sábado, 3 de outubro de 2015

Carta Pastoral de D. António Couto | 2015-2016



IDE E FAZEI DA CASA DE MEU PAI CASA DE ORAÇÃO E DE MISERICÓRDIA
«Tudo faço por causa do Evangelho» (1 Coríntios 9,23)
«A minha Casa será chamada Casa de oração para todos os povos» (Isaías 56,7; Marcos 11,17)
«Não se ponha o sol sobre a vossa ira» (Efésios 4,26)
«Quando me perguntam por que entrei na Igreja romana, a minha resposta é sempre esta: para me libertar dos meus pecados; porque não há outra religião que afirme verdadeiramente o perdão dos pecados dos homens… Um católico que se confessa, entra, no verdadeiro sentido da palavra, na manhã clara da sua infância» (Chesterton).
Tudo por causa do Evangelho
1. «Vamos juntos construir a casa da fé e do Evangelho» (2012-2013), «Ide e fazei discípulos» (2013-2014), «Ide e construí com mais amor a família de Deus» (2014-2015), eis o itinerário temático e vivencial que nos propusemos seguir nos últimos três anos pastorais, acompanhando de perto os indicadores do Ano da Fé, da JMJ e da Exortação Apostólica Evangelii Gaudium [= EG], do(s) Sínodo(s) da Família. «Vamos», «Ide», «Ide». Salta à vista que o verbo «ir» esteve sempre a sinalizar os nossos caminhos, expressando a vinculação da nossa vivência pastoral à missão ordenada por Jesus aos seus discípulos de todos os tempos, espaços e modos, e que deve mobilizar, no belo dizer de Bento XVI, «todos, tudo e sempre» (Mensagem para o Dia Missionário Mundial, 2011). Faz-nos bem, a este propósito, passar os olhos pela agenda do Apóstolo Paulo:
«Fiz-me a mim mesmo servo de todos, para o maior número ganhar. E tornei-me com os judeus como judeu, a fim de os judeus ganhar; com os que estão sujeitos à lei, como sujeito à lei […], a fim de os sujeitos à lei ganhar; com os sem lei, como sem lei, para ganhar os sem lei;  tornei-me com os fracos, fraco, a fim de os fracos ganhar; tornei-me tudo para todos, para, por todos os meios, salvar alguns. Tudo faço por causa do Evangelho» (1 Coríntios 9,19-23). 
2. Salta à vista o total empenhamento do Apóstolo, anunciando o Evangelho «oportuna e inoportunamente» (2 Timóteo 4,2), expondo o Evangelho com a vida, a vida com o Evangelho (1 Tessalonicenses 2,8), a tempo inteiro e coração inteiro, sem tréguas nem compromissos. Todo preenchido pelo anúncio do Evangelho, entregando-se todo e de todas as maneiras, ele foi declarado, com toda a justeza, «o maior missionário de todos os tempos» (Bento XVI) e «modelo de cada evangelizador» (Paulo VI). 
3. Não é, pois, de admirar que, no umbral da porta do novo ano pastoral 2015-2016 em que agora entramos, lá esteja outra vez, a abrir, o verbo «ir», para nos indicar que anunciar o Evangelho continua a ser sempre a tarefa primária da Igreja e de cada discípulo de Jesus, como nos lembra o Papa Francisco (EG, n.º 15). Mas não é de frases feitas que vamos viver. Tem de ser de novas atitudes, novos modos e estilos de vida. E, se anunciar o Evangelho é o nosso modo de ser, o nosso modo de vida, então temos de abandonar velhos vícios de acomodação e conforto, de simples manutenção, conservação e gestão, do «cómodo critério pastoral: “fez-se sempre assim”» (EG, n.º 33), do género meias-tintas, do sim, mas devagar, e de adotar novas práticas que nos levem, de forma decidida e incisiva, a «avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não pode deixar as coisas como estão» (EG, n.º 25), e passar da «simples administração» para um «estado permanente de missão em todas as regiões da Terra» (EG, n.º 25). Neste sentido, nenhuma comunidade pode continuar a cantar a capella, como se tivesse direitos adquiridos sobre o próprio Jesus ou sobre o Evangelho, e todos devemos entrar, decididamente e com todas as forças, sem desperdício algum, naquele dinamismo do «saiamos, saiamos» (EG, n.º 49) com que o Papa Francisco projeta e sonha a nossa Igreja «em saída» pelos caminhos belos da Evangelização (EG, n.os 33-35). E deixamos já a janela aberta para o ano pastoral 2016-2017, que obedecerá ao lema «Ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho a toda a criatura» (Marcos 16,15).
Casa e escola de oração para todos
4. Transponhamos, pois, amados irmãos e irmãs, o limiar da porta. Entremos em Casa. Aproximemo-nos de Deus. Sentemo-nos à Mesa. Deixemo-nos hospedar na Casa de Deus. Aquela Casa que o próprio Deus apresenta assim: «A minha Casa será chamada Casa de oração para todos os povos». Este dizer forte e tranquilo é de Isaías 56,7. O Evangelista Marcos foi o único a recolhê-lo na sua inteireza (11,17). Mateus 21,13 e Lucas 19,46 recolheram apenas a primeira parte («A minha casa será chamada casa de oração»), deixando de fora «todos os povos». A Igreja e a paróquia devem ser então a Casa onde todos devem ser fraternalmente acolhidos, e se devem sentir valorizados, visíveis e eclesialmente incluídos (Documento de Aparecida, n.º 226). Sonhemos, pois, amados irmãos e irmãs, fazer da Igreja e da paróquia um novo lugar, um novo espaço relacional, onde todos, pastores e fiéis leigos, possam dizer com alegria, de acordo com o convite de Bento XVI, no Santuário de Aparecida, em 12 de maio de 2007: «A Igreja é a nossa casa! Esta é a nossa casa!» (Documento de Aparecida, n.º 246). O Papa Francisco quis inserir este jubiloso grito na mensagem que dirigiu aos bispos de Portugal na recente Visita ad Limina Apostolorum (07.09.2015). Entremos, pois, jubilosamente em Casa, conduzidos por Jesus:
«E estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. E encontrou no Templo (hierón) os vendedores de bois e ovelhas e pombas, e os cambistas sentados. E, tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do Templo (hierón), as ovelhas e os bois, bem como os cambistas, espalhou as moedas, derrubou as mesas, e disse aos que vendiam as pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da Casa (oíkos) do meu Pai Casa (oíkos) de comércio”» (João 2,13-16). 
5. O episódio aparece situado e datado. O lugar é Jerusalém e o seu Templo. O tempo é a Festa da Páscoa. Ora, uma Festa é, na tradição bíblica, um encontro marcado. Um encontro marcado com Deus e com os outros. Sendo um encontro marcado com Deus e com os outros, então é sempre um espaço de alegria, de filialidade e de fraternidade. E se a Festa é de peregrinação, como é a Páscoa, aqui referida [as outras duas são as Semanas ou Pentecostes e as Tendas], então a alegria, a filialidade e a fraternidade são ainda mais intensas, dado que Festa de peregrinação se diz, na língua hebraica, hag. E o nome hag remete para o verbo hag [= dançar] e deriva de hûg, que significa círculo, e, portanto, família, lareira, encontro, alegria, música, roda, dança, vida. 
6. Encontro, filialidade, fraternidade: marcas acentuadas por Jesus que, em vez de Templo de pedra (hierón), diz Casa (oíkos) – com particular afeto, Casa do meu Pai –, sendo a Casa paterna o lugar do encontro e da intimidade, e não das coisas, da superficialidade, da banalidade, do consumismo, do mercado. Nos paralelos de Mateus, Marcos e Lucas, citando Isaías 56,7, Jesus fala do Templo usando a expressão forte «A minha Casa» (ho oîkós mou) (Mateus 21,13; Marcos 11,17; Lucas 19,46). É neste sentido que o Livro dos Atos dos Apóstolos nos mostra a comunidade-mãe de Jerusalém a frequentar assiduamente o Templo, salientando, no entanto, que a sua maneira de prestar culto a Deus acontecia nas Casas. Do Templo para as Casas (Atos 2,46). Não, não se trata de uma simples mudança de lugar, mas de uma diferente conceção do espaço: não se trata de um espaço local, mas relacional. O novo espaço cultual é a comunidade que vive filial e fraternalmente, verdadeira transparência de Jesus. A extensão deste espaço chama-se comunhão e comunidade. É a comunidade jovem, leve e bela, bem assente em quatro colunas: o ensino dos Apóstolos (1), a comunhão fraterna (2), a fração do pão (3) e a oração (4). Com a boca [= «uma só boca» (en henì stómati: Rm 15,6)] cheia de louvor, os olhos de graça, as mãos de paz e de pão, as entranhas de misericórdia, a comunidade bela crescia, crescia, crescia. Não admira. Era uma comunidade jovem, leve e bela, tão jovem, leve e bela, que as pessoas lutavam por entrar nela!
7. Sintomático é que, postos estes pressupostos, o texto refira, não que Jesus encontrou filhos e irmãos, mas que encontrou vendedores, banqueiros e comerciantes, contra a profecia de Zacarias 14,21, que refere que «Não haverá mais vendedor na Casa do Senhor dos exércitos naquele dia». «A Casa do meu Pai», «A minha Casa», por um lado, e o Mercado, por outro lado, são lugares incompatíveis. São maneiras diferentes de conceber e ocupar o espaço. É, pois, necessário, caríssimos irmãos e irmãs, descobrir e abrir caminhos novos, que nos levem outra vez a cantar com emoção: «Que alegria quando me disseram: “Vamos para a Casa do Senhor!”» (Salmo 122,1). E não nos esqueçamos nunca de acentuar a importância da oração, pois é ela o verdadeiro alicerce da nossa fé, conforme o velho e sempre novo aforismo dos Padres da Igreja antiga: lex orandi lex credendi (est), isto é, como se reza, assim se crê, e não o contrário. Peço às crianças e aos jovens que, em casa, partilhem o seu modo de rezar com os seus pais e avós. Peço aos pais e aos avós que, em casa, partilhem o seu modo de rezar com os seus filhos e netos. Assim, sentir-nos-emos todos mais visivelmente filhos e irmãos, e nascerá no nosso coração filial um mundo muito mais belo e fraterno. 
8. Jesus ensinou-nos a rezar com verdade, simplicidade, ternura e confiança. A colocar-nos como criancinhas diante de Deus, como diante do seu papá ou da sua mamã, em quem abandonam a sua existência. Jesus ensinou-nos, por isso, a chamar a Deus com o nome familiar de Pai. Mas não o pai que impõe respeito, distância e autoridade. Por isso, não nos ensinou a chamar a Deus com o nome de Pai, hebraico ʼab, como era usual tratar Deus no Antigo Testamento e nas orações judaicas do tempo de Jesus. Ensinou-nos a ser pequeninos, criancinhas cheias de simplicidade, ternura e confiança, que, com linguagem infantil, chamam a Deus, não ʼab, mas ʼabbaʼ, ʼab-baʼ, não pai, mas pap-pá, como quando as criancinhas experimentam dizer as primeiras palavras, soletrando e repetindo sílabas e sons. Dizer Pai nosso é então entrar de cabeça no mundo da ternura e da confiança. Mas é ainda perceber que este Pai não é apenas meu, mas nosso, o que quer dizer que só como irmãos, só sendo todos irmãos, podemos rezar com verdade. E pedir o pão nosso é saber que o pão que está sobre a minha mesa não é meu, mas é de todos. É para partilhar. Rezar assim, como Jesus nos ensinou, faz-nos entrar num mundo novo de ternura, de verdade e humildade, e leva-nos também a perceber bem que temos de viver como filhos e irmãos, carinhosamente atentos uns aos outros, até ao ponto sem retorno de já não sabermos viver senão repartindo o pão e o coração.
9. Notemos bem que a oração do Pai nosso não é nossa, não brota de nós. Foi-nos ensinada por Jesus, que nos transmite o segredo mais profunda da sua vida: o Pai, e leva-nos a compreender que Ele é também o nosso Pai carinhoso que cuida de nós, e que nós somos todos irmãos, e só como irmãos podemos pronunciar, sem mentir, as palavras desta oração. O Pai nosso, isto é, rezar de verdade, reclama, de nós a fraternidade, que é um valor que a sociedade laica começa a compreender que não pode produzir por si própria. Se olharmos para a tríade dos valores republicanos franceses, reparamos que a liberdade e a igualdade podem ser, ainda que com reservas, garantidas a nível público. Mas a fraternidade não, porque a fraternidade pressupõe Deus como Pai, que a sociedade laica iluminista não reconhece. Isto significa que nos sistemas fundados sobre os três valores franceses há uma contradição interna, dado que os dois primeiros não podem garantir o terceiro (excelente reflexão do filósofo francês Jean-Luc Marion, in L’Avvenire, 09.02.2012). Por isso mesmo, a nós, cristãos, compete rezar bem e levar e mostrar a este mundo este Deus Pai, que faz de nós irmãos. Não se luta para obter o título de irmão. Irmão nasce-se, e o título de irmão recebe-se. Está aqui uma lição importante que nos compete receber, viver e transmitir a este mundo que vive na orfandade.
Atravessar a porta santa da misericórdia
10. Com a Bula O rosto da misericórdia [= RM], de 11 de Abril do corrente ano da Graça de 2015, o Papa Francisco proclamou o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, que abrirá no próximo dia 8 de dezembro, Solenidade da Imaculada Conceição, e encerrará em 20 de Novembro de 2016, Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo. O Papa Francisco deseja ardentemente que todos experimentem verdadeiramente a ação da misericórdia que há em Deus. A Porta Santa da Misericórdia de Deus será aberta na nossa Igreja de Lamego, como em todas as Igrejas particulares, por vontade do Papa Francisco, no Domingo III do Advento, dia 13 de dezembro (RM, n.º 3). Atravessar a Porta Santa da Misericórdia implica peregrinação, emoção e encontro com a misericórdia do Pai (RM, n.º 14). Do mesmo modo que, nos dias 4 e 5 de Março de 2016, sexta-feira e sábado antes do Domingo IV da Quaresma, celebraremos também em todas as Igrejas da nossa Diocese as «24 horas para o Senhor», também em resposta ao apelo do Papa Francisco (RM, n.º 17). Em suma, amados irmãos e irmãs, o ano pastoral em que agora entramos apresenta-se repleto da bondade e da riqueza do nosso Deus. Mas o essencial será sempre acolher e experimentar na vida a misericórdia de Deus, e deixarmo-nos transformar por ela. Neste sentido, vale a pena começar por ver Jesus em ação de misericórdia, percorrendo um episódio do Evangelho. E confrontar com a sua forma de fazer os nossos comportamentos. O desempenho dos discípulos pode ajudar-nos a ver melhor as sombras em que muitas vezes nos enredamos:
«E reúnem-se os apóstolos junto de Jesus e contam-lhe todas as coisas que tinham feito e ensinado. Ele diz-lhes: “Vinde vós, à parte, para um lugar deserto, e descansai um pouco”. Eram, na verdade, muitos os que vinham e partiam, e nem sequer para comer tinham tempo. E partiram numa barca para um lugar deserto, à parte. Viram-nos, porém, partir, e sabendo, muitos, a pé, de todas as cidades, correram e chegaram antes deles. E tendo saído da barca, viu uma grande multidão e TEVE MISERICÓRDIA (esplagchnístê) deles, porque eram como ovelhas sem pastor (cf. Isaías 53,6). 
E COMEÇOU A ENSINAR-LHES (êrxato didáskein) muitas coisas. E tendo a hora adiantado muito, aproximaram-se d’Ele os discípulos d’Ele e diziam: “O lugar é deserto e a hora adiantada. MANDA-OS EMBORA, para que, partindo para os campos e aldeias à volta, COMPREM de comer PARA SI MESMOS (heautoîs)”. Então Ele, respondendo, disse-lhes: “DAI-LHES vós de comer”» (Marcos 6,30-37). 
11. O episódio que acabámos de referir, retirado do Evangelho de Marcos, é conhecido como a «primeira “multiplicação dos pães”», realizada, neste caso, em mundo judaico. Mas vê-se bem que o título de «multiplicação» é inadequado, pois o que está aqui em causa não é, na verdade, uma multiplicação, mas uma divisão ou partilha. Salta à vista, na passagem estreita que nos foi dado atravessar, o comportamento misericordioso e compassivo, acolhedor, inclusivo e de partilha de Jesus, em confronto com o comportamento insensível, não-acolhedor, exclusivista, frio, mercantilista, consumista, egoísta, egocêntrico e autorreferencial dos seus discípulos, que propõem a Jesus que mande as pessoas embora, para que cada um compre de comer para si mesmo (Marcos 6,36). O diagrama a seguir mostra os dois desempenhos em confronto:
12. A Escritura mostra à exaustão que o perigo espreita sempre que se quebra o círculo da fraternidade, e alguém passa a viver, a comprar, a acumular para si mesmo, ou a querer salvar-se a si mesmo (heautô) (Ezequiel 34,2; Lucas 12,21; 23,35.37.39; Romanos 14,7; 2 Coríntios 5,15):
«Filho do Homem, profetiza contra os pastores de Israel. Profetiza e diz-lhes: “Contra os pastores, assim diz o Senhor YHWH: Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos (ro‘îm ’ôtam TM; poiménes heautoús LXX)”» (Ezequiel 34,2; cf. 34,8.10).

«Assim acontece àquele que entesoura para si mesmo (heautô), e não é rico para Deus» (Lucas 12,21).
«Também os chefes faziam pouco dele, dizendo: “Salvou outros; que se salve a si mesmo (heautón)» (Lucas 23,35).
«Também os soldados faziam pouco dele, e, aproximando-se, ofereciam-lhe azeite, 37 e diziam: se tu és o Rei dos judeus, salva-te a ti mesmo (seautón)”» (Lucas 23,36-37).
«Um dos malfeitores suspensos blasfemava, dizendo-lhe: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo (seautón) e a nós”» (Lucas 23,39).
«Nenhum de nós para si mesmo (heautô) vive e nenhum para si mesmo (heautô) morre; se vivemos, é para o Senhor (tô Kyríô) que vivemos; se morremos, para o Senhor (tô Kyríô) morremos» (Romanos 14,7).
«E por todos (Cristo) morreu, para que os vivos não vivam para si mesmos (heautoîs), mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou» (2 Coríntios 5,15).
A lógica individualista e exclusivista do «para si mesmo» (heautô) é errada. A lógica de Jesus, que parte do amor entranhado das vísceras misericordiosas (esplagchnístê) (Marcos 6,34a), é uma lógica de comunhão, de doação, de partilha, de condivisão, de conjunção. Esta lógica nova obedece a outro «para si mesmo»: tomar a Cruz «para si mesmo» (heautô) (João 19,17), dar aos outros, por amor, a própria vida. Por isso, verdadeiramente, Jesus é aquele que «está fora de si» (exéstê), descentrado, sempre em êxodo total ao encontro de Deus e dos irmãos (Marcos 3,21).
13. Sempre neste sentido, o inédito da Cruz é «obsceno», no sentido etimológico do termo: fica fora da cena do nosso imaginário. Diz muito bem Silvano Fausti: «Um sistema de violência acaba sempre por repousar sobre uma alternativa: matar ou ser morto. Nós escolhemos preventivamente a primeira: cada um de nós faz o mal que pode, como profissão principal, de maneira a ser bem sucedido: o ladrão ou o banqueiro, o comerciante ou o operário, o médico ou o barbeiro, o patrão ou o criado, o padre ou o assaltante, o benfeitor ou o delinquente. Cada um, com os meios que tem, pensa primeiro em si». Na verdade, se cada um é inimigo do outro por definição, e se, para cada um, prioritária é a salvaguarda da ameaça do outro, as possibilidades do eu são vencer ou sucumbir, e, em caso extremo, matar ou ser morto. 
14. O que estes malfeitores, que somos nós, não sabemos, e, por causa deste nosso não saber, fazemos o mal, é que existe um Pai, a quem compete cuidar dos seus filhos. E se temos um Pai que cuida de nós, não nos compete ser inimigos, mas irmãos. E se somos filhos e irmãos, também não compete a cada um prover-se e salvar-se a si mesmo, pois é o nosso Pai que nos alimenta, que nos veste, que cuida de nós, que nos ama e nos salva (Mateus 6,26-34). 
15. Aí está outra vez bem à vista o inédito da Cruz: Jesus não se salva a si mesmo, porque salvar-se a si mesmo é mau. Na verdade, é para se salvarem a si mesmos que os homens se odeiam e fazem guerra. Ora, Jesus quer salvar-nos a nós. E, para nos salvar a nós, perde-se a si mesmo. Exactamente o contrário do que fazemos nós, que perdemos os outros pensando que assim nos salvamos a nós mesmos. 
16. Caríssimos irmãos e irmãs, permiti que a todos lembre que a missão da evangelização que deve sempre nortear a nossa vida de discípulos de Jesus tem de ser alimentada na oração e na graça que nos vem de Deus. Não nos esqueçamos de celebrar e valorizar o Domingo, Dia do Senhor, e de frequentar com alegria os Sacramentos, sobretudo a Eucaristia e a Reconciliação. Este ano pastoral deve ter a mesa da Eucaristia sempre posta e a porta da misericórdia sempre aberta. Experimentemos a alegria de perdoar aqueles que nos ofendem. Valorizemos bem a experiência das Confissões Quaresmais. Valorizemos também o exercício bem arreigado na nossa Diocese das 40 horas e jubileus das almas. Façamos tudo para retomar a vivência do Laus perene, para mantermos a nossa Diocese, com todas as suas 223 Paróquias, em permanente Louvor ao nosso Deus e Pai. Relembro as palavras certeiras do escritor inglês Chesterton (1874-1936) sobre a beleza da religião católica: «Não há outra religião que afirme verdadeiramente o perdão dos pecados dos homens… Um católico que se confessa, entra, no verdadeiro sentido da palavra, na manhã clara da sua infância». 
17. Caminhos práticos e direitos para curar a tibieza e a indiferença dos nossos corações e das nossas comunidades:
  • À imagem e imitação de Jesus, os nossos pastores devem ser verdadeiros apóstolos, totalmente dedicados à oração e à pregação, pela Palavra e pelo testemunho (Atos dos Apóstolos 6,4).
  • As nossas paróquias devem ser Casas acolhedoras onde todos os fiéis se sintam filhos de Deus, e experimentem nisso e por isso, a alegria de sermos irmãos. Também devemos abrir as portas do nosso coração aos nossos irmãos oriundos de outras proveniências que procurarem refúgio junto de nós. Será, com certeza, uma experiência de verdadeira fraternidade e alegria, que virá sempre enriquecer a nossa vida em Cristo.
  • As nossas paróquias devem ser Casas e escolas de oração e de vivência da fé em permanência, em que todos se sintam envolvidos, ensaiando novos estilos de vida. Retomemos com alegria a experiência do Laus perene. Assim saberemos e sentiremos que a nossa Diocese, nas suas 223 Paróquias, atravessa os dias do ano da graça que Deus nos concede, sentindo sempre o calor e a ternura da mão de Deus no nosso rosto e no nosso coração.
  • Neste Ano jubilar da Misericórdia, que «o sol nunca se ponha sobre a nossa ira» (Efésios 4,26). Permaneçamos atentos e vigilantes. Aprendamos a ser mais tolerantes e compreensivos. Façamos mais vezes a experiência do perdão, e recorramos mais vezes ao Sacramento da Reconciliação.
  • As nossas paróquias devem investir séria e sabiamente na iniciação à vivência e transmissão da fé, envolvendo neste esforço todas as pessoas.
  • As nossas paróquias devem ser evangelizadoras. Sejamos ousados. «Saiamos, saiamos!». Jovens, relançai a bela experiência das avalanches da fé. Ide ao encontro da alegria. Servi a alegria.
18. Para esta experiência viva de missão, de oração e de misericórdia, convoco todos os diocesanos da nossa Diocese de Lamego: sacerdotes, diáconos, consagrados, consagradas, fiéis leigos, pais, mães, avôs, avós, famílias, jovens, crianças, catequistas, acólitos, leitores, agentes envolvidos na pastoral, membros dos movimentos de apostolado. A todos peço a graça de promoverem mais encontros de oração, reflexão, formação, perdão, partilha e amizade. Mais. Mais. Mais. A todos peço a dádiva de uma mão de mais amor a todos os irmãos e irmãs que experimentam dificuldades e tristezas, e também àqueles que junto de nós vierem procurar a esmola do refúgio. Mais. Mais. Mais. A todos peço que experimentemos a alegria de sairmos mais de nós ao encontro de todos, para juntos celebrarmos o grande amor que Deus tem por nós e sentirmos a alegria da sua misericórdia. Que cada um de nós sinta como sua primeira riqueza e dignidade a de ser filho de Deus com muitos irmãos à sua volta. E para todos imploro de Deus a sua bênção, e de Maria a sua proteção carinhosa e maternal.
Lamego, 03 de outubro de 2015
+ António, vosso bispo e irmão

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