante de quanto pedira a oração. O Senhor dá sempre mais – Ele é tão generoso! –, dá sempre mais do que se Lhe pede: pedes-Lhe que Se lembre de ti, e Ele leva-te para o seu Reino! Jesus é precisamente o centro dos nossos desejos de alegria e de salvação. Caminhemos todos juntos por esta estrada!
 
Praça de São Pedro, 24 de novembro de 2013: AQUI.

sábado, 23 de novembro de 2013

Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo - 24 novembro

       1 – A realeza de Jesus Cristo que hoje temos a dita de celebrar assenta no Amor, na doação por inteiro, na entrega da vida a favor dos outros. É uma realeza frágil, exposta, carente, dependente do acolhimento e da aceitação alheia. Não é imposta e não vive pela força, pelas armas, pela persuasão coerciva, pelo estatuto social, cultural, político ou religioso. Impõe-se unicamente pelo serviço, pelo testemunho, como lâmpada que se acende para irradiar Luz.
       Hoje são vários os motivos que nos levam/trazem à Eucaristia: solenidade de Cristo Rei, Senhor do Universo, Dia da Igreja Diocesana de Lamego, Encerramento do Ano da Fé, convocado por Bento XVI e concluído pelo Papa Francisco.
        A síntese e o enquadramento do Ano da Fé pode encontrar-se na primeira carta Encíclica do novo Papa, Lumen Fidei, escrita a quatro mãos, preparada por Bento XVI e assumida, com as suas contribuições pessoais, por Francisco. Melhor síntese ainda: a passagem de testemunho de um a outro papa, sublime Evangelho da Humildade. Um, a fé, o serviço e o despojamento, pondo em evidência o que sempre foi: simples trabalhador da vinha do Senhor. Outro, com a temperatura muito latina, próximo, afável, universalizando o que era como sacerdote e cardeal, pastor da proximidade e da clareza, do encontro e da ternura. A Barca, porém, é conduzida, ontem como hoje, pelo Bom Pastor, Cristo Senhor. Outra síntese luminosa, anunciada neste ano, a canonização do Bom Papa João XXIII e do infatigável papa João Paulo II, a realizar em 27 de abril de 2014.
        2 – Curioso o Evangelho que hoje nos é proposto: a coroação de Jesus realiza-se na Cruz, bela expressão do Amor sem fronteiras nem reservas, sem condições prévias.
       Alguns zombam de Jesus: «Salvou os outros: salve-Se a Si mesmo, se é o Messias de Deus, o Eleito»; «Se és o Rei dos judeus, salva-Te a Ti mesmo»; «Não és Tu o Messias? Salva-Te a Ti mesmo e a nós também». O próprio letreiro pregado na cruz refere a realeza de Jesus: «Este é o Rei dos judeus».
       A zombaria contrasta com a bondade de Jesus durante a vida pública. Ele prega e vive a proximidade com todos, especialmente com as pessoas mais frágeis e desconsideradas social, política e religiosamente, acerca-se delas, faz-Se caminho para coxos, aleijados, portadores de deficiência, publicanos, crianças, mulheres. Coloca no centro precisamente aqueles que foram colocados (ou se colocaram) nas periferias da vida. Surge como Messias prometido e esperado. São multidões que acorrem à Sua presença, para O ver, para O ouvir, para se encontrarem com Ele. É o Eleito do Senhor, Aquele em Quem Deus pôs todo o Seu enlevo, a Sua complacência.
       Quando entra triunfalmente em Jerusalém (em Domingo de Ramos), faz-nos visualizar uma realeza pobre, despretensiosa, humilde. Não é acompanhado com carros de bois e de cavalos, com forte exército, armado, para O protegerem. Vai em cima de um burrito, símbolo da pobreza, do despojamento, sem adornos nem artifícios. E até o jumento é emprestado. No final, Jesus não tem nada, nem sequer Lhe é permitido ficar com a roupa do corpo. Nada tem. Tudo é para Deus. É todo de Deus. É todo para a humanidade.
       3 – A história de salvação, que nos chega através da Sagrada Escritura, e do Povo da Aliança, no qual nasce Jesus, está marcada pelo desejo de uma realeza agregadora, fazendo com que o povo judeu seja luz para as nações, e nele sejam abençoados todos os povos da terra, como bem expressa o velho Simeão aquando da apresentação de Jesus no Templo.
       É uma promessa constantemente renovada. O próprio Deus exercerá a justiça e o poder sobre Israel e sobre o mundo inteiro. A condição colocada é a observância dos preceitos de Deus, sintetizados nos 10 mandamentos.
       O grande líder é Moisés. Fala com Deus, face a face, e, por seu intermédio, o povo é libertado e chega às portas da terra prometida. A liderança justa e gloriosa de Moisés, após a sua morte, provoca o sonho de um novo Moisés que conduza novamente o povo a uma terra prometida, onde corra leite e mel, terra fértil em paz, unidade e justiça.
       As coisas nem sempre correm como esperado. No horizonte surge um REI cuja sabedoria parece iluminar os seus súbditos. David, o pastor, humilde e pobre, que passa despercebido, e se torna Rei. Não é um rei imposto, mas proposto: governa sobre nós, "somos dos teus ossos e da tua carne". O argumento é sobrenatural: «o Senhor disse-te: ‘Tu apascentarás o meu povo de Israel, tu serás rei de Israel’». David é ungido. A aliança é tripartida, do rei com o povo, diante do Senhor Deus. David congrega todas as tribos de Israel num só povo (para Deus). Ainda em vida assiste a contendas que mais à frente hão de desmoronar a harmonia que ele conseguiu. O sonho prossegue no desejo de um novo David, um pastor de Israel, que conduza o povo a pastagens verdejantes, fundando a nova Jerusalém.
       Para nós, cristãos, Jesus Cristo é, sem dúvida, o novo Moisés, o novo David, o Ungido do Senhor. E mais que isso, é o Filho de Deus entre nós, sem coroa e sem poder. Vem para congregar com a força do perdão e do amor, introduzindo-nos na verdadeira e sempiterna cidade santa, a mais bela morada do Deus altíssimo, para a qual estamos convocados!

       4 – «O meu reino não é deste mundo». Diante de Pilatos Jesus acentua a sobrenaturalidade do Reino de Deus, visível aos simples e humildes de coração, interior e com efeitos na prática do bem e da justiça. Se o meu reino fosse deste mundo, diz Jesus, então os meus guardas viriam para Me proteger. Se fosse uma questão de poder, Deus mandaria os exércitos celestes, e num instante faria desaparecer da face da terra todos os malfeitores. Mas o meu reino não é deste mundo. Não é aqui que se realiza a Jerusalém celeste, mas é aqui que se inicia este projeto de vida nova. A cidade de Deus está no meio dos homens, é Jesus Cristo.
       O grito do bom ladrão chega ao Céu: «Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza». A resposta dada é também para nós: «Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso». Esta certeza, que nos é revelada por Jesus Cristo, provoca-nos a alegria do salmista: «Alegrei-me quando me disseram: 'Vamos para a casa do Senhor'».
       Com a morte e a ressurreição de Cristo chega até nós a vastidão do Céu. N'Ele somos assumidos, não como súbditos mas como filhos bem-amados, como herdeiros da verdadeira aliança que Se alicerça no sangue e no corpo de Jesus, na Sua vida por inteiro, inteiramente oferecida a nosso favor. Por isso, «damos graças a Deus Pai, que nos fez dignos de tomar parte na herança dos santos, na luz divina. Ele nos libertou do poder das trevas e nos transferiu para o reino do seu Filho muito amado, no qual temos a redenção, o perdão dos pecados. Cristo é a imagem de Deus invisível, o Primogénito de toda a criatura... Ele é a cabeça da Igreja, que é o seu corpo. Aprouve a Deus que n’Ele residisse toda a plenitude e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas, estabelecendo a paz, pelo sangue da sua cruz, com todas as criaturas na terra e nos céus».
       A última tentação, na Cruz e na vida, é o “cada um por si”, cada um procurar salvar-se a si mesmo, usando todos os meios, mesmo que à custa de outros. «Salva-te e ti e a nós também». Jesus não quer salvar a pele e muito menos à custa do sacrifício de outros. Ao invés, Jesus oferece-Se como sacrifício, como Amor partilhado, para salvar a todos. No final, Ele não se livra do sofrimento, do suplício e da morte. Mas aprouve a Deus que na Sua oferenda todos fôssemos reconciliados com Ele, eternamente.

Textos para a Eucaristia: 2 Sam 5, 1-3; Sl 121 (122); Col 1, 12-20; Lc 23, 35-43.