sábado, 19 de março de 2016

Domingo de Ramos na Paixão do Senhor - 20.03.2016

       1 – A vida vale, mais que pelo número de anos, pela intensidade com que se vive. Uma fração de segundo, um acontecimento, uma pessoa, podem valer por uma vida inteira. As horas que se aproximam, distribuídas na Semana Maior da nossa fé, valem a vida de Jesus e a salvação da humanidade. Valem tudo. São horas dramáticas e decisivas. Diríamos, a nosso favor, que são horas felizes porque Jesus nos mostra em definitivo que o amor de Deus por nós é infinito.
       Suor e lágrimas, cansaço, dor física, traição e fuga dos amigos, violência, injúrias, crucifixão e morte. Naquelas horas, Jesus há de ter vivido na maior das ansiedades. Caminha inexoravelmente para a morte. Sobe a Jerusalém pela Festa da Páscoa. Há um vislumbre de paz e de festa, de reconhecimento e de amizade. Com Jesus, os seus amigos, discípulos, alguns familiares, conterrâneos. Segundo Joseph Ratzinger / Bento XVI, a multidão que aclama Jesus na entrada triunfal em Jerusalém é constituída por galileus, pobres, agricultores e artesãos, pedintes, discípulos, mulheres, pessoas que Ele curou e reabilitou.
       Alguns judeus juntam-se ao molhe, por curiosidade, por amizade, em processo de conversão. Jesus tinha amigos nas redondezas, em Betânia, a família de Lázaro, Marta e Maria, e em Jerusalém, o amigo que lhe empresta a casa para comer a Páscoa. Sendo poucos, mostram que Jesus não é propriedade exclusiva de um grupo. É reconhecido como filho de David, da descendência real da qual se esperava um novo Messias que, como David, libertasse e congregasse todo o povo de Israel.
       2 – Há de voltar mais tarde. Diz a canção (de Rui Veloso) para se não voltar ao lugar onde se foi feliz por que só se encontrará cinza e erva rasa. Jesus voltará a entrar na cidade de Jerusalém, num processo que O levará à Cruz. Então formar-se-á outra multidão, instigada pelas autoridades dos judeus, os líderes do Templo e as elites sociais. Por um lado, a alegria da multidão vinda da Galileia, cujas pessoas trajam as melhores roupas, pobres mas limpas, cheias de fé, vêm adorar Deus no Templo por ocasião da Páscoa, exploradas mas acreditando na proteção divina. Por outro, estoutra multidão formada por judeus cuja animosidade vem ao de cima. Também aqui há pessoas simples e ingénuas e que se deixam convencer pelos líderes religiosos, políticos e sociais, e outros tantos que sem opinião formada seguem qualquer voz que se eleve com promessas fáceis.
        Durante a Ceia (a Última que é também a Primeira. A última do tempo histórico que Jesus. A Primeira de um tempo Novo que está a irromper, seguindo a reflexão de D. António Couto), Jesus faz-nos passar do sossego à apreensão. A refeição é um momento de repouso, de alegria, de festa, satisfaz uma necessidade e coloca em comunhão íntima os convivas. Situemo-nos junto de Jesus, como discípulos, como Judas e como Pedro, como João e Tiago ou Tomé, como Maria, Sua Mãe, Maria Madalena ou Maria de Cléofas, como crianças, que não contam, e como pobres que se sentam como amigos. Estamos todos? Festejemos enquanto há tempo.
       Jesus fala-lhes do desejo ardente e da alegria de comer esta refeição mas também de lhes possibilitar uma Páscoa sem fim na eternidade. A Paixão aproxima-Se. Não falta muito. Há que dizer as últimas palavras. O Filho do Homem vai ser entregue, vai ser condenado e morto. «Ora Eu estou no meio de vós como aquele que serve... Eu preparo para vós um reino, como meu Pai o preparou para Mim: comereis e bebereis à minha mesa, no meu reino, e sentar-vos-eis em tronos, a julgar as doze tribos de Israel. Simão, Simão, Satanás vos reclamou para vos agitar na joeira como trigo. Mas Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, fortalece os teus irmãos».
       O reino de Deus que Jesus inaugura é exigente, pois reclama a verdade e o serviço. É para julgar, servindo. Não é o julgamento de um juiz sobre os outros, é o serviço a todos.
       3 – Depois da refeição, Jesus retira-Se para o Jardim das Oliveiras, para rezar. O ambiente é pesado, pois as notícias deixam antever um desfecho pouco favorável. Jesus tinha sido claro, deixando antever que o tempo era escasso e que tudo se iria precipitar. Os discípulos acompanham-n'O, mas cedo vacilam. Apodera-se deles o sono. Segundo Augusto Cury, isso dever-se-á a uma carga emocional muito grande, em que a pessoa, por medo e ansiedade, se deixa dormir.
       São horas de agonia. A intensidade da oração de Jesus revela a carga emocional que O envolve. Vai morrer. Já não há volta a dar. Tem que enfrentar ou que fugir. «Pai, se quiseres, afasta de Mim este cálice. Todavia, não se faça a minha vontade, mas a tua». Prevalece a vontade do Pai. Jesus há de assumir a Cruz como expressão do amor pela humanidade, da compaixão que sempre viveu na relação com todos os que com Ele se cruzaram. Nem o sofrimento nem a morte, nem a espada nem as potestades nos separam do amor de Deus. O Mestre da Vida leva até ao fim a opção pelo bem, pela verdade, a opção pela justiça, pela fraternidade.
       Na hora mais dramática, os discípulos adormecem. Quando mais precisava do conforto e do apoio dos amigos, mais eles se distanciaram. É a história da nossa vida. Quando precisamos dos amigos é quando não podemos contar com eles! Será oportunidade de conhecermos os amigos que temos! «Porque estais a dormir? Levantai-vos e orai, para não entrardes em tentação».
       Ainda estava a falar quando uma multidão se aproximou. Judas encabeça este grupo. Um dos amigos mais fiéis e mais bem formado, não resistiu a entregar Jesus! Porquê? Não há uma resposta definitiva. Também a não temos quando os que nos são mais caros nos desiludem. Porquê, se sempre nos demos tão bem? Por não acreditar em Jesus e no Seu projeto de amor? Ou como sugerem alguns, por acreditar tanto mas não ter paciência para esperar por Deus?
       A oração de Jesus, a Sua intimidade com o Pai, ajudam a enfrentar esta hora. Não reage com violência, mas com compreensão, com perdão. «Basta! Deixai-os». A violência não resolve. É arrastado, escarnecido, os discípulos não O acompanham. Judas trai. E todos O traem. Pedro nega-O. Todos os apóstolos se mantêm à distância. Fogem. Parece que quando se amontoam as dificuldades, mais pessoas se apresentam a acusar, injuriar, a blasfemar.
       4 – O profeta Isaías ajuda a perceber a postura e a missão de Jesus: «Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam. Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio, e, por isso, não fiquei envergonhado; tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não ficarei desiludido».
       Diante do Sumo-Sacerdote ou de Pilatos, Jesus mantém a mesma docilidade. Acusado injustamente, não responde com injúrias. Caminha resolutamente. A Sua vida tem um propósito definido: entrega, oblação, dádiva, a favor da humanidade.
       Ele "que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz".
        A humilhação de Jesus é simultaneamente glorificação da vontade de Deus Pai, para que prevaleça a verdade e o bem, a compaixão e a fraternidade. Nenhum osso e nenhum laço será quebrado, pelo menos da parte de Deus. Até o pobre Barrabás é beneficiário da morte de Jesus Cristo, como o bom ladrão que com Ele foi crucificado. Barrabás é solto, apesar de assassino. Jesus é crucificado, apesar de inocente. O bom Ladrão rouba a melhor parte, o Paraíso e toma parte com Jesus no Reino de Deus. Não ontem, mas hoje. Revejamo-nos num e noutro, também nós podemos beneficiar da morte de Jesus. Pela Santa Cruz, Jesus redime o mundo, redime-nos e sintoniza-nos com a eternidade misericordiosa do Pai.
        5 – Caminhamos todos para o Calvário, mas prosseguiremos além da Cruz e da morte. Somos parte da multidão. Vamos com diferentes motivações: curiosidade, coscuvilhice, em busca de um sentido para a nossa vida. Mais próximos ou mais distantes. Ajudamos Jesus a levar a Sua Cruz. Ou como pais e mães choramos por medo do que possa suceder aos nossos filhos. Aquelas mulheres de Jerusalém associam o seu choro ao da Virgem Mãe. Judeus e soldados romanos. Autoridades judaicas e executores materiais de decisões e juízos convenientes.
       No final, o dia escurece mas não desaparece nem a delicadeza nem a esperança. Primeiro o centurião, que glorifica a Deus por toda a dor, todo o amor, de Jesus na Cruz: «Realmente este homem era justo». Depois, José de Arimateia a mostrar que é sempre possível a compaixão. Uma das últimas obras de misericórdia corporal: enterrar os mortos. E nem um copo de água ficará sem recompensa!
        Ecoam até ao túmulo as últimas palavras de Jesus: «Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito». No meio daquele torpor guardamos a certeza da entrega confiante de Jesus nas mãos do Pai. Entrega-Se e entrega-nos, confia-nos, a Deus, Pai de Misericórdia.

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (ano C): Lc 19, 28-40. L1 Is 50, 4-7; Sl 21 (22); Filip 2, 6-11; Lc 22, 14 – 23, 56.

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