sábado, 27 de fevereiro de 2016

Domingo III da Quaresma - ano C - 28 de fevereiro

       1 – A vida é um mistério que não se dissolve no conhecimento, na ciência, na sabedoria popular ou em qualquer outro apartado da nossa existência. A sua complexidade, por um lado, e a sua simplicidade, por outro, fazem da vida (vegetal, animal, humana) um desafio permanente de procura, de descoberta, de admiração. Para crentes e não crentes é um mistério inabarcável. Os desenvolvimentos da ciência e da tecnologia desvendaram muitos segredos, mostraram a beleza da nossa fragilidade humana. Quanto mais simples é a vida tanto mais difícil decifrá-la.
       Com os avanços da ciência foi possível resolver muitos enigmas e melhorar a qualidade da vida, a saúde do corpo e da mente, mas nem assim foi possível eliminar as doenças crónicas, as depressões, o vazio existencial. Há algo mais para lá das sinapses, das ligações neurológicas, na constituição biológica. Somos muito mais que a soma de cromossomas, ADN, sangue, ossos, músculos, carne. Somos um mistério que quanto mais se desvenda mais complexo se torna.
       Ao longo do tempo, o ser humano procurou compreender e justificar o sofrimento, a doença e a morte. Se a vida é tão bela, como é possível que nos faça sofrer e porque é que temos de morrer? Porque é que a vida não é igual para todos? Porque que é que uns sofrem tanto e outros têm uma vida durável e saudável? Terá a ver (somente) com as escolhas de cada um?
       Uns procuram respostas na fé e na religião, outros no acaso ou na ciência. Muitos aceitaram a doença e as desgraças como vontade dos deuses e controlo oculto das divindades. Outros aceitaram que as doenças e a morte eram consequência do pecado.
       2 – Jesus questiona o sofrimento e o mal, compadecendo-Se. Como em outras ocasiões, Jesus não procura justificações, argumentos ou culpados. É preciso ajudar? Então ajuda-se. Faz-se o que está ao nosso alcance ou recorre-se a quem pode ajudar.
       Na lógica dos antigos, se alguém sofre é porque algum mal praticou. Job questiona tal ligação, pois nada praticou que merecesse tantos sofrimentos. No final, na história de Job, vêm ao de cima a soberania de Deus, o mistério insondável da vida e a grande confiança na bondade de Deus.
       Os mestres de Israel e a gente simples do povo assimilaram que a injustiça, o mal, a doença, a deficiência, o próprio domínio estrangeiro, eram consequência do pecado. Mas de quem? Dos pais, dos próprios, do povo? Jesus desmistifica esta crença ancestral. O pecado é destruidor do tecido social – quando cada um cuida apenas dos seus interesses pessoais ou tribais – e da própria vida – quando nos fazemos mal, acumulando toxidade pela inveja, pelo ódio, pelo desejo desenfreado de vingança. O que nos acontece de mal não é, sem mais, consequência do pecado, a não ser que resulte do mal consciente que outros nos fizeram!
       Pilatos mandou derramar sangue de alguns galileus. A questão era saber que mal tinham feito para merecerem tal castigo. Jesus combate esta lógica: «Julgais que, por terem sofrido tal castigo, esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus? Eu digo-vos que não. E se não vos arrependerdes, morrereis todos do mesmo modo. E aqueles dezoito homens, que a torre de Siloé, ao cair, atingiu e matou? Julgais que eram mais culpados do que todos os outros habitantes de Jerusalém? Eu digo-vos que não. E se não vos arrependerdes, morrereis todos de modo semelhante».
       Atente-se à interpelação de Jesus, desligando o mal infligido/sofrido de qualquer culpa. Mas, atenção, diz-nos Jesus, é necessário que nos preocupemos com o bem de todos, uns dos outros, aderindo ao Reino de Deus, convertendo-nos. De contrário, pior será a nossa sorte!
       3 – Para que não haja dúvidas, Jesus dá um passo em frente para sublinhar a importância da conversão, a inutilidade de arranjar culpados, apontando mais para nós que para os outros, partindo da misericórdia de Deus. Fácil é olhar para os defeitos e pecados dos outros e, quem sabe, atirar pedras ao telhado do vizinho! Porém, para os seguidores de Jesus, importa deixar-se olhar pela Misericórdia de Deus e a Ele aderir de todo o coração.
       Numa outra ocasião, os discípulos perguntam a Jesus, sobre uma cego de nascença que Ele se prepara para curar, quem é que tinha pecado, o próprio ou os pais. Jesus responde inequivocamente que nem ele nem os pais tiveram culpa alguma que pudesse ter provocado aquela cegueira (cf. Jo 9, 1-5). Nesse episódio, lembra que o importante é que ninguém fique cego diante dos outros e das suas carências e necessidades, pois neles refulge a presença de Deus.
       Jesus conta então a parábola da figueira que não dá frutos. «Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi procurar os frutos que nela houvesse, mas não os encontrou. Disse então ao vinhateiro: ‘Há três anos que venho procurar frutos nesta figueira e não os encontro. Deves cortá-la. Porque há de estar ela a ocupar inutilmente a terra?’. Mas o vinhateiro respondeu-lhe: ‘Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo. Talvez venha a dar frutos. Se não der, mandá-la-ás cortar no próximo ano».
       Três anos sem dar fruto é muito tempo. Porquê gastar recursos? E porquê ocupar espaço onde se pode plantar outra árvore ou mais vinha? A parábola fala-nos da paciência de Deus e do Seu amor. Deus não desiste de nós. Nunca. Um e outro ano e mais outro e outro ainda. Jesus é o vinhateiro que visualiza o cuidado, a paciência e a misericórdia de Deus. Em Jesus, o Reino de Deus está em ação e já se podem ver os frutos. Cabe-nos transparecer o Reino de Deus que Jesus nos dá.
       4 – "Porventura Me hei de comprazer com a morte do pecador e não com o facto de ele se converter e viver?" (Ez 18, 23). O povo Eleito experimenta na sua história a intervenção de Deus. Ele é um Deus de vivos, de Abraão, de Isaac e de Jacob (cf. Lc 20, 38), não é um ídolo de bronze, de madeira, de prata, de ouro ou de ferro, que não tem olhos nem ouvidos, que não vê e não escuta aqueles que o invocam. Deus olha com amor, com aquele amor compassivo e maternal, isto é, com o amor das entranhas, a Misericórdia. «Eu vi a situação miserável do meu povo no Egipto; escutei o seu clamor provocado pelos opressores. Conheço, pois, as suas angústias. Desci para o libertar das mãos dos egípcios e o levar deste país para uma terra boa e espaçosa, onde corre leite e mel».
       A paciência do vinhateiro não é passiva. Insiste e cuida da figueira que está na sua vinha, tudo fazendo para que possa dar fruto. A Aliança de Deus com o Seu povo não é unilateral, de obediência deste em relação Àquele. Deus OUVE e VÊ a miséria do povo e ATUA para o libertar e conduzir a uma terra de esperança e de vida. Ele conta connosco. Moisés até poderia andar distraído, mas é atraído pelos sinais. Ele VÊ e aproxima-se. Não basta ver, não basta saber, não basta ter um bom coração e boas intenções, é imperioso aproximar-se para VER melhor e mais de perto, e para se deixar COMOVER e ENVIAR. Moisés tinha saído do Egipto e a sua vida era pacata, mesmo com muito trabalho e sacrifícios, pois tornara-se pastor. E a vida do pastor exige uma grande dedicação, procurando proteger o rebanho e procurar as melhores pastagens, afastando-se para longe de casa onde os perigos espreitam, com os salteadores e com os animais selvagens!
       Também Moisés OUVE as angústias do povo sintonizando com a Misericórdia de Deus.
       Descerá ao Egipto para lhes comunicar a mensagem de Deus e os libertar. Deus revela-Se não com adjetivos, como ser distante, como juiz todo-poderoso, mas identificado com a vida de Abraão, de Isaac, de Jacob e de todo o povo.

       5 – Na segunda Leitura, o Apóstolo São Paulo evoca a libertação do Egipto, a nuvem de Deus que envolveu os judeus, a travessia do mar, a bebida espiritual que brotava da rocha e o alimento que Deus lhes mandava do Céu. Nem todos chegaram à Terra prometida. Muitos poderiam ser essa Terra prometida para os outros, mas afastaram-se de Deus e dos seus desígnios de amor. A terra da promessa não é apenas um lugar ainda que haja lugares que nos façam sentir seguros. Deus age em nós e através de nós. Podemos ser terra prometida e lugar de encontro, onde Deus Se deixa ver.
       Moisés desce ao Egipto para lhes levar Deus. Jesus desce até nós e n'Ele podemos VER a misericórdia de Deus, que nos assume como filhos bem-amados.
       Nenhum de nós está excluído do amor e do perdão de Deus. Maior que o nosso pecado é Sua misericórdia. "Ele perdoa todos os teus pecados e cura as tuas enfermidades. / Salva da morte a tua vida e coroa-te de graça e misericórdia. Revelou a Moisés os seus caminhos… O Senhor é clemente e compassivo, paciente e cheio de bondade. Como a distância da terra aos céus, /assim é grande a sua misericórdia para os que O temem". O salmo reza em nós a misericórdia de Deus.
       Por conseguinte, a Ele nos confiamos: "Deus, Pai de misericórdia e fonte de toda a bondade, que nos fizestes encontrar no jejum, na oração e no amor fraterno os remédios do pecado, olhai benigno para a confissão da nossa humildade, de modo que, abatidos pela consciência da culpa, sejamos confortados pela vossa misericórdia" (oração de coleta).

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano C): Ex 3, 1-8a. 13-15; Sl 102; 1 Cor 10, 1-6. 10-12; Lc 13, 1-9.

Sem comentários:

Enviar um comentário